Sexta-feira, 7 de março de 2014 - 15h07
Ilustração do romance A Peste, de Camus
A condição de todos nós, no Estado, é de calamidade superior às emergências habituais. As rotas de comunicação estão embaixo d’água, faltam alimentos e água para os desabrigados, há pouca assistência pública – policiamento, serviços ordinários da Prefeitura Municipal, etc –; em breve, viveremos uma enchente de doenças: leptospirose, dengue, malária e outras. Será que os medicamentos dessas chagas já foram adquiridos? Qual a estratégia para enfrentar, com racionalidade, o caos que irá se instalar na saúde pública (aliás, uma crise dentro da crise)?
Não aconteceu comigo, mas ouvi muitas pessoas se queixando da falta de policiamento no carnaval. Como não houve carnaval oficial, muitos vizinhos organizaram seu próprio Sambódromo, na frente de casa – o problema é que quatro dias sem dormir não é muito agradável para os outros vizinhos. Quando ligaram para o 190 a resposta foi a mesma: “temos pouco contingente policial porque estamos atendendo aos desabrigados”. O problema é que os desabrigados também se queixam da falta de assistência do Poder Público. A maioria desses desabrigados está em escolas improvisadas e tem pouco do que se vangloriar.
Então, vale a pergunta: onde esteve o Poder Público, no carnaval, se todos se queixam da ausência de prestação do serviço público? Por que divulgar tanto na mídia que as doenças vão chegar e sem decreto? Quer dizer, há um aviso prévio de crise na saúde pública, mas sem a previsão de contramedidas – ao menos não se divulgou na mídia as ações preventivas. Então, por que não aplicar as verbas que já chegaram, após a decretação do Estado de Calamidade Pública, no socorro aos que já perderam tudo?
No interior não há comida e nem água, sobretudo no Baixo Madeira. Além disso, alguns estão ameaçados por ordem de despejo. Quer dizer, em meio a essa crise moral/social, o Judiciário ainda acha tempo para acatar as ações de reintegração de posse nos bairros mais pobres da cidade? Há tempo para ações patrimoniais, mas não há vigilância contra os abusos do Estado Patrimonial – é isso mesmo?
Calamidade
No latim, calamitateimplica em catástrofe e também significa desgraça pública e flagelo social. Por essas e por outras razões jurídicas, desconfio da falta de legitimidade para se decretar Estado de Calamidade Pública. A primeira razão, como já disse, refere-se à falta de assistência adequada aos desabrigados: a condição é de calamidade total, mas o Poder Público parece dormir na ressaca do samba. Onde está o Ministério Público Federal, afinal trata-se de verbas federais, que não se manifesta sobre o uso adequado das verbas públicas, a fim de se aplicar os recursos em benefício daqueles que se afogam em vãs esperanças?
Alega-se ainda uma suposta razão jurídica (Decreto Nº 7.257, de 4 de Agosto DE 2010[1]):
Art. 1o O Poder Executivo federal apoiará, de forma complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública, provocados por desastres.
Art. 2o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:
I - defesa civil: conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a normalidade social;
II - desastre: resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais;
III - situação de emergência: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;
IV - estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido (in verbis, grifos nossos).
Será que se age com desserviço público para se comprovar “incapacidade de resposta do Poder Público do ente atingido” e, assim, garantir-se o status jurídico do Estado de Calamidade?
A ficção copia a realidade
Ainda nesta segunda linha da argumentação, para descaracterizar a justificativa jurídica do Estado de Calamidade Pública, tomo de empréstimo (sempre) o escritor português José Saramago, no romance Ensaio sobre a Cegueira:
É o primeiro caso de uma treva branca que logo se espalha incontrolavelmente [...] Enquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem adequada, a etiologia do mal-branco [...] todas as pessoas que cegaram, e também as que com elas tivessem estado em contato físico ou em proximidade direta, seriam recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios, os quais, a verificarem-se, se multiplicariam mais ou menos segundo o que matematicamente é costume denominar-se progressão por quociente [...] Quod erat demonstrandum, concluiu o ministro [...] do que se tratava era de por de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre-amarela [...] Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos [...] De que possibilidades imediatas dispomos, quis saber o ministro, temos uma manicômio vazio, devoluto, à espera de que se lhe dê destino, umas instalações militares que deixaram de ser utilizadas em consequência de recente reestruturação do exército, uma feira industrial em fase adiantada de acabamento, e há ainda, não conseguiram explicar-me porquê, um hipermercado em processo de falência [...] O quartel é o que oferece melhores condições de segurança, naturalmente tem porém um inconveniente, ser demasiado grande, tornara difícil e dispendiosa a vigilância dos internados [...] Havia soldados de guarda. O portão foi aberto à justa para eles passarem, e logo fechado [...] Por toda a parte se via lixo... (Saramago, 2008, pp. 10-24-45-46 – grifos nossos).
Como descreveu “à justa passagem” José Saramago, vivemos uma cegueira de trava (treva) branca, em nosso Estado e também fora dele. Entretanto, se preferirmos outra linha, temos Camus (2002), narrando a fantasmagoria, o surreal apresentado na peça Estado de Sítio, relembrando perfeitamente essa condição do poder opressivo fossilizado.
Há uma peste
O escritor francês Albert Camus ainda descreveu A Peste. Uma peste sombria que aniquila todos os sentidos de um povo. Pode ser lido como o romance em que descreveu o Estado de Emergência. Em todo caso, com um intuito mais específico, Camus revelou o sentimento vivido por todos que experimentam a imposição claustrofóbica das medidas oportunistas de exceção. Como vemos metaforicamente, busca-se consentimento popular e moral sob a força da chibata – pois, a força/coerção lhe são inerentes[2]:
O HOMEM[3](Ao governador)
Faço questão de obter seu consentimento. Eu não queria fazer nada sem sua permissão porque estaria contrariando meus princípios. Minha assistente vai executar tantas radiações quantas forem necessárias a fim de obter do senhor a livre aprovação para a pequena reforma que estou propondo. Pronta, querida amiga? (Camus, 2002, p. 65 – grifos nossos).
Camus estará revelando o sentido de que o Poder (por mais maléfico que seja) sempre precisa se escorar, amparar no consentimento (senão popular), nas próprias instituições e tradições que o mantiveram até aquela determinada fase – será uma tentativa de ancorar-se na legalidade e assim obter legitimidade. Mas, no fundo, é apenas o esconderijo mal montado de um aparato autoritário, e venha ele ou não sob a rubrica da democracia.
Um Estado Lastimável
Num terceiro caso temos Kafka. Com o escritor de Praga vemos juízes abnegados e resolutos em provar que Josef K. (o personagem principal do Estado sem direito[4]) estava equivocado em sua análise seca e impermeável acerca do Estado de Direito. Vejamos um pouco do conto Sobre a Questão das Leis:
Nossas leis não são universalmente conhecidas, são segredo do pequeno grupo de nobres que nos domina. Estamos convencidos de que essas velhas leis são observadas com exatidão, mas é extremamente penoso ser governado segundo leis que não se conhecem [...] Além do mais é evidente que a nobreza não tem motivo algum, na interpretação, para se deixar influenciar pelo interesse pessoal em detrimento do nosso, pois as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza [...] Há um pequeno partido que realmente pensa assim e busca provar que, se existe uma lei, ela só pode rezar o seguinte: o que a nobreza faz é lei [...] Odiamos antes a nós mesmo porque ainda não podemos ser julgados dignos da lei [...] A rigor é possível exprimi-lo numa espécie de contradição: um partido que rejeitasse, junto com a crença nas leis, também a nobreza, teria imediatamente o povo inteiro ao seu lado, mas um partido como esse não pode nascer porque ninguém ousa rejeitar a nobreza. É nesse fio da navalha que nós vivemos. Certa vez um escritor resumiu isso da seguinte maneira: a única lei visível e indubitavelmente imposta a nós é a nobreza – e será que queremos espontaneamente nos privar dela? (Kafka, 2002, p. 123-125).
Na alusão de Kafka às leis, vemos como o Estado de Exceção sempre rondou as portas (entreabertas?) do Estado de Direito, até tomá-lo de assalto quase que por completo. Este Estado Penal descrito por Kafka, como o mais novo tipo de Estado de Exceção, ainda soube/sabe transformar princípios em privilégios e, ao envolver-se, revolver problemas de mera governança em estatutos ou status de Estado. Kafka sinaliza que o Estado Calamitoso tem por objetivo editar leis que passem a discriminar inimigos e favorecer amigos simpáticos ao poder. Vê-se que a sociedade não está em seus planos e nem que a fonte principal do direito possam ser as tão ímpares necessidades sociais – pois, só lhe convém, de fato, as necessidades do poder ou a Razão de Estado.
O que os três - Saramago, Camus e Kafka - têm em comum é a capacidade de descrever como ficcional a força embaraçadora da realidade que nos aprisiona e sufoca. Alguns estão, literalmente, enterrados nos escombros da calamidade pública; outros, por sua vez, afortunam suas vidas particulares. Infelizmente, em toda desgraça, alguém sempre ganha.
Estado de Incapacidade Pública
Quod erat demonstrandum; “como se queira demonstrar” – diante da calamidade pública vivida pelo povo todo santo dia – há falta de respostas eficientes, legítimas, dignas do Poder Público. Do contrário, estaremos apenas inventando outro factoide jurídico para beneficiar alguns poucos. Toda medida de exceção deve ser pensada e repensada – ainda que motivada por suposto socorro social/ambiental – pois, na maioria das vezes, longe das garantias legais habituais, a exceção costuma criar tão-somente privilégios, meias-verdades jurídicas que obnubilam a realidade política. Em nosso caso, a calamidade decretada evitaria o rigor legal, a exemplo do envio de recursos federais.
Tenho visto homens do Exército e da Defesa Civil em vários pontos da cidade. Há um barco-hospital da Marinha. Parecem fazer sua parte, mas se o povo já doou milhares de toneladas de água e de alimentos, por que nem as forças armadas conseguem entregar os produtos? Sinceramente, não entendo isso. O povo se solidariza, mas alguém se alimenta da enchente.
Outro exemplo: se o combustível e o gás de cozinha podem vir de Cuiabá, por que o aumento abusivo? O Ministério Público Estadual tem capacidade jurídica para investigar essa situação inflacionária, sem inflação real que a justifique?
Há diferenças entre lapidar e dilapidar?
Como se vê, a ideia de Poder Público é um pouco mais ampla do que a habitual.
Deveríamos realmente pensar na criação de outro mecanismo de exceção, no formato de um Estado de Incapacidade Pública. Se bem que, em nosso caso, seria uma regra e não exceção. Por isso, neste Estado de Calamidade Pública, dando-se vazão às medidas de exceção – ainda que ativadas com garantias públicas –, temos de nos certificar de que não estamos criando nefastos privilégios, fortalecendo posicionamentos de antidireito (ideologia) que escondem ou camuflam o real drama social. Particularmente, já não me engano com essa conversa excepcional de que se age em nome do povo desde que o Papai Noel foi embora.
Enfim, retome-se a pergunta inicial: temos um Estado de Calamidade Pública ou o Estado é uma calamidade pública?
Bibliografia
CAMUS, Albert. Estado de Sítio. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2002.
KAFKA, Franz. Narrativas do Espólio: São Paulo : Companhia das Letras, 2002.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito. Jornalista.
[1]Conforme o Art. 84 da CF/88. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução [...] VI – dispor, mediante decreto, sobre:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001).
[2]O que talvez mascare sua situação real de Estado Ditatorial.
[3]Este HOMEM nos remete à figura do novo ditador, e que quase faz uma súplica, cínica, hipócrita, ameaçadora.
[4]Se bem que Josef K. é personagem do romance O Processo.
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de