Sexta-feira, 8 de novembro de 2013 - 18h59
Em tempos de necessária reforma política, poderíamos pensar nas propostas que viriam pela iniciativa popular. Contudo, no Brasil, infelizmente, as mudanças mais significativas da Constituição não podem ser provocadas pela vontade popular – não podem porque o legislador constituinte, conservador, não permitiu (e os juristas, também conservadores, não desafiam a lógica de poder prevalecente). Nossa democracia é limitada, constrangida à representação (leia-se políticos profissionais) e isto se deve à nossa longa história de opressão social e de manipulação política elitista.
A democracia brasileira é assim definida no artigo 1º, parágrafo único da CF/88: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Por meio de representantes ou diretamente quer dizer que são complementares, não-subjugados. Depois, no artigo 14 (in verbis):
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;
III - iniciativa popular (grifos nossos).
Novamente, o texto é taxativo: a soberania popular será exercida mediante a iniciativa popular. Pela lógica imposta pelo Estado Constitucional, a soberania popular não pode ser restringida em desacordo às necessidades, aos direitos, às iniciativas populares. Como é que a soberania é popular se o povo não é legitimado a ser o agente de transformação e de acomodação do Poder Político? Caberia vislumbrar o prisma da interpretação teleológica da Constituição: “A interpretação teleológica leva em contemplação a finalidade da norma constitucional, por meio da apuração dos valores tutelados por ela” (Peña, 2003, p. 139). Desde Rousseau e Montesquieu sabemos que a República deve ser Democrática (ou será uma tirania ou, como vimos no século XX, uma ditadura constitucional disfarçada de legalismo). Desde os primórdios do liberalismo clássico e a célebre teoria da tripartição dos poderes (que deve estimular, salvaguardar a soberania popular), está prevista a legitimação do Poder Político.
O que levou Locke a pensar que a fundamentação política na lei natural discernia o bem do mal, o que seria aprovado ou rejeitado: “Logo depois, Locke introduz uma precisão: determinar quem deve governar equivale a determinar quem tem o direito de governar: tratamos aqui do fundamento da legitimidade do poder” (Bobbio, 1998, p. 158 – grifos nossos). Nisto, política, moral e necessidades formam um conjunto: supõe-se uma reforma da política. Seu objetivo será combater o mau governo: “A proposição de Locke, desde suas primeiras linhas, é contra o poder fundado na força, o poder despótico, o poder que tem o senhor sobre os escravos”[1](Bobbio, 1998, p. 159). Portanto, o poder civil é diferente do poder paterno e do poder despótico — o poder civil tem um fundamento de legitimidade: anuência.
Mesmo assim, o artigo 61,§ 2º da CF/88, discrimina penosamente a capacidade da iniciativa popular, pois ainda lhe prevê uma régua quantitativa exorbitante (n verbis): “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles” (grifos nossos).
Como vemos, a ordenação das possibilidades de emenda à Constituição tem uma relação direta com a Teoria da Representação. Como se faz uma análise restritiva, positivista, imperiosa da representação, as mudanças mais significativas ao poder de Estado não são extensivas à participação popular. A representação sai fortalecida – com demérito para o instrumento da democracia direta – quando se limitam desse modo a ação da iniciativa popular. Quando se trata da modificação constitucional, o povo – por extensão a soberania popular – não é legitimado (constitucionalmente) a modificar a Carta Política:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
Não deixa de ser curioso que, no Estado Democrático de Direito, o povo não seja legitimado a modificar a estrutura do Poder Político que dirige sua vida regular. No Brasil, a iniciativa popular é apresentada pelo constituinte brasileiro (assim como pela maioria dos juristas) como uma exceção, visto que a regra se estabelece pela democracia representativa. Ou seja, se o que deve vigorar como principal é a representação, logo, o principal – que também é a Constituição – não pode ser emendado pelo secundário e assessório, que é a iniciativa popular. A iniciativa popular é do tipo geral, aplicada apenas às modificações infraconstitucionais.Existe uma posição doutrinária que afirma a legitimidade da tese de que a iniciativa popular, além do projeto de lei (art. 61, § 2º, CF/88), poderá propor também projeto de emenda constitucional:
A iniciativa popular não se aplica aos projetos de emenda à Constituição. É que a proposta de emenda envolve, à luz do procedimento que caracteriza a rigidez constitucional, iniciativa própria e diferenciada de outras espécies normativas. Assinale-se, contudo, posicionamento em sentido contrário, como o de José Afonso da Silva, para quem não está excluída a iniciativa popular numa matéria, que tem por base a regra de que todo o poder emana do povo. De qualquer modo, o uso desse instituto, no âmbito da emenda constitucional, vai depender do desenvolvimento e da prática da democracia participativa, um dos princípios fundamentais da Constituição (Carvalho, 2009, p. 1195 – grifos nossos).
Para tanto, seria necessário recorrer ao método lógico-sistemático:
Qualquer proposta exegética, objetiva e imparcial, como convém a um trabalho científico, deve considerar as normas a serem estudadas, em harmonia com o contexto geral do sistema jurídico. Os preceitos normativos não podem ser corretamente entendidos isoladamente, mas, pelo contrário, haverão de ser considerados à luz das exigências globais do sistema, conspicuamente fixados em seus princípios. Em suma: somente a compreensão sistemática poderá conduzir a resultados seguros. É principalmente a circunstância de muitos intérpretes desprezarem tais postulados metodológicos que gera as disparidades constantemente registradas em matéria de propostas de interpretação (grifos nossos)[2].
O eminente jurista Paulo Bonavides destaca a capacidade deste método em não somente clarificar preceitos jurídicos, mas sobretudo oxigenar o significado rígido e ultrapassado do próprio direito: “É a interpretação lógico-sistemática instrumento poderosíssimo com que averiguar a mudança de significado por que passam velhas normas jurídicas” (Bonavides, 2002, p. 405). A fim de prever a possibilidade de mudança constitucional, invoca o jurista alemão Konrad Hesse: “A Constituição deve ser estável, mas não estática, porque se constitui em organismo vivo” (Tavares, 2007, p. 52). Do mesmo já advertia o jurista alemão: “Conflitos são capazes de preservar do entorpecimento, de ficar parado em formas superadas; eles são, embora não sozinhos, força movente, sem a qual transformação histórica não iria se efetuar” (Hesse, 1975, p. 31). É sintomático que neste momento da reflexão, Hesse faça uso de uma concepção de Ralf Dahrendorf, um dos maiores sociólogos alemães. Dahrendorf (em A nova liberdade) adverte para o engano de se acreditar que nas sociedades modernas o poder e a violência são controlados racionalmente pelo Estado:
A realidade da sociedade em expansão [...] É também determinada por seus métodos de contrair acordos, como os que desenvolveram, especialmente nos últimos trinta anos, isto é, por uma mistura de falsa autonomia e poder bruto [...] Autonomia neste sentido significa dissociação das normas legais ligando todos os cidadãos, ao definir um mundo separado das regras; e o poder é aquela versão impessoal da violência, que fere ao criar condições dolorosas, em vez de infligir dor diretamente (1979, p. 31).
Em seguida, Dahrendorf faz a defesa de um liberalismo participativo e para tanto, há várias fórmulas. Dentre as quais, emprega a que apresenta a noção de cidadão como indivíduo crítico: “O que precisamos para converter o potencial de sociedades avançadas em realidade é um público político geral, que permita a indivíduos críticos expressarem sua impaciência e seu desejo por liberdade num mundo novo” (1979, p. 35)[3].
Com o que vimos, é possível afirmar que a interpretação sistêmica garante o Princípio da Unidade à Constituição e, extensivamente ao princípio da soberania popular, dever-se-ia reconhecer a legitimidade da iniciativa popular propor emenda à Constituição. Enfim, se a Constituição é uma unidade, uma articulação lógica, e se a iniciativa popular é um instrumento expresso da soberania popular, não há coerência em se menosprezar a democracia direta como meio legítimo de se modificar, emendar a Constituição.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. (2ª ed). Brasília : Editora da Universidade de Brasília, 1998.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. Malheiros Editores Ltda : São Paulo, 2002.
CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito Constitucional. 15 ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2009.
DAHRENDORF, Ralf. A nova liberdade. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1979.
HESSE, K. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Tradução publicada pelo Departamento da Imprensa e Informação do Governo da República Federal da Alemanha, 1975.
PEÑA, Guilherme. Direito Constitucional – Teoria da Constituição. Rio de Janeiro : Lumem Júris : 2003.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo. 22ª ed. Malheiros Editores Ltda : São Paulo, 2003.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo : Saraiva, 2007.
japnt@hotmail.com
[1]Na diferença com o poder paterno segue Aristóteles.
[2]Em nota de Geraldo Ataliba: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_12/razoab_const.htm.
[3]Porém, Dahrendorf, ao invés de avançar esta noção, parte do conceito legal e aqui não se sabe muito bem qual é a participação dos indivíduos críticos. Pois, sabe-se perfeitamente que estes indivíduos podem ter seus direitos políticos e sociais suspensos. E o direito, por definição, não é crítico — sendo antes, uma disciplina axiológica. O que por sua vez pode não assegurar a validade de tal “status legal”, uma vez que: “Os direitos legais dos cidadãos têm de ser suplementados, primeiro, por direitos políticos, que incluem o direito de associação tanto quanto o de sufrágio, depois por direitos econômicos e sociais que dão às pessoas um mínimo de garantia de status” (1979, p. 35). Por fim, assumindo-se na posição de liberal, Ralf Dahrendorf diz da necessidade de uma segurança social mínima, ou seja, acaba admitindo a desigualdade na base da cidadania: “Por outras palavras, nada há intrinsecamente errado sobre as desigualdades de renda, de status adquirido em qualquer sentido. É verdade que a cidadania efetiva requer a criação de uma rede de segurança abaixo da qual a ninguém é permitido cair, na verdade um status comum básico; é também verdade que a cidadania requer a diminuição do status daqueles poucos cujas fortunas, com frequência herdadas, permite-lhes ameaçar os direitos de cidadania dos outros; mas há, e precisa existir, muito espaço entre o chão comum dos direitos e o teto comum do poder privado.” (1979, p. 43).
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de