Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Homo perturbatus


            Quando vejo o rol de barbaridades diárias a que somos bombardeados pela mídia, penso que somos o Homo perturbatus em carne e osso, pois só conhecemos os efeitos que nos traumatizam diariamente. Porém, se hoje a modernidade é pesada, muito em breve, será deveras estranha. Só para se comparar, sou de uma escola em que se debatia a Sagrada Família, de Gaudí, como baluarte da Modernidade Tardia (iniciada no século XIX, só deverá ser completada em 2020). Com vênias à má utilização do trocadilho, hoje somos indivíduos bastante perturbados: um medo social terrível; o terror pela insegurança da vida; o receio pela morte tola e trágica; a insatisfação com o emprego e a desconfiança de todos(as). Enfim, se puxar pelo rosário, teremos uma lista sem fim, em que cada um somaria suas próprias mazelas.

Entretanto, sob um prisma totalmente inusitado, nos próximos cinquentas anos, o homem não irá mais gerar-se naturalmente, serão utilizados sistemas reprodutivos artificiais: “Em escala planetária, a concentração de espermatozoides no sêmen reduziu em 40% nos últimos 50 anos [...] A fabricação de espermatozoides em laboratório a partir de células-tronco já foi realizado em ratos de laboratório, e no futuro estuda-se o útero artificial”[1]. Há crescente precocidade sexual, mas diminuição acelerada dos níveis de interação social. Há pouco, vimos sumir o Homo sociologicus, aquele que não apenas repetia a lição escolar de que o homem é um animal social, mas acima de tudo se comportava como um ser sociável, de fácil e dócil sociabilidade, que precisava da interação e se realizava enquanto ser humano que se socializava no convívio amplo. Mais fácil de visualizar, pensemos no índio in natura ou no homem médio que contava (cantava) sua vida em verso e prosa; para nós, o repentista do interior, o caipira que trova seus causos. Pensemos ainda no narrador de Walter Benjamin ou no bricoleur da antropologia de Lévi-Strauss (“sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si”). Nossos avós, que faziam gambiarras, eram mais ou menos assim.

Saber é poder

O lado curioso, entretanto, é que – como na ciência da reprodução humana – muitos outros pensadores e filósofos sérios já falam de um novo tipo de ser humano, para além das condições globais que determinaram o homo sapiens. Não somos mais o homem que “sabe fazer” (Know How) e que sabe que é capaz de fazer o seu próprio engenho humano: homo sapiens sapiens. No passado bucólico, éramos destinados à era da invenção da técnica e da política –; de certo modo, ainda somos ou acreditamos ser capazes de nos (re)inventar. Há uma expressão em francês que é mais clara: savoir faire-savoir vivre: viver intensamente o prazer do trabalho da criação. É esta condição que já perdemos com o fim do Homo sociologicus.

O homem da técnica e inventor da política (desde o Mito de Prometeu) sabia que era capaz de reinventar parte de sua natureza e do entorno que o determinava. A manipulação genética e o profundo avanço da medicina, da química e de outras ciências auxiliares agora impregnam o homem do seu maior desejo: encontrar-se com Deus. O homem que brinca de ser Deus, modificando geneticamente sua espécie – seja propositalmente em laboratório, seja acidentalmente (sic), em decorrência da quantidade de química que ingerimos todos os dias – está à procura de reprogramar-se, reproduzir-se de modo a escolher e determinar a tipologia que melhor lhe aprouver. Não se trata de debater a raça pura (ariana ou não), afinal, pelo curso atual da Modernidade, este pensamento será natural e ninguém mais dará queixa da ética perdida.

Este homem radicalmente artificial – porque, no fundo, a Humanidade é artificial, se entendermos que a cultura é uma repaginação da natureza –, agora quer redefinir o próprio significado do que é ser artificial. Até agora sempre foi necessário um homem e uma mulher (um macho e uma fêmea) para garantir a reprodução da espécie. Neste futuro próximo é provável que não seja. O homem é radicalmente artificial, pois está em sua raiz ser artificial e não submeter-se à natureza; no dizer do renascentista Francis Bacon: “Saber é poder” (desconfio que ele não sabia muito bem do se tratava). O caso ético, enfim, é bastante complexo e polêmico, pois não envolve apenas o debate na medicina e na manipulação genética nos laboratórios de reprodução assistida. O debate envolve toda a ética moderna, pós-moderna, contemporânea – não importa o nome que se dê – pois a artificialidade já vivida em nossas condições atuais nos guiará inevitavelmente para este destino.

Se não queremos brincar de Deus – ainda mais claramente no futuro – é preciso deixar de lado todos os conservantes e corantes que tingem nossa vida com as cores conhecidas. Seria preciso voltar a um passado não-distante na vida mais natural, de alimentos naturais, do gripo-falante e da água fresca no ribeirão. Todavia, não creio que estejamos dispostos a pagar esse preço e, assim, veremos Deus em breve. Já inventamos um mundo sem a política de Aristóteles e da condição humana do Zoon Politikón – fato absolutamente incompreensível há 50 anos – e, no próximo meio século, teremos fecundação e gestação fora do útero humano. Graças a Deus, não estarei aqui.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito. Jornalista.



[1]
http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/afp/2014/03/10/biologo-diz-que-homo-sapiens-passa-por-uma-evolucao-inedita.htm.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

O terrorista e o Leviatã

O terrorista e o Leviatã

O que o terrorista faz, primordialmente?Provoca terror - que se manifesta nos sentimentos primordiais, os mais antigos e soterrados da humanidade q

Direitos Humanos Fundamentais

Direitos Humanos Fundamentais

Os direitos fundamentais têm esse título porque são a base de outros direitos e das garantias necessárias (também fundamentais) à sua ocorrência, fr

Ensaio ideológico da burocracia

Ensaio ideológico da burocracia

Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)