Quarta-feira, 6 de março de 2013 - 16h13
A norte do presidente da Venezuela Hugo Chavéz traz à tona duas realidades políticas: a esquerdalatino-americana e os atrativosde um Estado Autoritário. Porém, hoje traremos a análise para esta realidade em uma metáfora literaria: em algumas obras do lendário escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez.
Assim, é possível indicar que o Estado de Direito na América Latina é, realmente, uma mera expectativa de direitos. Equivale a dizer, antecipadamente, que o Estado não tem tido complacência com a sociedade. Pode-se dizer que esta seja uma constatação que remonta ao início da formulação do Estado-Nação, na América Latina. Como nos ensinou o saudoso antropólogo Darcy Ribeiro:
Na Colômbia este se estrutura como um regime republicano, mas anti-popular, ‘democrático’, mas oligárquico, ‘livre’, mas escravocrata e regido por um sistema de eleições indiretas [...] com pena de morte por delitos políticos [...] Na Venezuela se implantou governos autocráticos que regem a vida nacional ao longo de 150 anos (Ribeiro, 2007, p. 278).
Esta sugestão analítica de Darcy Ribeiro se espraia para toda a América Latina. Atualmente, os riscos são menores, mas as ameaças à democracia mínima são uma realidade apertada.
Na América Latina, a ruptura com a legitimidade popular é a base do Estado Caserna que também se vale do uso extensivo do cárcere para a repressão da oposição política. Se bem que, no caso de Chavéz o apoio popular era imenso, numa clara demonstração do chamado “populismo de esquerda”.
Assim, as forças armadas se metamorfoseiam em guardiõespoliciais e a política se reduz a um cano de escape de práticas policialescas. Como base de todo Estado com manu militari, as forças armadas ganham o status de estrutura social – como estratocracia (stratus = exército). Na América Latina, em épocas de repressão social e política mais acirradas e embrutecidas, as forças armadas tinham como inimigos alguns setores sociais, o que ainda se configuraría como democídio (exterminio social) – especialmente nas grandes periferias.
De modo amplo, o manu militari acabou se revelando um recurso complementar à moral ditada pela corrupção que assegura a fidelidade política: “Com base nesse aparelho militar é que os governos podiam manter-se apesar do estado de guerra civil intermitente que faz espocar 38 revoluções na Venezuela no decorrer do século passado” (Ribeiro, 2007, p. 279). Na Venezuela, antes de Chavéz, perduravam governos à base do poder manu militari, em clara aliança entre o Terrorismo de Estado e os interesses imperialistas: “As empresas norte-americanas disputavam concessões e financiavam revoltas” (Ribeiro, 2007, p. 279).
Em nome da unidade, a sedição seria debelada com sucessivos Golpes de Estado – e com a polícia à frente. Os adeptos de uma lógica-política sem-noção, chegaram a propor a ideologia de um Cesarismo Democrático em que os gestores são carcereiros e assassinos em massa: “Os cárceres se enchem, alguns se tornam famosos, como o La Rotunda. Os carcereiros se tornam célebres torturadores e assassinos” (Ribeiro, 2007, p. 280). Aí está organizado o Estado Carcereiro. Àquela altura os EUA ainda punham seus policiais espalhados pelo mundo para vigiar e perseguir os exilados políticos. A prática que vimos se repetir no Iraque, Afeganistão e também na Líbia, com os mercenários da empresa Blackwater.
Em todo caso, estaria criado um primeiro Estado de Direito Internacional, porém, um Estado de Direito não-democrático, voltado contra a soberania popular e igualmente negador dos próprios baluartes da sociedade internacional. Já na chamada Era Nixon, criou-se uma espécie de internacionalização do nacionalismo, em que as lideranças latino-americanas acabaram rezando cartilhas estrangeiras, especialmente no que concerne à repressão política e à tortura policial: “Os militares cumpriram seu papel subjugador, mas fizeram-se pagar por ele ingressando, com suas famílias, no grupo dominante” (Ribeiro, 2007, p. 287). A repressão policial e militar, portanto, sempre esteve a serviço da manutenção do status quo:
Nessas circunstâncias, a única alternativa de sobrevivência para a oligarquia e o patriciado político e militar passa a ser, ainda mais nitidamente, a manutenção do status quo através da repressão e do terror, pela convicção profunda de que qualquer liberalidade com o povo representará, fatalmente, a sua erradicação do quadro político nacional (Ribeiro, 2007, p. 287).
Essa estrutura de Estado Policialesco, por séculos, extirpou do povo o direito à participação política. A América Latina é palco de um Estado Sanguinário, dos tempos de Bolívar até o final dos regimes militares. A partir da década de 1980, esse estado de coisas evoluiu para uma estrutura de grupos milicianos, de notório achaque ao crime organizado. No entanto, os grupos milicianos de extermínio remontam aos anos 70, no ápice da repressão militar, com os denominados esquadrões da morte – tão bem denunciados pela Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, com a coragem do jurista Hélio Bicudo. Esses grupos massacravam pobres e marginalizados, alguns criminosos, mas também os esquerdistas que não compactuavam com a tentativa de limpeza social. Daí em diante, viram-se ladeados no mesmo cárcere presos comuns e presos políticos. Portanto, o crime organizado deita raízes na repressão política. Como nos retratou Gabriel Garcia Márquez, o mestre da literatura latino-americana, o exilado e generalíssimo Simon Bolívar tencionou a angústia do desamparado e do desterrado:
– Vamos embora – disse. – Voando, que aqui ninguém gosta de nós. Por tê-lo ouvido dizer aquilo tantas vezes e em ocasiões tão diversas, José Palácios não achou que fosse para valer, embora os animais estivessem preparados nas cocheiras e a comitiva oficial começasse a se reunir (Márquez, 2007, pp. 11-12).
No romance O General em seu Labirinto – retrato melancólico de alguém açodado pelo desterro –, G. G. Márquez traçou os últimos tempos de Simón Bolívar. Como escreveu Michelet (1988), este Estado Policial é uma realidade que nos força a regressar às elites do poder. Na América Latina e no Brasil, salvo exceções, esta ainda é a regra. Por fim, ainda há uma carnavalização da política e do poder. Com Octávio Ianni, essa mesma ironia calcinante de meias-verdades teria uma força estrondosa em Garcia Márquez, assim como em outros tantos “artistas da vida e da política”, revelando-se em mil detalhes e denúncias de depreciação do poder social e estatal não legitimados. Como se não restassem “pedras sobre pedras” em que se pudesse assegurar regularidade ao poder ditatorial:
Toda ditadura começa a ser destruída no momento em que o povo, operário, camponês, mineiro, empregado, funcionário, faz uma piada sobre o ditador [...] A piada é uma fantasia popular [...] O humor gera o riso e solapa a pretensa seriedade e eternidade da mais poderosa tirania [...] O criado negro representa o Supremo com a mesma autenticidade, a ponto de este se reconhecer na paródia. Há uma carnavalização do tirano e da tirania [...] A vaca passeia nos salões do palácio e pasta as suntuosas cortinas e os solenes tapetes (Ianni, 1983, p. 100).
Na América Latina, o Estado Penal manifestou raízes profundas e suas polícias, historicamente, não ultrapassaram os limites da propriedade das oligarquías:
– Vamos embora – disse. – Voando, que aqui ninguém gosta de nós. Por tê-lo ouvido dizer aquilo tantas vezes e em ocasiões tão diversas, José Palácios não achou que fosse para valer, embora os animais estivessem preparados nas cocheiras e a comitiva oficial começasse a se reunir (Márquez, 2007, pp. 11-12).
Estado de Emergência Política
De outro modo, apensado ao início da configuração de nossa constituição política, temos Bolívar. Oposto à tradição do terror político e do seu contínuo e permanente Estado de Emergência Política, afirmou-se como seu grande líder Simón Bolívar.
Simón Bolívar, o Libertador, o que sonhou com a unidade latino-americana, conheceu o exílio desde que entrou para a vida pública (1812) e assim foi até sua morte, sem asilo político em 1830. Como muitos, fez ecoar no tempo as vozes dos exilados. Sua vida pública e privada esteve totalmente entremeada pelo Estado de Guerra. A pior ironia, logo o general descobriria, é aquela que prolonga o próprio exílio – sobretudo o exílio em seu país – e que torna o deslocamento e a fuga uma regra. Especialmente porque a fuga para o exílio, até então, deveria ser uma exceção – e não a regra. Bolívar impor-se-ia um auto-exílio em 1815, na Jamaica.
– Vamos embora – disse. – Voando, que aqui ninguém gosta de nós. Por tê-lo ouvido dizer aquilo tantas vezes e em ocasiões tão diversas, José Palácios não achou que fosse para valer, embora os animais estivessem preparados nas cocheiras e a comitiva oficial começasse a se reunir (Márquez, 2007, pp. 11-12).
Como Generalíssico, Bolívar sempre esteve a postos para urdir com gestos fortes na política, a exemplo da decretação da pena de morte para os corruptores dos bens públicos. Em 1824, Bolívar foi nomeado ditador para salvar a República do Peru, em ato solene do Congresso e que se repetiria outras tantas vezes. Bolívar recebeu Plenos Poderes para debelar a guerra civil – deveria agir nos moldes do dictador romano. Porém, em 1825, em outro gesto inigualável, Bolívar renunciaria repetidas vezes à Presidência – justamente ao cargo de Presidente com poderes ilimitados.
Ao confirmar Páez na Presidência, diz-lhe que é legítimo resistir à injustiça fazendo justiça; ao abuso do poder e da força, com a desobediência e a valentia. No contexto estadunidense, esta mesma tese, H. D. Thoreau (1966) denominaria como Desobediência Civil. Com este sentimentalismo, Bolívar dizia que renunciava uma, mil e um milhão de vezes a tal Estado Absoluto. Em 1828, ainda em meio à grave crise na Colômbia, editou um decreto orgânico da ditadura. Neste ínterim Paez discursou para o povo, dizendo que Bolívar aceitaria o cargo de comandante supremo por causa do Estado de Emergência Política.
Nesta situação conturbada, à beira da anomia e da guerra civil, o juramento político, ao mesmo tempo em que exigia que se defendesse a República a todo custo, exprimia a legalidade da pena capital para a traição – como crime de lesa pátria. Bolívar renunciou muitas vezes à tarefa de empreender os Plenos Poderes, assim como recusaria o Estado de Exceção Permanente. Mas, ainda assim via na realização de medidas radicais e severas o destino da coisa pública. É como se só a força pudesse efetivar o espírito público. Por fim, em seu leito de morte, percebeu que a política lhe trouxera um emaranhado tão espesso que só a morte poderia desatar os nós: “Que é isto? Como sairei eu desse labirinto?”, indagou o moribundo Simon Bolívar.
Em seu próprio labirinto, encontrar-se-iam a sacrificada vida pessoal e uma fantasmagoria que corrói a política, esta, como vimos, herdada desde os rincões da colonização. Por isso, a resposta à indagação “como sairei eu deste labirinto”, Bolívar não a alcançaria em vida.
Ler a liberdade
Deve ser dito, ainda, que esta análise muito sugestiva tem as principais elaborações e os melhores romances de Gabriel Garcia Márquez como ponto de referência, a exemplo do Miguel Littín Clandestino no Chile e de Relato de um Náufrago. O que em Octávio Ianni (1991) surgiria como uma verdadeira Sociologia do Romance. Mas há outras relações possíveis, desde que guardadas as proporções, feitas as ressalvas e indicadas as particularidades entre teoria social, historiografia e literatura.
Será, então, num mix de experiências pessoais de leituras avulsas e não-orgânicas que são experimentadas as narrativas aqui retratadas como sendo típicas da América Latina. Estas são algumas das questões que permanecem abertas, especialmente em saber como sairemos nós do labirinto em que ainda nos encontramos, passados tantos séculos. Nosso labirinto é a inconsciência política que nos aprisiona em regimes, estruturas sociais que atuam como realidades anti-políticas, anti-libertárias.
Referência bibliográfica
AMOS Óz. Quem é a mulher na janela? Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás, p. 04, 11 nov. 2007.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1987.
DARWIX, Mahmud. Estado de Sítio. Espanha - Madri : Ediciones Cátedra, 2002.
IANNI, Octavio. Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1991.
LLOSA, Mario Vargas. O falador. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1988.
______ O véu que não é um véu. Jornal o Estado de S. Paulo, Caderno A, p. 22, 07/10/2007.
LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE : Academia Brasileira de Cordel : Ban Gráfica, 2002.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. 18ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2001.
MICHELET, Jules. O Povo. São Paulo : Martins Fontes, 1988.
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sócio-cultural. 7ª Ed. Petrópolis-RJ : Vozes, 1983.
______As Américas e a Civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo : Companhia das Letras, 2007.
THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1966.
Outras obras de Gabriel Garcia Márquez relacionadas ao período de sua vida em que analisa os efeitos do Estado Autoritário na América Latina são as seguintes:
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile. Rio de Janeiro: Record, 1986.
______ El otoño del patriarca. 4ª edição. Buenos Aires: Debolsillo, 2005.
______ O general em seu labirinto. 9ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2007.
______ Relato de um náufrago. 34ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo
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