Quinta-feira, 9 de maio de 2013 - 05h02
Utilizando-me um pouco dos clássicos da sociologia dá para dizer que a família não é e nem poderia ser a célula mater da sociedade. Ao contrário de outro clássico, de Engels, eterno companheiro do pensador Karl Marx, não acredito piamente na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Isto é, se seguisse ao pé da letra o que nos diz Engels, teria de concluir pela obviedade de que a família está na origem da sociedade capitalista (e do seu Estado).
De outro modo, penso que a família tem regras próprias, uma ética que se comunica com a sociedade (com o senso geral de uma ética universal), com o Estado e o seu direito impositivo. Disse que se comunica, pois, na família, tanto as regras podem ser mais brandas quanto mais duras do que as regras sociais. São regras mais brandas quando os pais simplesmente perdoam até as falhas mais graves (escondendo filhos homicidas, por exemplo) ou mais duras, como vemos nas vendetas aplicadas pela família mafiosa a seus integrantes.O fato é que são regras próprias, muitas vezes limitadas a um determinado núcleo familiar.
A vendeta é das mais duras penas e, inclusive, ultrapassa o princípio da pessoalidade da pena, ou seja, pode atingir qualquer membro da família do acusado/condenado – como ocorreu na matança de parentes de Tommaso Buscetta, mafioso e delator italiano (“arrependido”), no correr da Operação Mãos Limpas.
As regras da família, que não sejam as da vendeta, incluem o beneplácito do perdão, da comoção, em que a última palavra vem do coração e não da razão pública. Neste núcleo de relações, salvo as exceções de que não trata o texto, a subjetividade de sentimentos como piedade, modulação das regras, adequação das mesmas regras aos sujeitos e às circunstâncias é o primeiro dos princípios. Ao contrário do direito positivo, em que o Estado nos impõe regras gerais e fixas, na família todas as normativas são regidas de acordo com interesses especiais, conforme se aplique aos pais ou aos filhos e, mesmo assim, ainda separando entre filhos e filhas. Mas, isso, em algumas famílias, não em todas.
As famílias até podem desenvolver (e a maioria o faz) relações de oposição entre seus membros, entre pais e filhos, por exemplo, em que os dois lados pouco entram em acordo quanto aos valores aceitos e às práticas desejadas. No entanto, salvo as exceções, essas relações de oposição não se degeneram em violência e extermínio.
As regras da família são de natureza privada, as normas jurídicas que regem a sociedade e o Estado são universais, gerais, tem efeito erga omnes, aplicando-se a todos indistintamente. As relações de oposição que temos, por exemplo, no choque de gerações, raramente se desmantela em grosseria ou violência extrema, isto é, raramente as relações de oposição se convertem em relações de negação, de exclusão, de espoliação, de exploração desmedida, em que predomina a lógica social do vita mea, mors tua (minha vida, morte tua). Ainda que exista, a força aplicada no pater familias, no poder do pai que podia matar impunemente a sua prole, como na sociedade romana, hoje certamente não é uma regra. Pelo contrário, o instituto do poder familiar, o poder compartilhado, como no direito civil brasileiro, procura expulsar a violência das relações familiares.
Nas versões religiosas, a família é sempre apontada como o eixo social – numa espécie de visão positivista, diz-se que se a família vai bem, a sociedade não enfrentará grandes ou graves oscilações morais/institucionais. Para os católicos, a família é o alicerce da Humanidade (Sínodo dos Bispos – Roma/1980). Para o espiritismo, a família é uma espécie de centro de ressoacialização, momento em que rivais, inimigos, amigos, desafetos ou eternos companheiros terão novas oportunidades de resolver seus litígios ou estreitar antigos laços de amizade e fraternidade. A família, portanto, serve para o bem e para o mal – caso não se consiga resolver os traumas percebidos, os problemas irão se avolumar na outra reencarnação.
No entanto, no culto materialista que vivemos, as relações familiares, salvo as exceções em que pais matam filhos e vice-versa, não são de antagonismo. Podem não ser regras de complementação, mas também não são de aniquilamento. A família não se mantém pela regra “amigo-inimigo”: todos são relativamente amigos – mesmo que com amizades variadas – e por isso recebem o perdão fraternal para suas falhas.
A sociedade, ao contrário, ao menos a sociedade capitalista, é aquela marcada por contradições insolúveis, em que se aprimoram as lutas políticas entre as classes sociais, em que as classes fundamentais, obrigatoriamente, digladiam em jogo de morte entre si. Este tipo de contradição é marcado por relações contrárias, antagônicas, de espoliação e de negação. Não há regras de meio-fio, como perdão.
Casa Grande e senzala
A violência doméstica que tanto nos assombra no Brasil não é uma regra geral das famílias modernas; na verdade, é um traço da violência social, urbana, global, da sociedade brasileira que se aninhou nas famílias. A família é violenta, entre nós, porque a sociedade brasileira desde seus primórdios sempre praticou a extrema violência contra alguns setores e segmentos sociais, raciais ou mesmo entre os sexos. A família violenta é uma extensão social.
A família brasileira, por mais que se diga que não, ainda é (e talvez seja sempre) muito marcada pela lógica negativista, de exclusão, abuso e violência que vimos na história da Casa Grande. A senzala, sempre diminuída, sem eira, nem beira, continha objetos prontos a serem apropriados. Muitas famílias foram formadas a partir do estupro. As mulheres negras não vieram por livre e espontânea vontade da África ao Brasil e nem romperam seus laços familiares porque estavam apaixonadas pelos brancos. Na verdade, detestavam com profundo ódio o homem branco – especialmente aquele que as possuía sem consentimento, fazendo aumentar a prole dos filhos mulatos e ilegítimos.
No entanto, as regras morais e sociais praticadas como regras globais na sociedade brasileira, ao contrário do passado, não têm mais uma desculpa formal para se afirmar na violência. O direito já penaliza a violência familiar. E se hoje se pratica muita violência dentro e fora das famílias é porque as poucas regras gerais estão desbaratinadas, porque as relações de consumo e de mercantilização invadiram todas as fímbrias sociais e familiares.
A sociedade trata a todos como bens e mercadorias e as relações gerais, os valores e as práticas sociais capitalistas e hegemônicas, acumulam-se dentro e fora das famílias. Como nos dizia Marx, “todo o sagrado será profanado” (pelos valores e práticas capitalistas). E assim se fez com a família, foi profanada, arruinada (mesmo que em suas “cascas de moralismo”). Hoje não há nem mesmo uma casca de moralismo – só a violência.
A família brasileira é extremamente violenta, sempre foi, a ponto de muitos de seus entes morrerem física ou moralmente, mas isso em decorrência de se ver imersa na herança de uma sociedade escravagista, negadora da mínima inclusão das mulheres, dos negros, dos pobres. Numa sociedade com este perfil moral e recorte social e econômico, em que a maioria deveria ficar fora dos laços significativos, conhecendo apenas a ponta da chibata, não é de se estranhar que seus herdeiros, que somos nós, tenham famílias tão doentes – até porque a maioria ainda continua marcada pelas relações de poder.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO
Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ
Pós-Doutor pela UNESP/SP
Doutor pela Universidade de São Paulo
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de