Sexta-feira, 8 de maio de 2015 - 16h34
Praticamente o mundo todo – e o Brasil na esteira de rolagem – experimenta tempos de distopia. A ausência ou negação de utopias realizáveis, assim como a falta de projetos claros e de esperança coletiva para a Humanidade, tomam todo o cenário societal. Esta insuficiência gera insatisfação e desse conjunto brotam instabilidades em todo o sistema.
A exceção à regra é a normalidade moderna
De revoltas a terrorismos (do Estado ou de “lobos solitários”), dos atentados irracionais (porque agem contra a Humanidade que querem resgatar, mas que são calculados milimetricamente) aos movimentos de resistência globalizados (de direita e de esquerda), a distopia é dominante. O homem de virtudes políticas foi substituído pelo calculista frio e preciso: “O engenheiro é celebrado como ‘sacerdote da civilização’ (Saint-Simon)” (Virilio, 1996, p. 30 – grifos nossos).
Ironicamente, no entanto, é da mesma distopia gerada que podem surgir alternativas à falta de utopias dignas para a Humanidade. As piores distopias da miséria humana podem ter, ainda, guardadas as sementes da rebeldia contra, por exemplo, a fome endêmica e a morte banal em troca de moedas para a compra do crack.
A resposta do Estado à distopia – e que o poder central é incapaz de administrar – costuma ser a coerção e o uso de meios excepcionais; tanto discursivos (Leis) quanto efetivos de coerção direta (violência institucional) e indireta (Ideologia). Para combater a fome tem emprego corrente o uso de armas letais, em centenas de guerras localizadas; para debelar professores insatisfeitos com os caminhos das políticas públicas – e que eles tanto debatem em sala de aula com seus alunos – despeja-se o gás de pimenta e a bala de borracha.
Outra ironia em espécie está no fato de que o Estado de Exceção é filho jurídico dileto, o próprio primogênito, daModernidade Tardia. Sua natureza jurídica impôs uma Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática.
A modernidade antidemocrática
Basicamente, o projeto político da Modernidade Tardia se utilizou da Razão de Estado para legitimar o uso do poder de forma instrumental – de modo bem específico, ainda podemos dizer que a Razão de Estado se converteu em Estado de Exceção Permanente. Então, observa-se que vivemos sob a dominação disfarçada constitucionalmente sob as vestes do Estado de Exceção: Estado de Sítio e Estado de Necessidade. Também se notabilizam muitas outras interfaces e interstícios que se escondem sob as vestes deste denominado Estado de Direito Excepcional.
O que se convencionou chamar de Luta pelo Reconhecimento (Honneth, 2003), ainda que de fundamental importância à consagração de valores e de direitos democráticos, também não escapa das regras do uso instrumental da exceção, uma vez que as constituições democráticas acabam por legitimar a exceção como meio de defesa da própria democracia. Aliás, esta foi a manipulação traçada a partir da Constituição de Weimar, de 1919, denominada até então de baluarte da democracia e do Estado Social.
Cabe salientar, para efeito de explicação, que, o conceito/realidade da Modernidade Tardia remonta ao Renascimento – e não como se afirma, tradicionalmente, ao Iluminismo –, porque é no contexto da concentração do poder sob os auspícios do Estado-Nação que se evidencia a Razão de Estado.
Por sua vez, a Razão de Estado permanece na esteira do Estado e do Direito Moderno, bem como hodiernamente. Por isso, para visualizar a metamorfose da Razão de Estado em Estado de Exceção é necessário verificar as bases teóricas e históricas, a fim de melhor notabilizarmos o que se modificou, neste longo período histórico, e para que se organizasse a nova estrutura política e jurídica legitimadoras.
O Iluminismo, por seu turno, tem um significado essencial (aliado à Razão de Estado renascentista) porque foi no século XVIII, no pós-Revolução Francesa, que se verificou a primeira fase da transformação do Estado de Exceção. Foi neste momento, precisamente, que se viu emergir o famoso expediente político/jurídico do Estado de Sítio.
Todavia, aresistência vem, exatamente, da distopia que critica a não-funcionalidade do sistema jurídico excepcional.
Esta relação analítica se dá entre o romance O Capote – de Gogol (com a captura da subjetividade pelo capital), a peça Ralé – de Maxim Gorki (a formação social e o emprego político de um amplo exército social de reserva) e o romance de ficção Nós, de Ivegne Zamiatin (2004). Fecha-se aí o controle absoluto dos meios de exceção em torno de uma trilogia do ciclo de ouro do capital no século XX. Porém, pode-se tranquilamente estender essa perspectiva combinada ao regressivo Estado de Direito, no século XXI.
No romance O Capote, a crise apontada por Gogol (1986) se deve ao apego excessivo/exclusivo à mercadoria (um capote, como símbolo de ascensão ou redenção social), ao status que se teima em querer e que nunca chega (mais ou menos o que aflige a pequena burguesia). Como visto, o Capote é uma forma de exceção incluída como regra econômica, pois que se alimenta de um fetiche e não de relações humanas concretas. A mediação entre os homens, nas relações sociais e de produção, majoritariamente é conduzida por mercadorias e ritmada por intervalos mercadológicos. Contudo, quando o apelo sagrado por um capote não mais satisfaz ou porque se percebeu que não há capotes glamorosos para todos, começa a gestão de insatisfação que pode vir a se tornar resistência política. Podemos lembrar de todos “os brutos partidários de Hobbes” (Darnton, 1987) ou apenas da Comuna de Paris.
Além de se ver expandir a corrupção institucional e se agravar a miséria humana, verificamos o lumpemproletariado – a Ralé, de Gorki[1] – servir/atuar como verdadeiro exército social de reserva ao crime organizado e aí encontrar somente respostas do Estado Penal: criminalização das relações sociais, enclausuramento social, tipificação penal em branco (afinal, o que é terrorismo?[2]), a prevalência do direito penal do inimigo (como ilustrado na dilatação sem comedimento da Lei de Crimes Hediondos).
Se a exceção foi criada para combater o lumpem (mas, contando com seu apoio político), hoje, ironicamente, é este mesmo lumpem quem ameaça sua hegemonia. Pois, os espaços sociais tornaram-se espaços críticos em que os não-atendidos (ou não-proprietários) poderão estabelecer como zonas de luta política pela hegemonia. Como se sabe, toda luta pelo direito é uma luta política – e toda luta política é luta de classes.
Bibliografia
DARNTON, Robert. Boemia Literária e Revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
GOGOL, Nicolau. O Capote. Editorial Alhambra : Rio de Janeiro, 1986.
GORKI, Maxim. Ralé (No fundo). São Paulo : Editora Veredas, 2007.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo : Ed. 34, 2003.
VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo : Estação Liberdade, 1996.
ZAMIATIN, Evgueny. Nós. São Paulo : Editora Alfa-Omega, 2004.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
[1]O personagem Ator conhecia Hamlet e o replicava, ao dizer que são só “palavras, palavras...palavras” e que a cultura é bobagem; afinal, “o que era, era...restou só o homem nu”. Eles não têm papéis, não tem identidade. Ator é um ator falido, sem papel ou representação nos palcos, mas também sem função social ou status: nos palcos, tinha nome, e se ressente da vida real, porque “até os cães têm nome”. Todos bebem muito e se auto-intitulam ladrões. Cantam antigas canções de prisões: o homem é um animal em meio à loucura. Para eles, a verdade incomoda porque reconta a realidade e, assim, desdenham do trabalho. Falam de sua humanidade, mas sempre acossada pelo desprezo social. Por isso, o lampejo de consciência leva Ator ao suicídio, no final do quarto ato. “Romper os grilhões / Na noite da minha prisão [...] Se eles fossem viver honestamente, em três dias morreriam de fome [...] Carcereiros de ferro [...] O meu consolo é que os outros roubam mais do que eu e mesmo assim vivem com honradez [...] quem é independente, quem não se alimenta com o pão alheio, para que ele precisaria da mentira? A mentira é a religião dos escravos e dos patrões [...] Por que um trapaceiro não poderia às vezes falar como um homem decente, se os homens decentes falam como os trapaceiros? [...] Eu sou presidiário, assassino, trapaceiro – sim! [...] Sempre tive desprezo por gente que se preocupava demais em encher a pança [...] Só existe o homem, todo o resto é apenas criação das suas mãos e do seu cérebro [...] O homem bom é bom, mesmo quando é bobo, mas o ruim, esse tem que ser inteligente de qualquer maneira (2007, p. 09-107 – grifos nossos).
[2]Para o governo francês, não comer pão (e brioches?) pode ser um sinal de jihadismo: http://orientalissimo.blogfolha.uol.com.br/2015/02/01/como-reconhecer-um-jihadista/.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de