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Vinício Carrilho

A Educação Revolucionária


A educação é um dos grandes motes da Revolução Francesa. As escolas públicas foram ali criadas para divulgar os direitos do homem e o livro didático foi implantado para popularizar os ideais revolucionários e assim traduzir o que significava a liberdade e a igualdade. O povo precisava saber (para depois acreditar) que para ser livre precisava ser igual em direitos e que, somente assim, unido, poderia lutar por uma sociedade mais solidária e fraterna. Na modernidade, portanto, a educação nasceu revolucionária.

Desde então a luta pelo direito passaria inevitavelmente pela educação. A forte relação entre educação e direito viria pelo fomento da razão – e assim é possível rever algumas das implicações do pensamento de Kant na formulação dos maiores referenciais da modernidade. A luta pela liberdade e pelo direito seria o ideal de toda a Humanidade e desde então se constituiria em um direito fundamental, inadiável, inesgotável e para onde deveriam fluir todos os esforços da sociedade organizada.

Educação: a igualdade na coesão social

O filósofo Immanuel Kant, em sua concepção de dignidade humana já afirmava que o homem (como ser racional) existe como fim em si mesmo[1], não simplesmente como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade (Kant, 1997, p. 70). A ética, por sua vez, ganha status de positividade jurídica na medida em que às normas gerais de comportamento é somada a condição de coercitividade.

A mesma razão que apoia o ser humano como um fim é a que dá suporte ao Estado Moderno. Afinal, os aparatos do Estado, já em vias de sua plena institucionalização, servem ao homem como um fim. Do que decorre a perspectiva de que o Estado não pode ser apropriado por indivíduos, em torno de seus feitos ou interesses particulares, sejam quais e quantos forem.

No Estado Moderno, a moral se converte em direito e direito aqui é equivalente de força – uma força capaz de se impor sem contestação (coerção). O direito como sinônimo de uma vontade superior, organizada/organizativa da razão que se quer formar em todos. A razão superior, portanto, que se manifesta pelo Estado é legítima. Neste pensamento, é legítima porque se traduz em legalidade – e todos são sabedores do que é a lei (a ninguém é dado o direito de alegar ignorância da lei).

Então, a vontade manifesta pelo Estado traduz uma razão superior às partes, como representante do todo, e a isto se denominou Razão de Estado. O poder que age coercitivamente não o faz como demonstração de força do soberano, mas sim expressa a moral superior que o Estado encarna. Daí a perspectiva de que a liberdade só advém da estrita observância da lei, pois todos são conhecedores da lei e no seu “espírito” devem se balizar e agir.

A lei, de acordo com a Razão de Estado, é a justa medida, à qual são todos equiparados e, exatamente por isso, regulados. A lei que transmite uma moral superior (razão) não pode se pautar pela desigualdade (não há como, pela lógica). Por fim, se a lei superior (que a todos convence pela razão de ser e aos céticos pela força) sustenta o Estado Moderno, ao mesmo tempo o legitima a agir – e Estado e Direito se confundem em uma razão superior (a Razão de Estado).

Assim, o agir correto dentro da lei torna a todos iguais e, se somos iguais, logo, somos livres. A Razão de Estado nada mais é do que a proteção e a salvaguarda deste patamar de racionalidade a que chegou a Humanidade. O direito representa/sintetiza o estágio superior da racionalidade humana e a Razão de Estado expressa apenas sua forma político-institucional.

Apartir de Kant (1997), aRazão de Estado é contratual-racional, mas tem duplo movimento: é dedutiva porque a razão superior assim exige e todos são (e)levados à mesma conclusão racional (se uma lei que equipara a todos é cumprida, ela beneficia a todos: deduz-se o benefício social); é indutiva, porque ninguém tem o direito de se sobrepor a sua determinação, todos devem a ela se vergar, por convicção ou imposição (a coerção jurídica de efeito erga omnes). A lei induz comportamentos.

Portanto, toda legalidade é legítima (dignidade), à medida que o direito representa esta moral superior (direito contratual) e tem na Razão de Estado a força necessária para se impor. Não há legitimidade no ius rebelli porque na soberania do Estado repousa a soberania da razão superior criada pelo Homem e que resguarda sua vida e liberdade.

Questionar isto não é razoável (isto é, não é racional) e, se necessário, pode-se mover forças excepcionais (o excepcio, a lei excepcionaldo Estado de Exceção) para converter/convencer a todos ou reverter ao plano inicial. A normalização (o que tende à norma, tende ao normal), presente neste fluxo da evolução racional da Humanidade, deve trazer os homens de volta à razão. De onde também se conclui que nada pode ser pior do que a anomia (um estado de coisas sem normas), porque seria como uma vida social sustentada fora da razão.

A anomia não ameaça apenas ao Estado ou a esta ou àquela sociedade, mas desafia a Humanidade. A Razão de Estado surge, pois, como corolário da razão – o que melhor revela o que há de mais sublime no homem. Não há nada mais legítimo (como legalidade) do que a Razão de Estado. A Razão de Estado é a razão de ser, do ser racional. Nesta linha evolutiva de Kant (1997), Weber (1979) traçou as linhas gerais da construção da racionalidade, até a compreensão da racionalidade burguesa.

Sob a ótica da Razão de Estado, na sociedade burguesa, conclui-se que legitimidade é sinônimo de legalidade, sem espaços para a contestação da Razão de Estado. Afinal, questionar a lei não é racional e nem digno do homem que vive em sociedade organizada por lei. Seria um contrassenso aberrante. Do que também se conclui, antecipadamente, que o Estado não pode se furtar à mesma lei criada para os cidadãos. Até porque, como indutor da Razão de Estado, negar-se a cumprir a lei criada por si mesmo, seria uma contradição solvente de sua própria razão de ser. Se o Estado nasceu para “proteger” a razão (sendo a lei sua depositária[2]), como pode o Estado se furtar à lei que protege a razão? Trata-se da mesma razão (melhor dizendo, da mesma racionalidade) que alcança ao Estado e que alberga o indivíduo. Na verdade, impõe-se o verso, pois a racionalidade humana, cotidiana, invade a política (e não o contrário).

As questões, neste sentido, são gerais e de adaptação da Educação Revolucionária para o contexto nacional. A Carta Política pátria prevê a destinação de recursos fixados à educação. Os pais ou responsáveis são obrigados a prover todos os meios para que seus filhos cheguem até à escola. Contudo, o Estado pode negar a educação de qualidade sem sofrer a sanção/coerção como obrigação de fazer?

Por isso ainda cabe indagar:

·         Por que razão somos um país de analfabetos funcionais e estruturais, será pela falta de verbas ou pelo desvio e má aplicação das mesmas verbas já escassas?

·         É possível ou desejável que o sistema de cotas seja implantado, sobretudo para o preenchimento de vagas no ensino superior, sem que haja atenção ao ensino fundamental? Ou, diferentemente, podemos/devemos atuar nas duas pontas do problema?

·         A negação da educação de qualidade, não bastando apenas o ingresso no sistema, seria equivalente da negação integral do direito à educação? Pode-se falar de meio-direito, da metade de um direito, e aí vamos instituir uma nova figura jurídica, como o direito de acesso ao sistema, mas sem garantia da qualidade do serviço prestado por este sistema?

·         Assim, se a qualidade do serviço fosse tão ruim que o resultado fosse zero, neste caso, teríamos o acesso ao direito sem garantia de sua efetividade[3]? Pode-se ter a garantia a um direito totalmente exaurido[4]?

·         Se a educação eleva a consciência ao nível da razão, negar a educação de qualidade não equivale a privar o povo da razão necessária a fim de investigar e investir contra o status quo? (Aliás, uma educação de qualidade permitiria exatamente proceder à análise em que se imbricam razão e consciência, como relação entre ontologia e epistemologia[5]).

·         Se a educação promove a razão do povo, no Estado de Emergência em que nos encontramos, em que o analfabetismo funcional ameaça o desenvolvimento nacional, não caberia falar de lei excepcional que promova a educação de qualidade? Ou as leis de exceção servem realmente apenas para manter o poder conquistado?

·         Enfim, se o direito é uma conquista – que assegura uma ficção jurídica compartilhada na consciência e na ação – é possível uma educação sem qualidade ou isto equivale à negação dos objetivos traçados pelo próprio direito à educação?

A quantidade muda a qualidade (dialética), mas está mais do que na hora investirmos na qualidade (na lógica). Precisamos qualificar a abordagem, o entendimento e a apreensão desse direito à educação. Aliás, pode-se frisar que a cidadania é capaz da apreensão do direito (mas, somente se vier pautada pela qualidade, requisito essencial da dignidade). Neste caso, o direito à educação balizado pela ética não é, necessariamente, aquele instituído pela Razão de Estado.

Se, como temos no PNE 2011-2020, universalizar o acesso é universalizar o direito (sem que se paute obrigatoriamente, exaustivamente, pela qualidade), então, trata-se do direito ao acesso à educação e não exatamente do direito à educação (uma vez que esta não pode ser ofertada pelo meio). Do mesmo modo, o direito educacional pode ou não expressar o direito à educação de qualidade. É como se dissesse que o direito à educação de qualidade é um direito de fundamentação.

Na mesma interpretação Iluminista de Kant, o direito à educação não pode ter um Estado-guia em que o poder seja um mero consenso para a conquista. Se a Razão de Estado atenta contra o indivíduo e a sociedade, pode-se concluir que o Está contra sua natureza, pois não é razoável um Estado em que não vigore a Justiça Ética (Höffe, 2006).

A universalidade dos pressupostos e da educação de qualidade (sobretudo, enquanto direito legítimo) está em que o direito e o Estado são instituições e, neste caso, personificam a transcendência que alcançam a todos os indivíduos; mesmo para aqueles que agem de descontínua relação com o poder instituído. O que a contabilidade do direito à educação não alcança, por limitação epistemológica, é a compreensão do fato de que o acesso não leva à inclusão e muito menos ao conteúdo ético da educação revolucionária (desde 1789): a unidade na diversidade da Humanidade. A educação contábil não permite conceber que a diferença é um fato (social, natural, cultural, histórico) e que a desigualdade é pura ideologia (dominadora, opressora, reificante).

Cabe ressaltar, por fim, que a lei não pode afrontar o princípio fundador e superior: a dignidade deve alcançar a todos por meio da lei; logo, a lei não pode ferir a dignidade e, se isto ocorrer, a lei é ilegítima. Não é lídimo, portanto, educação sem qualidade.

O direito à educação de qualidade é um direito fundamental (social)[6].

Bibliografia

HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa. Edições 70 Ltda, 1997.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.



[1] Donde a célebre frase, “o homem não é um meio, porque é um fim em si mesmo”.

[2] Ao ser depositária da razão, a lei é depositária da boa-fé, da lógica do ser e do social.

[3] É evidente que não cabe uma contalibilização do direito. Se é certo dizer que a quantidade modifica a qualidade (dialética) é ainda mais necessário compreender que se a contabilidade serve ao Estado Providência, o instrumento também atende aos interesses da Máfia.

[4] É óbvio que negação dos direitos fundamentais sociais implica na subtração do próprio direito: na saúde, equivale à morte e na educação, ao analfabetismo.

[5] A condição humana está em incessante mutação pelo conhecimento e, se o cógito é negado, então, a formação do ser humano, do cidadão político e racional capaz de apreender a realidade é vilipendiada.

[6] Martinez, 2013.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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