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Vinício Carrilho

Cleptocracia



- que 2015 seja melhor

            A definição do jurista Luiz Flávio Gomes, para a forma de governo prevalecente no país todo, traduz-se como “governo de corruptos”. Isto se espraia de forma ampla, geral e irrestrita: federal, estadual, municipal. Uma espécie de Federalismo Gangster.

(Não é um Estado Gangster, é um Leviatã homini lupus: http://jus.com.br/artigos/31579/o-pior-crime-do-estado-penal)

Mas, somado-se a um pacto de mediocridade, em que o homem médio em sua vida comum almeja levar vantagem em tudo, resulta na corrupção dos sentidos. A Lei de Gérson reflete uma pandemia cultural: “quem for honesto, que atire a primeira pedra”. O que vale é o imaginário do subsumido pelo antidireito. O cínico apregoa o “Rouba, mas faz”, e o ingênuo “deserdado da terra” crê convicto.

Na pós-modernidade brasileira, não podemos mais contar a história pelos mocinhos e bandidos, porque “está tudo dominado”. O povo celebra: “Bangu um, polícia zero”. Por isso, Rui Barbosa dizia que teríamos vergonha de sermos honestos. Mais do que uma profecia, pura realidade. Há um crime organizado na alma brasilis. Há uma identidade nacional, sim. Engana-se quem avalia a falta de referências que permitisse um adensamento cultural. Desde a origem, com capitanias e poderes hereditários, desterros e esculacho cultural, o “Homem Cordial” foi domado por um poder cartorial, como Estado Patrimonial refém de interesses particulares (do historiador Raymundo Faoro). Aprendemos desde o berço a barganhar a alma, a honra e a dignidade, em troca da mera sobrevivência.

Fomos incapazes, conduzidos pelo capital predador, de construir um caminho civilizatório; espoliados, “não ladrilhamos, não edificamos” – ainda diria Sério Buarque de Holanda, avaliando as Raízes do Brasil. Éramos (e somos) consumidores do país, até hoje os colonizadores são predadores.

Cleptocracia - Gente de Opinião

Os caminhos da cultura nacional são espessos.

Mas tortuosos, escorregadios e de pavimentação atrasada.

Somos conservadores, e até rudimentares, como uma calçada de pedras.

Alguém sempre tropeça.

(O Estado brasileiro pouco foi moderno, mas já se depara com a desconstrução da modernidade política: http://jus.com.br/artigos/25970/estado-fluido)

Avançamos sempre para dentro, deixando roças abandonadas, rotas e humanidades esquecidas pelo “progresso”. Rumo à fronteira verde, a destruição era (e é) deixada para trás. O resultado foi um capitalismo que empobreceu. Sem conhecer a liberdade, combinamos capitalismo com escravidão. Outra notificação veio com o capitão do mato, mesmo depois - sem a presença ostensiva da negação escravagista - porque nunca cansou de perseguir os Capitães de Areia (do romancista Jorge Amado). Aliás, desde Graciliano Ramos, escritor da miséria da vida real (Vidas Secas) e relator dos porões do Estado (Memórias do Cárcere) – e preso sob a acusação de ter participado da Intentona Comunista (1935) –, pobres e subversivos vêm sendo enclausurados como inimigos de Estado. O apogeu foi o Golpe Militar de 1964, ao enclausurar presos comuns com presos políticos deu origem ao crime organizado.

Não é de se estranhar que Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes – cada um a seu modo – reivindicassem uma Revolução Burguesa. O capitalismo precisa de homens livres – que alimentem a produção com seu consumo – e, para tanto, é necessária a fabricação do Estado de Direito. O país foi feito sem conhecer a palavra “direito”; porém, daí, pulamos diretamente ao Direito Civil regulador de posses e de propriedades (notabilizando-se o Código Civil de 1916), quando em verdade precisávamos do Direito do Trabalho. No Brasil, o tardio homem do trabalho era (é) tratado como ex-escravo. O patronato – a mesma estratificação social e política que se “adonou” do Poder Público – queria (quer) produção com resignação. Lutas sociais são subversivas: “quem madruga, Deus ajuda”. Portanto, trabalho – mais-valia e não, propriamente, o direito sempre foi o lema, a ideologia e a prática do poder.

A Revolução de 1930 – “industrializadora” – manteve as mesmas hostes de poder: latifundiária, cafeeira, conservadora e/ou reacionária (nos ensinou Boris Fausto). No capitalismo de antanho, que recusa a taxação sobre grandes fortunas, o colonato sobrevive com a excrescência senhorial do laudêmio: um percentual pago para cada negociação de determinado imóvel. A chamada Taxa do Príncipe – 2,5% pagos para a família real, no Rio de Janeiro – é um simples exemplo do latifúndio urbano brasileiro.

(Vendo-se assim, não só herdamos um Estado de Direito Autóctone, como aplicamos incondicionalmente o preconceito social e, inconstitucionalmente, a negação do Estado de Direito formal: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/14672-14673-1-PB.htm).

(Não há exagero em se falar de um Estado orquestrado pelo antidireito, como na sugestão de Franz Kafka e seu Estado K.:  http://www.sociologiajuridica.net.br/lista-de-publicacoes-de-artigos-e-textos/45-direito-e-ficcao-/127-estado-k-ou-o-povo-dos-camundongos).

A cultura macunaímica (de Mário de Andrade) não foi uma escolha – como consciência obsoleta adotada pelo “populacho”, no dizer das elites –, mas sim o resultado do capitalismo tupiniquim. Sem necessidade de um mercado interno para o consumo, o Capitalismo Tardio nunca (ou muito pouco) inseriu o povo, o negro, o pobre, o trabalhador, o mestiço, o produtor social. Quando estes chegaram aos aeroportos – templo da vaidade e da soberbia (a palavra, em si, já é soberba) –, há uma década, houve um levante dos ricos. Os rolezinhos, no Panteão do consumo, geraram pânico social. A mobilização popular, com mais de um milhão ziguezagueando pela Avenida Paulista – centro nervoso do capitalismo especulativo de São Paulo –, deixou o embrião de uma Lei Antiterror, no Congresso Nacional. A política continua “caso de polícia”.

(há muitos brasis, maiúsculos e minúsculos: http://www.debatesculturais.com.br/autores/vinicio-carrilho-martinez/)

(Mas o racismo impera – e até por isso é crime hediondo: http://jus.com.br/artigos/26866/racismo)

Historicamente, nós adensamos e adornamos para onde não deveria ser. Em nosso caso, como se sabe, o crime está na origem. Atualmente, na prospecção sem fim, perto do fundo do poço, vende-se a alma como juiz ou para “ganhar” cargos nos intestinos do poder. Chafurdamos, na jusante e na(o) montante.

            Como não poderia ser diferente, assistimos a cada dia o crime organizado se institucionalizar mais profundamente. O (di)lema do Estado Paralelo é passado. Hoje há um só Estado. De baixo para cima, do sopé da cultura ao ícone do Poder Político, o Federalismo Gangster aplica-se à fractalidade: replicamos em cima, o que vemos embaixo. E vice-versa. É um moto-contínuo. Não temos problema de insumos e, portanto, não cessa a produção de excedentes. Agora, exportamos. Um exemplo simbólico vem da aliança do PCC (maior grupo do crime organizado civil) com a 'Ndrangheta (na ironia grega: Homem Bom), a máfia italiana mais atuante a partir da Calábria. O Hezbollah conclui esse triunvirato: troca segurança por armas. Para os negócios, criou-se uma offshore no Uruguai (levando o dinheiro para “longe das vistas”).

(O PCC pensa com a Razão de Estado: http://www.gentedeopiniao.com.br/lerConteudo.php?news=132883)

(O lumpen quer produzir o direito: http://www.idespbrasil.org/?r=artigosRevista/ver&id=75)

            No outro ponto dentro da curva, o empresariado vai se abastecer no Estado. Sempre foi assim, dirão alguns, sobretudo baseados na forma-Estado do patrimonialismo (Raymundo Faoro). É certo que sim. Porém, diante do que se pode ganhar ou perder com a identidade verde-amarela, o capital internacional não olha mais para o Brasil. Empresas transnacionais desviam seus investimentos para portos mais seguros. Não querem ter suas ações em queda livre, ao verem a logomarca estampa mundo afora envolvida em troca de favores e de propinas. Aqui se paga muitas vezes: na licitação, na expedição do alvará e, se for boi de piranha, também no Judiciário. Restamos, sozinhos, com um Porto Seguro para inglês ver.

(e remetem os ganhos para o exterior, como se fazia no Brasil Colônia: http://www.gentedeopiniao.com.br/lerConteudo.php?news=132871)

            Quem lê o Fausto - na literatura genial de Goethe ou nas outras versões da lenda - não mais se atém ao custo do progresso e da acumulação primitiva do capital. Para nós, a lenda é mito. E o mito é real. Adapta-se, muda de cor, mas está instalado perenemente na cultura. Na lenda do capital, o diabo traído (Mefisto) cobra a eficácia do contrato: “onde está meu bom direito?”. No mito brasileiro, a realidade está muito além da ficção.

(Nossa cultura política carece de virtù ou, mais popularmente falando, de virtudes depoder: http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/viewFile/1146/932).

O Mito do Estado, desde a Grécia antiga, convida a participar do “Banquete dos Deuses”. Se você não recebe o convite, é claro sinal de que está fora do mundo da política. Hoje, depois do butim, regular como relógio suíço, vemos na TV políticos profissionais darem as mãos, rezando em voz alta e agradecendo ao Deus descaído na pilhagem: “Louvo a ti, meu Pai, pela fartura na coleta”. A cultura é uma segunda pele; porém, o mito é uma escama grossa. Quem é culpado, realmente, pela cleptocracia? Quem sempre se apossou do Estado e dos recursos sociais? Nem toda história precisa de revisão, porque não se desmente o óbvio. A nossa, entretanto, precisa ser contada de trás pra frente. Essa história não está na TV ou no livro didático.
 

Vinício Carrilho Martinez

Professor da Universidade Federal de São Carlos

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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