Sexta-feira, 5 de agosto de 2016 - 05h03
O Senado Federal volta a examinar projeto de lei sobre crime de abuso de autoridade[1]. Primeiramente, resguardando-se a formação mais clássica, pode-se pensar que autoridade é um termo aplicável exclusivamente à magistratura.
Isto é, interpretar-se-ia de forma mais restritiva o termo e a aplicação desse instituto legal. Por uma razão simples: autoridade é quem exerce o poder legal de interpretar, julgar e punir ações discricionárias dos agentes do Poder Público.
Assim, restritivamente, autoridade é quem detém o poder de julgar a todos que têm capacidade ou competência técnica de manifestar atos de poder. Denomina-se isto de “sistemas peritos”, pois são sistemas operacionais geridos por agentes de poder capacitados ou instituídos de legitimidade.
No caso específico, seriam os magistrados que interpretam, interpelam, ações de agentes/servidores dos três poderes em instâncias judiciais e jurídicas distintas. E seriam interpretações legítimas se ocorressem não apenas em face da lei que prevê, autoriza e disciplina este mesmo poder legal de julgar inclusive a seus pares; mas, sobretudo, se viessem calcadas no Princípio Democrático.
Como estamos submersos em caos institucional, vale dizer, em plena era de Ditadura Inconstitucional, as autoridades pululam sem distinção, os crimes de abuso se somam, somatizam-se, o culto à personalidade é multiplicado ad infinitum. E quase-todos locupletam-se de um descontrole democrático-republicano.
Entenda-se, brevemente, por Ditadura Inconstitucional, uma fase pós-moderna de exercício do poder institucional inerente ao clássico Estado de Exceção. Todavia, trata-se de uma forma-Estado muito mais ideológica e legalista do que outrora, quando se baseava o poder de intimidação/opressão nas estruturas de autoritas.
Golpe de Estado convencional, ditadura civil ou militar, despotismo, quartelada, são exemplos tradicionais de excepcio. A decretação do instituto denominado Estado de Emergência (França, Turquia) ou a Lei Antiterror nacional, combinando o passado e o presente, são exemplos bastante atuais do poder ex parte principis.
Então, neste contexto, resulta que submergimos na flagrante impunidade dos abusadores do poder: incluindo-se aí os julgadores que prezam sua autonomia, mas que repudiam qualquer auditoria nas suas ações julgadoras e punitivas.
Em tese de primeira conclusão, os (e)feitos/defeitos do poder abusador teriam motivado o legislador a ampliar o escopo da dita “autoridade”, a fim de abarcar outros agentes da lei e do poder constituído.
Porque, de forma direta, o poder de todos – de agir, legislar ou de julgar – está sob a tutela do descontrole perpetrado por meios/mecanismos de exceção: da corrupção à caça aos corruptos.
No exemplo concreto, ainda resta dizer que estamos numa fase tão estranha, complexa e contraditória dessa particular Ditadura Inconstitucional que um projeto de lei sobre abuso de autoridade pode suscitar medos e problemas descomunais, para o bem e para o mal. No nosso caso, o bem serve ao mal – porém, o vice-versa não é atento ao presente da negação democrática.
Se a história recente fosse de respeito ao Direito Ocidental, e não Golpe de Estado, o próprio projeto da lei sobre abuso de poder só seria recebido se viesse embalado pelo Princípio Democrático; pois, do contrário, seria rechaçado de pronto por considerar-se uma afronta inconstitucional aos direitos fundamentais funcionais do poder investigador.
Entretanto, como perdemos a face democrática da CF/88, a partir do impedimento de 2016, projetos autoritários, reacionários e suspeitos de albergar interesses fascistas e escusos chegam e são lidos todo dia no Congresso Nacional. Desconstrói-se a democracia, tanto quanto o Estado Laico.
Em consequência dos abusos da Ditadura Inconstitucional, num primeiro plano, se deveria ser motivo de celebração o recebimento de um projeto que viesse a punir abusos (seletivos) das autoridades investidas – e se houvesse, obviamente, clima progressivo no processo civilizatório –, num segundo momento, revela-se, ao contrário do pressuposto democrático, uma existência perturbadora na exata medida em que o projeto pode/deve beneficiar investigados poderosos de atentar contra o erário.
Neste caso, as autoridades investidas seriam revestidas por um cordame imoral que os impediria de investigar corruptos da República. Cabe ressaltar que o país já tem uma lei para isso, apesar de antiga e desatualizada (Lei nº 4.898 – 9/12/65)[2]. Entretanto, o “novo” projeto, de 2009, prevê[3]:
Art. 2o São sujeitos ativos dos crimes previstos nesta lei:
I – agentes da Administração Pública, servidores públicos ou a eles equiparados;
II – membros do Poder Legislativo;
III – membros do Poder Judiciário;
IV – membros do Ministério Público.
(....)
Art. 12. Ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoa indiciada em inquérito policial, autuada em flagrante delito, presa provisória ou preventivamente, seja ela acusada, vítima ou testemunha de infração penal, constrangendo-a a participar de ato de divulgação de informações aos meios de comunicação social ou serem fotografadas ou filmadas com essa finalidade.
Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.
Art. 13. Constranger alguém, sob ameaça de prisão, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo (grifo nosso)[4]:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem constrange a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo (grifo nosso)[5].
(....)
Pelo mesmo lado da moeda, mas, observando-se pelo ângulo contrário dos que querem plena autonomia – o que inclui “dar normas a si mesmos” (auto+nomos), como se fossem os únicos intérpretes autorizados da lei e da Constituição –, e sem sofrer do constrangimento legal e do embargo legítimo dos pressupostos democráticos que embasam a auditoria (audire: ouvir, ouvidor), sendo esta necessária e urgente ao “poder que interpreta o ordenamento jurídico”, é preciso ressaltar muitas vezes que o referido projeto de lei é de 2009.
Portanto, não foi exatamente uma medida legislativa a fim de combater de pronto as ações da conhecida Lava Jato. Quanto a isto, as debatidas autoridades julgadoras veem-se revestidas da capa patrimonialista que as protege com privilégios constitucionais imorais. E demonizam tuto e todos que as contrariem em seus interesses de casta/estamento social.
De todo modo, como o país está mergulhado em corrupção endêmica e motivado por Estado de Exceção, todo cuidado em se posicionar diante desses fatos é obrigatório. Pelo simples fato de que nessa “solução” repousa a salus publica e a sobrevida da democracia.
Simplificadamente, o fator em causa destaca que: se há o perigo de corruptos temerários quererem barrar investigações sobre o malfeito, há, pelo reverso, o receio dos “operadores do direito positivo e dos aparatos ideológicos e repressivos de Estado” em se submeter ao controle previsto na divisão dos poderes.
De um lado, corruptos com medo gigantesco da prisão-masmorra, de outro, “autoridades no exercício do poder de exceção” escondidas, protegidas, sob a capa da impunidade do poder que abriga os mesmos corruptores do poder democrático.
Em comum, há o andar de cima do fascismo em pleno século XXI e que se move impregnando todos os veios institucionais.
Enfim, continua latente a questão inicial: a lei ameaça juízes ou apenas os abusadores convictos do poder de exceção?
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Ajunto IV da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/CECH
[1]http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-07/votacao-do-projeto-sobre-abuso-de-autoridade-deve-ficar-para-agosto.
[4]Esse é um dos pontos altos do projeto, pois obrigaria – sob pena de prisão – a autoridade à observação da prevalência dos direitos fundamentais individuais e, de certo modo, a cumprir o disposto no regulamento da delação premiada. Prender depois de provada a culpa ou mediante prova inconteste da grave ameaça às investigações em curso – e não como meio de chantagem, e com o fito político (muitas vezes partidário) de se saciar a ânsia excepcional do julgador seletivo.
[5]No tocante aos que devem temer, é óbvio que os agentes da assim chamada Operação Lava Jato temem pelo julgamento de seus atos seletivos e abusivos (de exceção).
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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