Sexta-feira, 8 de março de 2013 - 14h14
No Dia Internacional da Mulher, o mais natural seria relacionar os significados da vida comum às mulheres. De certo modo, é que veremos no artigo, pois nossa ideia é relacionar o reconhecimento do Outro como reconhecimento da vida comum, em que a mulher (na metáfora) abre as janelas do mundo. Portanto, restringindo as diferenças entre o chamado sistema e o mundo da vida comum. Mas, o caminho não é teórico-acadêmico e sim baseado em metáforas. As metáforas de Amos Óz são sobre as janelas da vida social que se abrem nos romances para todos que aceitam aprender sobre a vida dos outros, em especial das mulheres.
Ultimamente, temos ouvido falar muito de um “terror lancinante” que nos ameaça em cada esquina da vida comum e receosos, mas obrigados, acabamos enredados com as coisas temerosas, quando não tenebrosas. Muitas são elas, mas só para citar: violência, pobreza, solidão, terrorismo, cataclismo do planeta (muita gente morreu pensando no fim do mundo).
Hoje, porém, queremos rever o quadro, olhar pelo outro lado da mesma janela, desembaçando a visão de mundo (ideologia social) como se fora uma vidraça da alma. Nessa espiadela, Amos Óz, um escritor israelense de primeiríssima linha, fala de um “amor lancinante”, mesmo que seja um “amor em tempos de cólera” ou em “tempos sombrios”.
Na interpretação deste texto, quer dizer que a violência é um ato da razão praticada pelo Estado, grupos terroristas, ou a dos simples ladrões e assassinos. Já o amor pode ser dividido em duas categorias, ambas fugidias da regra de que a “razão preza a tudo”.
1) O amor é contemplação, a dor da espera, a esperança que é uma quase-angústia e um desejo incontrolável de ver o Outro. Esse é o amor das mulheres, principalmente se for mãe. É um amor que se dá na cabeça, nos olhos e no coração. Para Amos Óz, o mundo precisa abrir suas janelas, arejar, oxigenar estruturas arcaicas (na razão da mente, no coração e na política). Precisamos de mais disposição para ver o Outro. Mesmo que o antagonismo esteja à flor da pele, precisamos ler o outro:
“Leiam romances, caros amigos. Eles lhes dirão muito. E essas mulheres também devem ler uma sobre a outra. Para saber, enfim, o que deixa a outra mulher na janela aterrorizada, irada ou cheia de esperanças [...] todas as mulheres, em todas as janelas, estão, no final do dia, precisando urgentemente de paz” (Em: http://www.estadao.com.br/suplementos/not_sup74999,0.htm).
2) O amor é puro sentimento, emoção viva, volúpia e força explosiva. Este é o amor de homens e mulheres “numa só carne”; o amor que se torna depravado, amor depravado porque se ama sem condições de posse ou de negação, incontido diante dos dogmas e da “racionalização da moral”. É um amor que percorre todo o corpo, como faísca elétrica que incendeia e corrompe as grades da certeza dos que se julgam sabedores do que se pode ou não fazer:
“Ivria [a esposa], por seu lado, lhe concedeu na cama surpresas que ele não pudera imaginar [...] com a força da fome dela misturada a ternura, generosidade, numa tensão musical para descobrir cada anseio dele. O que foi que eu fiz? Perguntou uma vez baixinho [...] E ele [...] Proporcionava a ela prazeres arrojados e, quando o corpo dela era tomado por ondas de êxtase e seus dentes batiam como se fosse de frio, sentia muito mais prazer com o prazer dela que com o seu próprio [...] Porque ele estava totalmente envolto estremecendo dentro dela. Até que, com cada carícia, apagava-se a diferença entre acariciador e acariciado, como se tivessem deixado de ser homem e mulher no ato amoroso e fossem uma carne só” (“Conhecer uma mulher”, p. 72).
Neste caso, o sexo é um amor sem limites, quando o sexo não é pecado, mas amor pela carne e pela alma do Outro ou, especificamente, da mulher amada. No romance, Ivria é sua mulher, com quem desposa intimidades e romantismo, então, por que deveria se cobrir de rubores?
Do terror ao amor
O que mais emociona, como empatia social, sociabilidade construída no reconhecimento do Outro, é a amplitude moral, humana que o romancista nos proporciona. Em um determinado momento, o romancista faz um paralelo entre uma visitação turística e a leitura de um bom romance: “A leitura de um romance estrangeiro é um convite para visitar as casas de outras pessoas e lugares secretos de outros países” (Amos Óz, 04/11/2007). Depois diz que se você já não é apenas um turista, então, é capaz de parar numa rua e ver uma mulher na janela de sua casa (você é capaz de “reparar”, de “dar atenção”): “Mas, se é um leitor, você não apenas verá a mulher que olha da janela, mas estará com ela, na sala dela, na sua cabeça” (Amos Óz, 04/11/2007 – grifos nossos). O leitor é esta pessoa aberta ao encontro do Outro, capaz da sociabilidade, solidariedade. Como voyeur da alteridade social que a mulher recolhe, aquele que olha o infinito das relações sociais, o leitor, está desapegado à pressa de consumir os dias e as noites na produção material. Só assim o romancista da vida honesta percebe a exterioridade não-compulsiva, obrigatória, determinante, mas amena, contemplativa. Quem vê, como o romancista, uma mulher na janela, sem qualquer sevícia, pode-se ver capaz de encarar o(a) Outro(a) de forma desembaraçada em relação às determinações externas que provém, por exemplo, da superestrutura, das obrigações e das penas, e da coerção da lei social.
Enquanto leitor da vida do Outro, em ação não-invasiva, mas compartilhada dos melhores sonhos e grupo de valores humanos, Amos Óz é sintético, objetivo: recomenda amar à Humanidade. Seguindo-se esta metáfora do “amor da mulher”.
Esta ida até a outra cabeça, ao seu interior, esse desprendimento do “eu-ensimesmado”, é o que traz a abertura para o Outro, para o “eu-ampliado”. A literatura, a educação atenta ao direito do Outro, mais claramente da Outra, são pontes entre as pessoas. Seu reconhecimento nada mais é do que a construção de “pontes morais, sociais, intersubjetivas” entre os seres sociais: “Creio que a curiosidade possa ter uma dimensão moral. Creio que a capacidade de imaginar o outro possa ser um antídoto contra o fanatismo [...] De imaginar, realmente, os amores, os medos terríveis, a raiva, a paixão do outro” (Amos Óz, 04/11/2007 – grifos nossos). Nossa Modernidade Tardiatem pouquíssima curiosidade (pelos outros) e, por isso, sobra hostilidade (ao Outro). Mas é factível, verdadeiro o sentimento que procura no direito o restabelecimento da “arte da aproximação entre atores em conflito de interesses”. Por meio da liberdade de dialogar, é-nos permitido entender porque o aneu logou, o não-cidadão grego, estava excluído da vida: quem não fala, não vive.
O humanismo representado pelo direito do/ao Outro requer a construção de pontes-amigáveis entre os indivíduos – se o direito é, por origem, social, logo, pode-se concluir que só se realiza na relação social. Um direito restritivo, sem o Outro, desconsiderando-se o “amor das mulheres” é uma lei privada, sem esforço, sem repercussão, reconhecimento ou estofo social. Sem a isonomia não há a suavidade necessária à contemplação da vida sem esforço para dominar, nos diria Ítalo Calvino. Portanto, o construtor de pontes é um arquiteto da vida, pois seja literalmente, seja metaforicamente, sem pontes não há fluxo, e sem movimento não há vida. A vida é tudo, menos inerte e os bloqueios de seu livre movimento são, pode-se dizer, a antivida, a antipolítica e o antidireito. Por isso, os gregos clássicos também viam no político um arquiteto capaz de fazer dois mundos antagônicos, contrários, falarem entre si, captando seus sinais, localizando pontos de conexão (e mesmo que o antagonismo esteja à flor da pele).
À procura de um sentido de alteridade
Realmente, parece que o cotidiano nos revela esses e outros usos, porém, não é desprezível o emprego do direito como “expectativa do direito”, ou mais precisamente como pretensão de Justiça. Neste caso, o contraditório nos revela que a figura do Outro é essencial, a expectativa do direito se dá na presença do(a) Outro(a).
Aprender a compreender a si, pela Outra, pelos outros, é aprender a aprender, pois os outros sempre serão outros diferentes (nunca os mesmos), exigindo outras/novas compreensões que não as mesmas já utilizadas — ou se forem as mesmas, que seja com uso diferenciado do anteriormente utilizado.
Neste sentido, a educação (educare) érevelare, uma revelação distinta e radical que nos traz a dimensão mais importante da vida social: o sujeito cognoscente só o é, por intermédio do Outro. Sem o diálogo com a Humanidade não há comunicação com o conhecimento, o medium entre a psique e a vida pública. Com o(a) Outro(a), nossa Antropologia se expande para além do antropocentrismo dos mesmos e é só assim que ousamos experimentar um outro saber.
Este antropo-logos (o EU que se vê com a lógica do ser, porém, pelo olhar do Outro) é o que nos faz desdobrar as instituições para além de suas metas, rever a interface ação/sistema ou o clássico maniqueísmo ação-reação. Isto tanto é rever a si quanto é ver o Outro, tanto é desdobramento quanto é fixação em novos lugares, espaços e tempos. A Antropologia do Outro (portanto, Anthropos) tanto é rever-se, quanto é se posicionar como se fosse o Outro. Porém, isto também nos lembra de imediato que assumir o lugar do Outro nem sempre, quase nunca, é colocar-se no lugar do Outro. Assumir outro lugar, função, personalidade, no fundo, não passaria de mentira, por melhor lustrada que pudesse vir.
Este é o retrato claro que temos na narrativa de Yoel (ex-espião, hábil na arte da dissimulação), personagem central do romance de Amós Oz, ao se referir a um tipo como ele conhecia de longe:
Na verdade, Yoel não gostava desse viúvo modesto, de maneiras agradáveis, de unhas manicuradas com cuidado feminino e com seus ternos de lã e gravatas sérias e conservadoras. Duas ou três vezes atingira Yoel com golpes profissionais mordazes. Nem se preocupou em torná-los mais suaves, nem que fosse só aparentemente. Yoel pareceu encontrar nele uma espécie de maldade adormecida, suave, uma crueldade de gato bem alimentado (Oz, 1992, p. 50).
Como diz a expressão popular: a maior virtude do diabo foi ter levado os homens a acreditarem que ele (o Mal) não existe. Desde então, como se sabe, o Mal anda bem vestido, é falante e bem apessoado, mas alimenta-se da hipocrisia e da crueldade. Por isso, pode tripudiar como este gato bem alimentado de que fala Amos Óz. Todavia, o que é que realmente salta aos olhos: a verdade ou a mentira? Qual a relação ou limite (tênue) entre mentira e segredo (se ambos se configuram pela ocultação da verdade)? A partir do exemplo de Yoel, é claro como o conhecimento traz a verdade à tona, mas é igualmente fácil verter este conhecimento em segredo (a verdade para a Nação é o segredo para o Estado).
Vistas por esse prisma, a literatura e a educação inteligente são infinitas aberturas ao reconhecimento. Mas, para ler o Outro,precisamos de muito mais janelas abertas. Parafraseando mais uma vez Amos Óz, grande parte da tragédia humana (especialmente na Modernidade Tardia) vem da incapacidade da maioria de nós, realmente de quase todos nós, de nos imaginarmos com o(a) Outro(a). por isso, em encerramento com a suavidade das mulheres, Amos Óz tem em mente as lindas imagens da Cabala Judaica, quando diz ao homem mau que “Deus conta as lágrimas das mulheres”, porque elas são sensíveis e porque choram a dor do mundo. Cada lágrima de mulher contém um sofrimento que recolheu da dor dos outros.
Não há algo que me embarace mais, que me faça perder o norte e desnorteado não saber o que fazer, do que ver uma mulher chorar.
Mas só compreendi o porquê disso ao saber que Deus conta as lágrimas das mulheres.
E, por isso, oOutro é ser você, sem deixar de ser Eu.
Por isso também recuperei um texto inacabado para agora publicar, em homenagem às mulheres da minha vida, principalmente pelo amor da minha esposa.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
Bibliografia
OZ, Amós. Conhecer uma mulher. São Paulo : Companhia das Letras, 1992.
______ Quem é a mulher na janela? Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás, p. 04, 11 nov. 2007.
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