Sexta-feira, 19 de julho de 2013 - 13h09
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
A ideia global deste item é apontar que o Estado Moderno é resultado de um longo processo de racionalização das relações políticas, como se fosse um produto da cultura política refinado pelo uso crescente da razão, da intencionalidade na produção de significados políticos de natureza “superior”, organizada e, portanto, racionalizada.
Racionalização da política e razão de Estado
É bastante conhecido e difundido o modelo que Max Weber criou para o Estado racional e, portanto, da própria racionalização. Mas, relembremos que o Estado Racional é um modelo ou tipo de Estado que só se desenvolve no Ocidente, pois sua estrutura de sustentação e funcionamento está calcada nas burocracias especializadas e no direito racional. É aí que o capitalismo prospera, porque é aí que a racionalidade deve incrementar a produção e, portanto, a arrecadação estatal. Nesse sentido pragmático é que se diz que o Estado Racional não suporta que o funcionário venha a aprender a fazer, fazendo: o dispêndio é grande e os riscos de erros são maiores do que o desejado. O que implica na colocação de funcionários especializados (técnicos) e na afirmação de que a burocracia é funcionária do Estado e não do governo.
No sentido propriamente jurídico, pode-se dizer que temos um modelo que faz remontar este Direito racional ao direito romano (ou ao Estado Municipal de Roma), modelo que desenvolveria algumas características ainda mais precisas, como:
Num exemplo mais singular, já aventado e que exemplifica bem o excesso do racionalismo, tomemos a relação forma-conteúdo. Em resenha do 6º volume dos Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, José Luís Jobim destaca justamente a dinâmica e a mobilidade que deve haver nessa relação. Em princípio:
... (“pode-se falar de uma prioridade do conteúdo sobre a forma”), Gramsci deu uma resposta positiva, no sentido de que a obra de arte é um processo e as modificações de conteúdo são também modificações de forma, já que o conteúdo pode ser “resumido” logicamente: “Quando se diz que o conteúdo precede a forma, quer-se simplesmente dizer que, na elaboração, as sucessivas tentativas são apresentadas com o nome de conteúdo e nada mais. O primeiro conteúdo que não satisfazia era também forma e, na realidade, quando se atinge a ‘forma’ satisfatória, também o conteúdo se modifica” (Jobim, 3 nov. 2002).
Desse processo histórico, retenhamos como exemplo geral a adequação dos meios aos fins e como exemplos específicos a relação custo-benefício e a planilha de contabilidade por partida dobrada – passos dados em direção a uma Política Econômica Estatal (iniciada como base do mercantilismo). A outra base de sustentação desse Estado de Direito é a burocracia e, em suma, suas condicionantes ainda podem ser vistas da seguinte forma:
A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal. Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e, portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e distribuídas [...] 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo) [...] 3º, a hierarquia das funções[2], o que quer dizer que o sistema administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º, a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público [...] 6º, o direito que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados, eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração (Freund, 1987, p. 170-171).
Com o que podemos concluir que se trata, realmente, de um modelo que se constitui de maneira peculiar no Ocidente, revelando traços e características precisas e bem distintas das outras formas de organização burocrática dos Estados Antigos.
A negação do Estado Mágico
Pois, bem tendo em conta estes pressupostos do Estado Racional, vejamos o porquê de nos reportarmos ao Estado Moderno (saibamos que se trata de um Estado moderno, porque é racional), sobretudo como Estado soberano, centralizado (e centralizador) e apto a realizar os próprios interesses comerciais expansionistas. Porém, iniciemos pela contradição, pelo pensamento mágico que já continha laivos de racionalidade. Na definição de Max Weber (1985), procuremos o sentido da negação no próprio conteúdo do pensamento mágico que, por sua vez, revela a essência do mandarinato:
O mandarim é geralmente um literato de formação humanista, que possui uma prebenda[3], mas carece de todos os conhecimentos em matéria de administração; ignora a jurisprudência, mas, em compensação, é calígrafo; sabe fazer versos; conhece a milenária literatura dos chineses, sendo capaz de interpretá-la [...] um funcionário desta natureza não administra por si mesmo. A administração encontra-se em mãos dos funcionários de sua repartição. O mandarim é mandado de um lugar para outro, a fim de que não consiga se erradicar em nenhum. A ele é vedado desempenhar o cargo em sua terra natal. Em virtude de não compreender o dialeto da província em que serve, torna-se para ele impossível lidar com o público. Um Estado com empregados desse gênero é algo muito diferente de um Estado ocidental (Weber, p. 157).
A partir dessa definição de mandarinato (governo de mandarins) de Max Weber, é possível antecipar que o Estado Racional, portanto, é em tudo diferente do Estado arcaico, mitológico, assentado sobre alguma forma de pensamento mágico (a exemplo do Estado Antigo e até do Estado Romano e, depois, do Absolutismo). É aquele Estado de Direito que não pode ficar ao sabor das interpretações mágicas, que necessita desprender-se das limitações religiosas ou divinas da sociedade, que necessita de interpretações razoáveis, racionais, lógicas, coerentes, possíveis (mais do que verossímeis), técnicas (tecnicistas e tecnológicas, a exemplo datotal informatização eleitoral), especializadas, mecânicas, maquínicas (veja-se a expressão máquina do Estado), “blindadas”[4].
Em síntese, trata-se da caracterização e categorização do Estado que pode ser reduzida à matemática (se preferirmos o navegar é preciso) à relação de custo-benefício que há em projetos sociais em que só a estatística define os níveis admissíveis para a mortalidade infantil. Quando a este modelo fundem-se algumas bases legais e democráticas, teremos, então, o Estado Democrático de Direito. Contudo, em Weber, trata-se da dominação baseada na lei, na dominação legal ou estatutária (também chamada de dominação legal/racional):
Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua idéia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma. A associação dominante é eleita ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são expressas (...) Obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à “lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata (...) a burocracia constitui o tipo tecnicamente mais puro da dominação legal. Nenhuma dominação, todavia, é exclusivamente burocrática, já que nenhuma é exercida unicamente por funcionários contratados (...) É decisivo todavia que o trabalho rotineiro esteja entregue, de maneira predominante e progressiva, ao elemento burocrático. Toda a história do desenvolvimento do Estado moderno, particularmente, identifica-se com a da moderna burocracia e da empresa burocrática, da mesma forma que toda a evolução do grande capitalismo moderno se identifica com a burocratização crescente das empresas econômicas (...) Na época da fundação do Estado moderno, as corporações colegiadas contribuíram de maneira decisiva para o desenvolvimento da forma de dominação legal, e o conceito de “serviço”, em particular, deve-lhes a sua existência. Por outro lado, a burocracia eletiva desempenha papel importante na história anterior a da administração burocrática moderna (e também hoje nas democracias) (Weber, 1989, p. 128-129, 130-131).
Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá detalhar essas atribuições:
1.que todo direito, mediante pacto ou imposição, pode ser estatuído de modo racional – racional referente a fins ou racional referente a valores[5](ou ambas as coisas) – com a pretensão de ser respeitado pelo menos pelos membros da associação, mas também, em regra, por pessoas que, dentro do âmbito de poder desta (em caso de associações territoriais dentro do território), realizem ações sociais ou entrem de determinadas relações sociais, declaradas relevantes pela ordem da associação; 2. que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas [...] 3. que, portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; 4. que [...] quem obedece só o faz comomembro da associações e só obedece ao “direito”[6]; 5. ...que os membros das associação, ao obedecerem ao senhor[7], não o fazem à pessoa desse, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe for atribuída por essas ordens (Weber, 1999, p. 142)[8].
Já a dominação racional, em complemento aos quesitos da dominação legal, pode ser assim descrita:
1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções oficiais, dentro de 2. determinada competência[9], o que significa: a) um âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de serviços obrigatórios, b) com atribuição dos poderes de mando eventualmente requeridos e c) limitação fixa dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das condições de sua aplicação [...] autoridade instituída 3. o princípio da hierarquia oficial, isto é, de organização de instâncias fixas de controle e supervisão para cada autoridade institucional, com o direito de apelação ou reclamação das subordinadas às superiores [...] 4. As “regras” segundo as quais se procede podem ser: a) regras técnicas; b) normas. Na aplicação destas, para atingir racionalidade plena, é necessária, em ambos os casos, uma qualificação profissional [...] uma especialização profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários [...] 5. Aplica-se o princípio da separação absoluta entre o patrimônio (ou capital) da instituição (empresa) e o patrimônio privado (da gestão patrimonial), bem como entre o local das atividades profissionais (escritório) e o domicílio dos funcionários. 6. Em caso de racionalidade plena, não há qualquer apropriação do cargo pelo detentor[10][...] 7. Aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a regra ou até consta no regulamento [...] (Weber, 1999, pp. 142-143).
Weber ainda chama atenção para a necessidade de detalhar a compreensão da dominação burocrática, dentro do quadro administrativo, mas quem deve tomar parte neste quadro burocrático?
1. são pessoalmente livres; obedecem somente às obrigações objetivas de seu cargo; 2. são nomeados (e não eleitos) numa hierarquia rigorosa dos cargos; 3. têm competências funcionais fixas; 4. em virtude de um contrato, portanto, (em princípio) sobre a base de livre seleção segundo 5. a qualificação profissional — no caso mais racional: qualificação verificada mediante prova e certificada por diploma; 6. são remunerados com salários fixos em dinheiro [...] 7. exercem seu cargo como profissão única ou principal; 8. têm a perspectiva de uma carreira [...] 9. trabalham em “separação absoluta dos meios administrativos” e sem apropriação do cargo; 10. estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e controle de serviço (Weber, 1999, p. 144).
Em seguida, o próprio Weber se encarrega de ratificar a tese central sobre a forma de dominação mais desenvolvida racionalmente, para depois externar seu pensamento em uma fórmula:
A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocrático-monocrática mediante documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade — isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados —, intensidade e extensibilidade dos serviços,e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas (Weber, 1999, p. 145).
Neste sentido, ainda cabe ressaltar que tanto os partidos quanto os sindicatos e os movimentos sociais organizados, hoje, têm são enormes bases e/ou estruturas administrativas e burocráticas. Daí também dizer-se que a política foi burocratizada: na história política que nos trouxe da ágora ao palanque eletrônico, há a interposição de planilhas e programas de controle desenvolvidos unicamente para tentar projetar e prognosticar a conduta do eleitor: especialmente com o uso de pesquisas de opinião pública. Para o marketing, pouco importa se na embalagem deve-se encaixar ou embalar um sabonete ou um candidato[11].
De outra forma, pode-se dizer, justamente, que a crítica está em que a razão, a própria lógica, (para ser útil e boa) deve gerar receita e não necessariamente produzir reflexão, conhecimento e postura crítica: na teoria e na prática, é razoável o que é lucrativo, pois o restante é especulativo, é mera interrogação e esta bem pode ser uma interrogação indesejável sobre a pretensa validade da verdade lucrativa e acumulativa[12]. A crítica diz que a razão deixou de ser crítica e que lógico é o que é lucrativo.
Mas será a mesma burocracia – apta à organização racional – a origem das mazelas de uma dominação tão grave quanto outra qualquer? Vejamos se é possível falar-se de um Estado Político não-Público (irracional).
Estado Irracional
No Estado Racional, visualizamos que há um Estado Político (não público) que pratica a apropriação econômica de forma exclusiva, monopolista – resumidamente: Capitalismo Monopolista de Estado. Afirmativamente, esse Estado baseia-se em numeração que impressiona: retumbante, reverberante, pois em todos os continentes a política será quantificada. As maiores democracias do mundo, China e Índia, em números absolutos,têm mais de um bilhão de eleitores, e não são necessariamente qualificadas (são as mais intensas numericamente, mas sem diferenças substanciais nas proposições, temáticas, programas ou projetos de poder).
De forma mais crítica, é um Estado que controla (desenvolve, articula) a economia de forma extremamente racional, produtiva, lucrativa e rentável, mas em meio a um mercado irracional, ilógico, frenético, incontrolável. É o Estado em que a lógica e a razão econômica, acumulativa (de apropriação individual ou de classe), prepondera no interior de sua própria máquina administrativa; mas, já no limite, nem mesmo o Estado é mais capaz de socializar para melhor arrecadar, pois a massa tributária pode tornar inviável a produção. Transformando, por fim, a própria administração ou burocracia em novo tipo ou fração de classe social dominante, uma vez que a burocracia se encontra encastelada no Estado e imprime a seus interesses o status ou a condição de interesse de classe predominante, pois que suas próprias ações são de extrema eficácia quando se trata de satisfazer os próprios interesses.
É um Estado rentável, sobretudo para aqueles que se intitulam governantes, para aqueles que se locupletam da própria máquina do Estado (nesse aspecto, sem dúvida, trata-se de uma expressão de conteúdo e funcionamento do Estado Patrimonial). Sob a ordem econômica há uma razão específica (subjacente, mas viva) e que torna a burocracia, ela mesma, tecnicamente financeirizada. Vejamos isso ainda em Freund (1987):
A burocracia moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real no começo da era moderna. As antigas burocracias tinham caráter essencialmente patrimonial, isto é, os funcionários não gozavam das garantias estatutárias atuais, nem de remuneração em espécies. A burocracia que conhecemos desenvolveu-se com a economia financeira moderna, sem que se possa, entretanto, estabelecer um vínculo unilateral de causalidade, pois outros fatores entram em jogo: a racionalização do direito, a importância do fenômeno de massa, a centralização crescente por causa das facilidades de comunicações e das concentrações das empresas, a extensão da intervenção estatal aos domínios mais diversos da atividade humana e sobretudo o desenvolvimento da racionalização técnica (p. 171-172).
Deste modo, vê-se, é um Estado em que a razão oferece as bases da própria dominação e não mais configura os limites, os obstáculos ou as restrições ao jugo do príncipe, do soberano, quando se supunha que houvesse a passagem das marcas pessoais e individuais para a administração pública, baseada na impessoalidade, neutralidade, abstinência em relação ao privado e (re)afirmativa do interesse público. E, assim, a dominação faz-se de cunho racional e de base legal, pois que direito público e administração pública, nesse marco histórico, coincidem na definição dos termos das finalidades da produção em massa, mas de apropriação cada vez mais individualizada. É óbvio, enfim, que o interesse público acaba submetido à força da apropriação privada ou classista, mas é menos claro como se opera essa lógica de apropriação econômica e de poder – daí a necessidade, a insistência, em focar a burocracia política dos tecnocratas.
A dívida social é quantificável, mas e as soluções também são? É óbvio que não há passe de mágica ou só bem-querer e dever-ser, porém, não há regra ou fórmula econômica (economicismo) que se auto-aplique. Isto é, se a Justiça Social não é auto-aplicável e, por isso, depende tanto de recursos quanto de planejamento, estratégia, projeto e programa político e econômico, é ainda mais óbvio que todo plano econômico responde a condicionantes político-ideológicos. É de se lembrar que há razões que o coração desconhece, porque a razão é pluridimensional. Da mesma forma, sempre é oportuno ter em mente que a razão já produziu o Holocausto e a Bomba H[13].
Até mesmo como mecanismo complementar da tripartição dos poderes, os concursos, especialmente para a magistratura, deveriam vir embutidos de especial atenção ao social, exigindo dos novos juízes mais sensibilidade para o espírito da lei, para a subjetividade – para a formação da livre convicção baseada na função e na relevância social da lei e não na atenção limitada à eficácia normativa, pois que não há norma eficaz sem reconhecimento e acolhimento social. Trata-se da subjetividade que agrega valor (objetivamente, portanto), a exemplo do trabalho voluntário/comunitário/social, pois a melhoria da qualidade das relações humanas (genéricas) transforma o profissional em uma pessoa melhor. Há incremento na produção, (o social é produtivo) porque se o indivíduo é capaz de se doar ao social (genérico, coletivo e difuso por definição) ele também será capaz de se doar à produção (limitada ao fazer laborioso e ao consumo imediato), aliás, diz a regra da lógica formal, quem pode o mais (investir no social), pode o menos (incrementar a produção individual). Mas, mesmo nesse caso, em que se está voltado de coração à solução dos problemas sociais, as medidas tópicas devem ser racionalizadas, equilibradas, pois não há milagres econômicos que se preste à multiplicação dos pães.
Estado Latente: potência natural?
O Fato é que, se a administração é fundamental ao Estado, assim como o direito, é preciso recobrar a consciência de que sem a atividade política, a militância popular, social, sindical, não há vida pública. Historicamente, por exemplo, encontramos a passagem do idiotes (no grego clássico) ao cidadão como forma ou processo dessa intensa racionalização da atividade política. Por isso, até mesmo para que a política não quede burocratizada, insossa, é preciso ativar a potência que há em todos nós, no dizer de Canivez (1991):
Por um lado, pode-se dizer com Kant que a liberdade é o único direito inato que o indivíduo possui. Mas é um direito absolutamente fundamental, no sentido de ser a condição de aquisição de todos os outros direitos: não há direitos (propriedade, livre comunicação etc) a não ser para um ente livre. Por outro lado, o homem em estado de natureza define-se como ser razoável, isto é, não como um ser que já desenvolveu seu raciocínio, inteligência etc, mas que pode desenvolve-los. Define-se, para retomar a expressão de Rousseau, por sua perfectibilidade; é o animal que é razão em potência, animal dotado de razão. O direito natural repousa pois sobre a consciência que o indivíduo tem de sua natureza de ser racional (p. 88).
Dessa forma, ainda podemos visualizar que a formalidade (impessoalidade, imparcialidade), desenvolvida no interior da burocracia, é resultado ela mesma de longo processo histórico da própria razão (ou do engenho humano em criar artefatos e artifícios de certa forma controlados e com certa dose de previsibilidade – o mesmo se daria com a política). Este tipo de engenhosidade, portanto, acabou fornecendo insumo à política cotidiana e ao Estado que se organizava como instituição política. Pois bem, pode-se dizer que a chamada razão de Estado é a primeira construção, mais direta, simplificada e de relativa compreensão, que resultou desse cruzamento entre política e institucionalização. Pois que aí se entendem as motivações do Estado em manter algum sigilo sobre sua base de dados. Na República, por exemplo, a política é racional, lógica, na exata proporção em que há defesa do interesse público (e há dados que se forem revelados podem comprometer a segurança pública).
Mas a racionalidade humana, inicial e fundante, pode-se dizer, está na potência, como capacidade de analisarmos racionalmente a política, visto que somos potencialmente racionais e essencialmente políticos. Como animais sociais e políticos, gerando intencionalidade para o grupo e objetivando a vida social, destacamo-nos dos outros animais sociáveis. A racionalidade política é potencialmente humana, ainda poderíamos dizer, tendo em conta que nem todos participam da política (da vida pública) com efervescência – é de se lembrar que a política para muitos não passa de rumor e, via de regra, de maus rumores. Mas, seja como for, a política implica na condição de criarmos condições públicas, gerais (seguindo o princípio da universalidade), em que se desenvolva o dever de respeitarmos o direito à possibilidade de cada um desenvolver sua potencialidade racional. Isto é, o direito de um implica no dever do outro e vice-versa, e nessa base de universalidade estão, enfim, erigidos os direitos humanos de natureza política. Os direitos humanos são aqui enunciados como concurso histórico do processo de desencantamento e de racionalização infindável do ser político.
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas-SP : Papirus, 1991, 241 páginas.
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4ª ed. Rio de Janeiro : Forense-Universitária, 1987.
JOBIM, José Luís. A obra em processo e os limites da tradição. Folha de S. Paulo, Caderno Mais! : p. 14, 03 nov. 2002.
WEBER, Max. O Estado Racional. IN : Textos selecionados (Os Pensadores). 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1985, p. 157-176.
_____ Sociologia. 4ª ed. São Paulo : Ática, 1989.
[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes – dado de precedência que também subordina a divisão à separação.
[3]Farta remuneração, em detrimento de pouca ou quase nenhuma implicação laboriosa. No popular: mamata, emprego de barnabé.
[4]A arquitetura imponente, os pórticos e portais do Estado tendem a blindar os segredos da estrutura estatal, aliás, mais e mais carros de autoridades já vêm, de fábrica, equipados com vidros fumê e blindagem especial. Sem vitrais, o Estado é indevassável, nebuloso, opaco e ainda que muitos vitrais chamem a atenção para si, mas não permitam que o conteúdo do poder seja devassado.
[5]É de se lembrar que no início do texto há exatamente esta discussão.
[6]No Estado de Direito descrito por Weber, deve-se obediência às regras estabelecidas e adotadas e não ao sujeito, como ocorre na dominação tradicional e/ou carismática.
[7]Neste caso, seriam as autoridades e os superiores hierárquicos do próprio gestor e/ou servidor público.
[8]Há que se ressaltar que o Estado de Exceção inseriu medidas de exceção no coração da regra, mas o fez legitimando-se passo a passo como Estado de Direito.
[9]Refere-se ao direito de agir que alguns têm, em razão da atividade específica que desempenham, a exemplo da magistratura — não se refere a conhecimento, mas sim a esta possibilidade técnica, a esta autorização.
[10]Isto deveria evitar o “culto à personalidade”, a síndrome do pequeno poder, bem como o corpo administrativo não deveria gerar formas de poder pessoal.
[11]Novamente a relação forma-conteúdo. E ainda que já se saiba, há muito tempo, que quem vê cara não vê coração ou por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento (o epitáfio do próprio sepulcro caiado).
[12]Teoricamente (vale dizer, de forma lógica), um povo não pode concluir que o melhor para si é afastar-se do capitalismo?
[13]O Estado acaba uma sombra do que era, miríade em que suas imagens vão se apagando e suas inscrições sobrevivem somente através das metáforas. Vejamos em Debray (1994): “É precisamente porque o Estado é, em si mesmo, invisível e inaudível que ele deve se fazer ver e ouvir, custe o que custar, por metáforas. Chamar a atenção de todos através de sinais combinados, observáveis e tangíveis. Sem essa sinalização, a crença não teria objeto, nem meios de transmissão” (p. 61).
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Ensaio ideológico da burocracia
Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de