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Vinício Carrilho

DITADURA CONSTITUCIONAL - OCLOCRACIA OU GOVERNO DOS PIORES


DITADURA CONSTITUCIONAL

OCLOCRACIA OU GOVERNO DOS PIORES

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)

Professor Ajunto IV da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/CECH

Marcos Del Roio

Professor Titular de Ciências Políticas – UNESP/Marília

A casta do Judiciário[1] – no pós-2016 – faz alavancar o que já se batizou de Estado Patrimonialista (Faoro, 1984)[2], em que acertos e conchavos de classe muitas vezes são apenas ações de identificação ideológica e, portanto, de falsificação da justiça elementar[3].

Todavia, em que pese todo o apoio institucional e ideológico – com força de legitimação jurídica – a casta dos políticos profissionais envolvidos em corrupção e no desmanche da República articula medidas legislativas a fim de coibir, por exemplo, o instituto da delação premiada.

De fato, como está postada atualmente, é um vigoroso mecanismo de tortura moral e psicológica; pois, prende-se primeiro para só depois arguir da delação premial. Entretanto, rever o alcance do instituto para beneficiar quem bafejou a tomada de poder[4] é um ato de golpe institucional dentro do amplo golpe político-jurídico que instituiu a Ditadura Constitucional.

O Instituto da delação deve ser aprimorado democraticamente e não para fortalecer a oclocracia[5]: governo dos piores e dos corruptos. Na mesma esteira, e mesmo com toda morosidade e seletividade, o Ministério Público poderá sofrer retaliações do Legislativo[6], impondo-lhe restrições nas ações investigativas.

            Por obra do golpe institucional que efetivou a Ditadura Constitucional, na cova rasa da democracia, a ultra-direita neonazista já articula a volta do temido CCC (Comando de Caça aos Comunistas)[7]. Do mesmo modo, o pretenso clamor público foi remunerado com dinheiros dos partidos de oposição[8]. Nem as ruas foram legítimas em seu descontentamento.

            No conjunto da obra, o STF (Supremo Tribunal Federal), citado nas gravações do senador Romero Jucá[9], teria razões técnicas para decretar o fim do processo de impeachment[10]. Resta saber se vai fazer isso ou, ao contrário, confirmar o teor das mais graves acusações da história do Judiciário.

            Além de ser anulado o processo de tomada de poder – em que os próprios tomadores de poder são reféns[11] –, um país com estrutura institucional minimamente séria não receberia propostas para a educação nacional provindas de um ator de filmes pornô[12] – em substituição ao lendário Paulo Freire (1983).

            Entretanto, tudo corre desse modo, porque, para a oclocracia, "acordo" não é trama, nem golpe. E esta é a força da hermenêutica vernacular da torpeza na base da cultura nacional. E, assim, este conjunto da obra revela em que nível está se estruturando a Ditadura Constitucional, no pós-2016.

Realismo trágico na Ditadura Constitucional

Nesta corruptela de Gabriel Garcia Marquez (2007), o realismo trágico expressa a cultura da torpeza. A tese inicial é de que "evoluímos" o racionalismo político-jurídico de Hegel (1997) e Weber (1999) em novo patamar do Estado de Exceção: DITADURA CONSTITUCIONAL. "Novo" plano porque esse modelo de Razão de Estado teve início no pós-1789 francês (Agamben, 2004).

Criamos um tipo de Mito da Exceção controlada, com tônus Ético: "o povo anseia pela dominação legal, indiferente ao golpe, porque Macunaíma (Mário de Andrade) espera por vinganças de classe e pelo mensageiro do milagre econômico".

A racionalidade dessa dominação está nos fins: o poder ao salvador que vem do judiciário e do MP. A racionalidade quanto aos meios (Direito, Ética) vigora seletivamente, ou seja, só valem enquanto nós levam ao poder (tomada de poder)[13].

Comparativamente aos EUA, em que vige o bonapartismo (Marx, 1978), com suas Forças Especiais, CIA, Patrioct Act, Lei Marcial, estamos burilando o cesarismo (Gramsci, 2000): renovação legal autocrática, mas sem uso de força bélica (a não ser da Polícia Militar).

O resultado é que vemos formarem-se as bases de uma dominação racional-legal de exceção e de torpeza populista. Não extinguimos apenas direitos fundamentais, é muito mais profunda a reforma autocrática do poder.

Estamos abolindo, com a complacência do Judiciário e a forte ação do MP, os mais essenciais Princípios Gerais do Direito. Vale acrescentar que esta dominação racional-legal, da Ditadura Constitucional, é capaz de se apresentar livre das prerrogativas (e das amarras do poder) do próprio Direito Ocidental.

Sob as escusas de uma suposta internacionalização da violência (terroristas do EI estariam no Rio de Janeiro), apressamos a votação da Lei Antiterror que tem, por mérito, apenas reprimir e criminalizar lideranças de movimentos sociais combativos. Também abandonamos o Estado Laico para melhor servir à máxima de que "a religião é o ópio do povo".

Na Ditadura Constitucional, os operadores do direito e os oradores do poder sabem, com clareza, que difícil não é tomar o poder (o golpe militar faria rapidamente), pois difícil é manter o conquistado (Maquiavel, 1979).

Difícil não é legalizar o golpe, mas sim legitimar o ilegítimo; neste caso, justificar a desconstrução do Direito Ocidental como forma legítima de reconstrução da Razão de Estado já violada no próprio golpe. Viola-se dizendo que a ação violadora servirá para inibir uma violação futura.

Como poucos se interessam pelo direito (em seu realismo trágico), porque obviamente será complexo, é mais cômodo se entreter com o Estado seduzido pela exceção. Não se pode alegar desconhecimento da lei, posto que é pública, mas é comum desculpar-se a indiferença política.

Pois bem, a junção de ambas, ignorância e indiferença formam a base cultural, o substrato, da cultura da torpeza. Enquanto isso, as cúpulas de poder maquínicos/maquiavélicos gestam a nova – mas nobiliárquica – engenharia do poder de exceção necessário à Ditadura Constitucional.

Ditadura Constitucional

A Ditadura Constitucional não se revela somente na compra de sentenças, na absolvição do delegado que estuprou sua neta ou nos gastos de mais de um bilhão de reais anuais, no STJ (Superior Tribunal de Justiça). São velhas práticas conhecidas do patrimonialismo.

A grande diferença está na legitimação, mais do que na legalidade, do cerco ao Político (Arendt, 1991), do desprezo constitucional à democracia. Porém, não é tudo, pois as ocorrências antidemocráticas (inércia seletiva, celeridade na aprovação legal regressiva) são normatizadas, quer dizer, normalizadas e ingeridas na cultura institucional e popular da torpeza.

A expectativa de direito, a fumaça do bom direito, potestas in populo, são substituídas pelo decisionismo, pragmatismo, ativismo judicial servidores do poder. Afinal, não há, não pode haver majestas fora da exceção.

O exército atua, inversamente à CF/88, como força de reserva da PM (Polícia Militar). Seguiu monitorando o MST e outros movimentos sociais durante os preparativos do golpe, e ainda segue, infiltrado. A reboque, segundo o senador grampeado, o exército segue sua sina de golpista e elitista[14].

Na Ditadura Constitucional, o realismo trágico é fortemente midiático, espetacular, explorador do sangue ao vivo do "inimigo combatente" do poder tomado a todo custo. O ex-presidente Lula no aeroporto foi o ápice de audiência.

O Estado Sedutor de Debray (1993) é o da exceção controlada; com o sangue ao vivo nas telas, ninguém nota a guerra civil como produto interno bruto da violenta luta de classes.

Há, portanto, um ajustamento de condutas entre o Judiciário e o poder midiático. Nunca a mídia oficial cometeu tantos abusos ou violação da privacidade. Em consonância, no ápice desse processo, o STF privatizado assiste ao fim do Político, da liberdade, da democracia.

O STF monitorado, grampeado, é refém de seus próprios privilégios controlados pelo Legislativo – e já ajuizado na Lava Jato. Assiste-se, como impassíveis cidadãos do sofá, ao massacre de adolescentes pelos aparelhos repressivos de Estado, porque vemos pela bifocal cultura seletiva da torpeza.

A par disto, poucos se indignam com a ruína do Direito Ocidental[15]– na interpretação e atuação do Judiciário –, primeiro, porque não se sabe do que se trata, depois, porque, mesmo que se conhecesse da matéria, a seletividade da torpeza (exceção) diria quais direitos prestam e quais atrapalham ao Estado. Por isso, pode-se dizer impunemente que "a Constituição atrapalha o PIB".

Possivelmente o primeiro a associar a Felicidade ao Político, Epicuro animou até a Marx – na tese de doutorado. De seus escritos, como em quase tudo, o realismo segue para nós uma utopia ou ironia:

De todas as coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, a razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas [...] Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio [...] Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor? (Epicuro, 1997, p. 45).

            Por todos os ângulos que observemos, o fim do Político se avoluma à expansão incontida e dessocializante do capital (Goethe, 1997), em paralelo à miséria humana e moral que parecem infinitas.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991.

BALZAC, Honoré de.Código dos Homens Honestos. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1995.

DEBRAY, Régis. O Estado Sedutor: as revoluções midiológicas do poder. Petrópolis-RJ : Vozes, 1993.

EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo : UNESP, 1997.

FAORO, Raymundo. O Estado patrimonial e o Estado feudal. IN: Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 6ª ed. Vol. 01. Porto Alegre : Globo, 1984.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia, 1997.

HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O general em seu labirinto. 9ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2007.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti) democrática. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2010.

MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

PETRARCA, Francesco. Triunfos. São Paulo : Hedra, 2006.

PLUTARCO. Alexandre o Grande. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

WEBER, MAX. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol I e II. Brasília-DF : Editora Universidade de Brasília : São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 1999.


[2]“Os mencionados fundamentos sociais e espirituais reúnem-se para formar o Estado patrimonial (...) A moeda — padrão de todas as coisas, medida de todos os valores, poder sobre os poderes — torna este mundo novo aberto ao progresso do comércio, com a renovação das bases de estrutura social, política e econômica. A cidade toma o lugar do campo. A emancipação da moeda circulante, atravessando países e economias até então fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem social, o capitalismo comercial e monárquico, com a presença de uma oligarquia governante de outro estilo, audaz, empreendedora, liberta de vínculos conservadores” (Faoro, p. 15).

[5]Alguns desses sujeitos da nova classe social do capital costumam freqüentar o poder e debater assuntos de Estado, sempre com “diplomacia”: “César foi o primeiro a escroquear sua existência” (Balzac, 1995, p. 58 – grifo nosso). Note-se que divisão de classes também acerta os bandidos, com bandidos ricos e bandidos muito pobres. A diferença está na legalidade que se atribui a alguns e a outros não. Porque, no fundo, na essência das relações sociais monitoradas pelo capital, o que conta é o valor monetário. Não há mais honra ou valor humano: “Hoje, tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador geral, vai defender os interesses de sua província [...] Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos [reais]” (Balzac, 1995, p. 132). A luta de classes realmente é imperturbável! E nos ensina que pobreza e riqueza não são questões pessoais, assim como a honestidade na vida social. Simplesmente, não há escolha a ser feita porque não há autonomia (auto + nomos) diante da mercantilização, mediação das relações sociais pelo capital.

[13]Utilizaremos a chave conceitual “ação social quanto aos fins”, de Max Weber(1999), para entender a relação ou passagem da Razão de Estado (clássica em Hobbes e em Maquiavel) ao Estado de Exceção. Nesta junção se destaca a justificativa da soberania do poder estatal a qualquer custo — neste caso, “os fins justificariam os meios. Portanto, a outra chave teórica complementar, “ação social quanto aos valores”, deve ser tomada a fim de se averiguar se ou quando pode haver a vigência de uma outra ética complementar (senão substitutiva) a esta, em que as justificativas do poder necessariamente tem de se defrontar com as demandas sociais e a legitimidade requerida. No caso da ação social quanto aos valores, adentramos ao campo do Estado Democrático de Direito — este, também como um “modelo típico ideal”, e ainda que aí se encontrem tanto o Estado de Sítio Político – como analisara Marx (1978) a partir de 1848, na França e na Europa insurreta–quanto a versão contemporânea do estado de emergência econômica (nos países de terceiro mundo). Em síntese, deveremos nos deter um pouco mais em elementos como a racionalização, a intelectualização e o instrumentalização (tecnicismo), ou seja, como a Razão de Estado, na forma do Estado Cientificista, utiliza-se do processo de desencantamento do mundo, principalmente ao longo dos séculos XIX e XX(Martinez, 2010).

[15]Estamos jogando fora um legado de milhares de anos, em troca de um pedaço de poder. Tanto Petrarca (2006) – que recomenda prudência a Maquiavel (1979): “vertú contra furore” (p. 94) – quanto o grego Plutarco (46-119), que nasceu na Queronéia e é considerado o “biógrafo da humanidade”, o inventor da biografia comparada, olhavam a história com lentes angulares. Uma das principais narrativas de Plutarco é acerca, não só das façanhas, mas do caráter de Alexandre o Grande (356-323). Aos 20 anos, já indicava grande temperança e sabedoria (e não só a ambição corriqueira dos grandes conquistadores). Com isso, também angariava a simpatia dos sitiados e conquistados — considerado um rei de valor, era magnânimo com amigos e inimigos: seu preceptor ninguém menos do que Aristóteles. Plutarco procurou por um retrato virtuoso de Alexandre o Grande, mas não escondeu que, embebido em vaidade, no fim da vida, revelaria outra perspectiva. A glória o acompanhava: “Mas, cioso sobretudo de mostrar-se generoso para com os gregos, escreveu-lhes que todas as tiranias ficavam, desde então, abolidas na Grécia, e que os povos afinal podiam governar-se por suas próprias leis” (Plutarco, 2004, p. 88). Sua benevolência acompanhava seu governo e seu poder — sendo capaz de gestos sublimes: “Um soldado macedônio conduzia um burro carregado de ouro do rei; a certo ponto, o animal estava tão fatigado que não podia mais suster-se; o soldado tomou a carga sobre as costas. Alexandre, que o viu dobrar-se sob o peso e prestes a deixar cair o fardo, inteirado do que ele fizera, disse: — Meu amigo não te fatigues mais do que for preciso; faze somente o resto do caminho, para levar este dinheiro à tua casa, pois eu te presenteio com ele” (Plutarco, 2004, p. 97).

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