Terça-feira, 19 de março de 2013 - 17h11
Faz alguns dias que vejo uma ou outra nota dizendo que Fernandinho Beira-Mar, um dos maiores traficantes e talvez o mais violento assassino que tenhamos conhecido na história recente do país, quer se tornar teólogo. Aliás, ouço isso desde seu último julgamento, quando foi condenado a mais de 80 anos de prisão – fora os tantos anos que ainda para cumprir da pena atual e das condenações que ainda advirão, nos julgamentos futuros.
Aprovado no vestibular da FTBP (Faculdade Teológica Batista do Paraná), Beira-Mar realizará o curso à distância, por meio de apostilas [...] Como já havia um detento cursando teologia dentro do presídio, o capelão sugeriu que se inscrevesse no vestibular [...] A mensalidade, no valor de R$ 242,00, será paga pela Igreja Batista do Bacacheri, que decidiu doar uma bolsa de estudo ao traficante [...] Na semana passada, durante julgamento no Rio de Janeiro que o condenou a mais 80 anos de prisão por ordenar assassinatos, Beira-Mar revelou que estava cursando teologia, admitiu alguns crimes, disse que sofria muito e queria pagar o que deve à Justiça[1].
Se me perguntar se apostaria minhas fichas na teologia de Beira-Mar, diria que não. Que noções ou exemplos de “profecia” teria Beira-Mar para nos transmitir? Porém, condenado a algumas centenas de anos de prisão em regime fechado, em presídios de altíssima segurança, o que ele tem a perder? Imagino como seria o Fernandinho Beira-Mar estudando sobre a vida de Santo Agostinho (o Santo Pecador) ou o Estado Penal, nas aulas de sociologia.
Antes mesmo dessa última matéria já tinha me chamado a atenção este desejo súbito (ou não) de arrependimento ou remissão da alma. Há muito tempo, aliás, ainda em 2011, fiz uma pergunta nessa linha a alguns alunos no grupo de estudos: Fernandinho Beira-Mar poderia se converter à vida social, seria capaz da ressocialização?
Na época, disse-lhes que minha convicção pessoal não me deixava acreditar. O que, diga-se de passagem, não quer dizer nada, porque a ressocialização de ninguém depende mim, depende dele mesmo e das condições objetivas a que estiver sujeito. Todos nós, no fundo, passamos por um processo intenso de ressocialização: quem se habituou a trabalhar durante uma década, de uma forma, hoje é sério candidato ao desemprego se não se amoldar às novas contingências. Lembro-me que um taxista me disse que as “moças” atendentes de chamadas estavam em processo de treinamento, porque o sistema estava sendo informatizado, e algumas se mostravam incapazes de assimilar as novas técnicas. Ou seja, é provável que algumas tenham sido demitidas. No ensino privado – muito mais do que no público – professores são desafiados pelas novas/velhas tecnologias e, se não respondem como querem seus alunos (seus clientes), podem ser reprovados na metodologia e assim também são ameaçados de demissão.
Assim, independente de responder se Fernandinho Beira-Mar será capaz de se tornar um teólogo, pergunto a você leitor(a): “você está pronto para atender à necessidade da ressocialização?”. Quando me mudei para cá, vindo de São Paulo, há quatro anos, sabia que precisaria me “reinventar”. Só eu sei o que foi preciso para ver minha própria ressocialização. Então, você está pronto para se ajustar aos desafios éticos, tecnológicos, culturais, sociais colocados pelo século XXI? Pois é, como se diz, o buraco é mais embaixo.
Sumariamente, a pena de prisão precisa ensinar uma lição básica: restaurar o desejo de ser livre e incutir a vontade de viver em sociedade; mas, hoje é incapaz de ressocializar, portanto, é incapaz de produzir o óbvio: a aspiração de conviver em liberdade. A prisão precisa, no mínimo, incutir o receio de reincidir; para isso, o indivíduo teria de ter apreço pela liberdade; precisaria não querer estar preso, precisaria ver na liberdade a chave que o levaria a viver com aqueles a quem tem maior amor. Para isso, no entanto, precisaria amar a liberdade. A maior ironia, sem dúvida, está em que o preso não queira ser livre, ainda mais porque, em muitos casos, até já matou para ficar livre.
De algum modo, a prisão precisa fomentar o arrependimento pessoal, à espera da reconversão social, para iniciar a construção de novos valores. Ou seja, a prisão só funciona quando impede o regresso da infração criminal, seja pela convicção do arrependimento seja pelo temor de perder a liberdade - sobretudo para aquele que está acostumado a agir sem as restrições habituais da lei e que se sente totalmente livre para fazer o que quiser.
Em nossos tempos modernos, mas muito antigos em vários sentidos, como a falta de bom senso, o Estado Penal supõe que não haja a formação de outra perspectiva, que não seja aquela que motivou o crime. Então, se não há ressocialização, é óbvio que a prisão perde significado.
Contudo, insistindo mais uma vez, é o mais grave, se as pessoas não temem perder a liberdade, se já não presam o desejo de estar libertas, é porque algo muito ruim se passa do lado de fora das grades. Se o preso não se importa de estar preso, é porque a sua vida livre era uma droga. Para o preso, nesta sociedade doente, a prisão não é pior do que a vida da maioria das pessoas. O infrator não quer para si a rotina da maioria das pessoas; mas tem o sonho do consumo. Daí também não se importar se não estiver livre e nem se você ou eu estivermos vivos ou não. É uma doença social muito maior do que saber se o Fernandinho ou qualquer outro inho vai se recuperar. A teologia é o menor dos nossos problemas.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO
Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ
Pós-Doutor pela UNESP/SP
Doutor pela Universidade de São Paulo
[1]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1248704-fernandinho-beira-mar-comeca-a-estudar-teologia-em-presidio-federal.shtml.
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