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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

‘Daí a César, o que é de César’.



No Brasil, há uma inteligência política negativa que associa ordem ao militarismo (progresso). Em casos de grave crise política – e que se resolveriam pelo aprofundamento dos mecanismos democráticos e populares, fazendo atrofiar o fascismo constitucional –, as Forças Armadas são lembradas e invocadas em primeira instância. A ultima ratio se torna a prima ratio.

Como se trata de processo ideológico continuado, em determinados momentos há uma pregação clara de golpe militar (tanto hoje, quanto em 1964); em outros ensaios, quando a opinião pública ou as forças políticas internacionais são desfavoráveis, fala-se de uma suposta “intervenção militar constitucional”. Não há nenhuma inserção constitucional que possa legitimar tal pensamento e, por isso, trata-se de pregação de golpe constitucional sem disfarce jurídico.

Este pensamento antidemocrático e inconstitucional, no fundo, não passa de um arremedo histórico que nos remete ao cesarismo, qual seja, invocar-se a figura jurídica do dictador – poder judicial de exceção –, atribuindo-se condições de excepcionalidade política a um magistrado. César no passado e, em nosso caso atual, poderia ser qualquer general com conhecimento sistemático da Lei Marcial.

A tese decisional do poder é simples de se entender, pois tem poder quem decide sobre todas as outras formas de poder. Trata-se, especialmente, de quem decide sobre o poder de exceção, quem tem soberania (poder absoluto) para legislar sobre novas formas de poder e de contenção de outros poderes (democráticos e) não atinentes aos grupos de poder hegemônicos.

Poder decisional implica na dominação hegemônica sobre a legislatura dos poderes de exceção e, é obvio, acerca do seu manuseio. A dominação hegemônica coincide, portanto, com a homogeneidade entre poder e direito de exceção. Trata-se da expansão do “monopólio legítimo do uso da força física” (Estado) para uma sequência de força política que se baseia no uso/abusivo dos poderes excepcionais de controle social e de dominação integral da ideologia, da política, da capacidade legislativa.

Assim, combinam-se adequadamente poder autocrático e direito de exceção – sob o olhar do soberano – no exercício do monopólio legislativo da força física: violência institucional. Nesta fase, já com o apoio das ruas, o processo legislativo – populismo jurídico – não precisa mais das fontes legítimas da justiça. Trocam-se rapidamente, uma vez legitimado o poder de exceção, a equidade, a liberdade, a igualdade, pelo justiciamento que as ruas requerem e que a Constituição de Exceção já autorizaria.

A Constituição brasileira de 1937 – apelidada de Polaca, instituindo o Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas –, e o AI-5, de 1968, após o golpe militar, são exemplos claros do passado que ainda nos atormentam. A Constituição Federal de 1988 ainda guarda instrumentos que ilustram a ação explosiva do poder, como a previsão de pena de morte em caso de guerra (Artigo 5, XLVII).

Diferentemente desse passado/presente, o Estado de Direito atual se curva ou é amoldado de acordo com a decisão dos grupos de poder (dictador) que se hegemonizam com os recursos da exceção. Em certos casos, ainda que não se instaure uma ditadura tradicional – golpe civil/militar, fechamento das instâncias legislativas superiores, intervenção político-administrativa nos Estados-membros –, há evidente concentração de Poder Político e este é tendente ao absoluto.

Como quer a summa potestas, o Estado de Direito de Exceção não reconhece, efetivamente, os sistemas de freios e de contrapesos às manifestações de poder. Diante de toda a mitigação dos direitos fundamentais, o poder decisional torna-se autocrático.

Esta é, sucintamente, a ocupação que se deu, sobretudo no século XXI, à fórmula weberiana do Estado Racional. O Poder Político conta com um corpo técnico-administrativo estável (burocracia, sistemas peritos), controle social legitimado e impessoal (direito), mas que estão a serviço dos grupos de poder que anulam a heteronomia desconfortável à “melhor” racionalidade produtiva.

A meritocracia empresta sua inteligência técnica para que o poder não sofra com os avanços da autonomia requerida por outros setores políticos. A racionalidade política mudou, evoluiu, enfim, para se reposicionar de acordo com a máxima racionalização do poder e do direito; todavia, sob o mando de uma gestão técnica da forma-Estado de Exceção, o direito não reconhece a legitimidade que não advenha do poder controlado.

Sob este cesarismo constitucional, os laivos democráticos perduram; o sistema produtivo e político do capital globalizado precisa de oxigênio, além de que a mínima participação inibe o requerimento da liberdade e do direito de revolução: este que sempre fora preservado como a fonte de todos os poderes, como Poder Constituinte Originário.

Neste caso, contudo, ocorre que o astuto sistema tratou anteriormente/preventivamente de aprimorar suas fórmulas secretas (arcana imperii), a fim de assimilar o próprio ideário democrático e participativo. Sociologicamente, o sistema faz uma fagocitose societal – mediante a capacidade de promover a “mudança esperada” – das proposituras globais de poder elaboradas por seus desafetos. A contracultura do movimento hippie, com a proposta anticapitalista do trabalho artesanal, por exemplo, foi capturada (como trabalho vivo, criativo) e se converteu na mais lucrativa indústria dos acessórios e bijuterias.

Por fim, neste exato momento, a assim chamada dominação racional-legal (racionalidade + impessoalidade), e agora manipulada pelos grupos hegemônicos de poder, transfigura-se como dominação hegemônica de exceção. Por tudo isso, a expressão bíblica, como chamamento à razão da prudência política, nunca foi tão perfeitamente profética, na potência máxima, e contraditoriamente negada em sua lição original: “Daí a César, o que é de César”.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São Carlos

Marcos Del Roio

Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP/Marília

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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