Sábado, 14 de março de 2015 - 16h46
O escritor português José Saramago (1922-2010) ganhou o prestigiado Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Tem uma obra literária vasta e alguns inéditos que ainda chegarão ao mercado de leitores. No romance Ensaio sobre a cegueira (Companhia das Letras) percebemos uma ilação direta entre realidade e ficção – no fundo, a realidade jurídica copiando a ficção política. Saramago diagnosticou a insurgência doEstado de Emergência Sanitária, como resposta a um tipo de gripe suína:
“...do que se tratava era de por de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre-amarela [...] Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos”(2008, p. 10-24-45-46).
Com o quadro atual da devastadora dengue em Marília – agora em todo o Estado de São Paulo – é impossível não tecer relações entre a história de Saramago e a realidade local. Com exceções, quando se analisa a mortífera dengue na cidade, apega-se tão-só ao epifenômeno: por que o cidadão não cuidou de seu quintal? Primeiro, porque sequer tivemos campanhas educativas sérias. Ainda hoje se ouve a crendice popular dizer que o mosquito só pica do joelho para baixo; ou seja, não se passa repelente nos braços e nos bolsos. Para os que podem comprar, é claro. Pois, a dengue trouxe uma indústria mórbida para a cidade: um frasco minúsculo de repelente chega a 40 reais.
Segundo, porque não houve interesse real do Poder Público em fiscalizar, não houve nebulização a contento. O Estado de Emergência Sanitária ainda permitiu ao Poder Público sair das regras normais de licitação pública, além de receber recursos extraordinários. O fato dos dados médicos não atestarem a enfermidade e a causa da morte em 2015 (centenas?), e com leniência dos serviços de saúde, apenas atesta a condição de que a necessidade (que seria natural) foi metamorfoseada em Estado de Necessidade (em que atuam regras de exceção). O natural, assim politizado, virou excepcional. Com regras especiais, a exemplo da proibição da verdade, a saúde se torna caso de política. Porém, aí atua outra forma de exceção; em essência, a saúde pública afrontada pela dengue deveria ser caso de polícia. É evidente que há crime de responsabilidade pública. Ainda mais porque o alerta oficial havia soado em 2013/2014. O que já bastaria para caracterizar total negligência.
Tardiamente, transformou-se um caso assustador de saúde impublicável em situação de emergência política. Por fim, o epicentro – ao contrário do epifenômeno da dengue – revela-nos que a doença sempre foi um caso de política. Especificamente, e juridicamente, o descaso pela vida. Portanto, como em toda ocorrência de exceção, os casos de política se convertem em casos de polícia. É este o exato momento atual.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
Marcos Del Roio
Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP/Marília
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