Quinta-feira, 22 de outubro de 2015 - 08h30
Em parte a culpa é da mídia – também não-esclarecida sobre o tema – em confundir dois institutos político-jurídicos completamente distintos, com atores, fundamentos e rotinas diferentes. E, se os meios são diversos, é óbvio, os fins também não coincidem, e podem até colidir.
Em sua origem, o impeachment tinha natureza penal. Na Inglaterra do Renascimento, alguns encarregados do Poder Político poderiam ser punidos criminalmente e/ou financeiramente por seus atos. No Brasil, o instituto jurídico tem o cunho de defenestrar o mandatário executivo envolto em crimes de responsabilidade direta.
A Constituição Federal de 1988 regulamenta o processo de afastamento do mandatário da Presidência da República no artigo 85. Como ato próprio do Congresso Nacional (artigos 51, I e 52, I da CF/88), a natureza jurídica do impeachment se respalda na democracia representativa.
Já o artigo 86 da CF/88, caput, exige o cometimento de crime(s) de responsabilidade, ou seja, a comprovação dos supostos crimes deverá ocorrer na vigência do mandato:
“Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade” (in verbis).
Acusar e julgar por “crimes de responsabilidade” implica em avaliar e censurar ação direta, quer dizer, dolosa, praticada com intenção. Para tanto, requer-se a prova material e cabal do ato/fato censurável publicamente e juridicamente. O que resultaria na combinação mínima entre autoria e materialidade.
Portanto, tem de haver comprovação do dolo, da ação direta de quem se quer levar ao impedimento do mandato. Não basta alegar-se que, supostamente, tinha conhecimento do mal-feito. Os fatos devem dominar a acusação, mas a suspensão do mandato se promove por meio de provas irrefutáveis e não meros indícios.
Aqui não cabe a tese do senso comum, de que “onde há fumaça, há fogo”. Deve-se, ao contrário, buscar o regimento na máxima do fumus boni iuris: onde há fumaça do bom direito, há justiça. E não justiciamento político com base no populismo jurídico.
Já pensou prender cada empresário pela responsabilidade do preposto sonegador de impostos? O presidente da Câmara seria réu confesso em cada corrupção de deputados mal-intencionados? Serão presos todos os pais que reconhecem nos filhos, criminosos contínuos? O chefe da Polícia Federal será responsável por cada policial? O juiz responderá pelas ações de cada cartorário – ou, o pior, estagiário – a ele subordinado?
O que se reafirma no § 4º: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções” (grifo nosso). Pois bem, atos estranhos ao seu mandato são atos de governo anterior, ainda que tenha sido reapossado por força da reeleição. Não é possível, pela lógica mediana, remover um rei de seu reinado anterior – seria como inventar a máquina do tempo para punir o passado e não o presente.
Recall político
Do inglês, “chamar de volta”, recall implica em desapossar o sujeito de algum pertence. Desapossar para ressarcir com outro(s) objeto(s) semelhante(s), de igual valor, com função equivalente. Se metamorfoseado para a seara política, o assim chamado “recall político” seria uma consulta popular, obrigatória, em que o cidadão-eleitor revogaria o poder concedido anteriormente.
A natureza jurídica do recall político remete à democracia direta. Não há previsão no direito brasileiro. Portanto, impeachment e recall político são institutos diferentes e ainda que aparentemente o resultado equivalha.
Outro instrumento político-administrativo sempre relacionado aos sentidos e mecanismos apontados é o Accountability: funciona como vetor de divulgação e de transparência dos atos/fatos de relevo da Administração Pública. Grosso modo, poderia ser simbolizado pelo Ouvidor ou Ombudsman que tem seu trabalho divulgado em portais de livre acesso e com total “transparência”. Porém, ao contrário do Ombudsman, o Accountability é um procedimento político-jurídico de responsabilização administrativa.
Dois outros derivados político-jurídicos são o Recall Judicial e o Veto Popular, ambos utilizados nos EUA. O primeiro é dirigido ao Poder Judiciário – em que o povo retoma para si o poder legislativo, interferindo em determinadas decisões judiciais singulares, de primeira instância –, e o segundo impacta o Poder Legislativo: como instrumento que habilita ao povo referendar ou não o produto da própria atividade legislativa.
Trata-se de uma aferição das consequências sociais dos erros e dos acertos das decisões judiciais, promovendo-se a judicialização da política – e politização do direito – com base na democracia direta (recall judicial); ou desautorizando lei manifestamente anti-social, de interesse exclusivamente político, pessoal ou do capital (veto popular).
O desenvolvimento e a aplicação mais constante desses instrumentos jurídicos propiciaram ou anteciparam uma forma muito instigante/interessante de controle popular de constitucionalidade ou de controle externo e popular do próprio Poder Judiciário.
De certa forma, de posse legal e legítima do recall judicial e do veto popular, o cidadão se torna “intérprete da Constituição”, como alegado pelo jurista alemão Peter Häberle. O povo participa, assim, de forma direta na revisão do Poder Constituinte Derivado. No entanto, também não são previstos pelo direito nacional.
Desse modo, desfeitas as confusões – ainda que a argumentação jurídica fixe-se na lógica da lacuna (exceção) –, conclui-se que no Brasil de 2015 está em curso um processo de impeachment político, ou seja, com manipulação jurídica e traição da Carta Política.
Desde 2003, com a eleição de Lula para presidente, a crise política se converte, sucessivamente, em crise econômica – isto é, em crise do capital –, e assim recobre-se de crise social e jurídica[1].
O impeachment está sendo usado como chantagem política e moeda de troca – votos por indicação em ministérios e cargos –, além de pontuar como medida de exceção contra o poder estabelecido por desagradar grupos de poder/pressão representativos do capital; mas, neste momento, não atendidos pelo Estado.
Em suma, instaurar outra hermenêutica para modificar a previsão constitucional – o impeachment com interesse evidentemente político – ou inventar a aplicação de um instituto que não abrigamos internamente (recall político), ambos equivalentes em antijuridicidade, configura golpe constitucional que não se disfarça. É a quebra total na confiabilidade, previsibilidade do Estado de Direito.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São Carlos
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de