Segunda-feira, 2 de setembro de 2013 - 14h17
Vinício Carrilho Martinez.
Professor Adjunto III (Dr.)
Departamento de Ciências Jurídicas
Universidade Federal de Rondônia
RESUMO: Em 2013, completamos 500 anos de publicação do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel – o primeiro manual realista de Ciência Política e que não se contentou com a mera Filosofia do Estado. Poucos livros e seus autores foram mais lidos e debatidos, amados ou odiados do que ambos. Maquiavel propõe uma interpretação em que o homem é o centro da relação de poder. O Renascimento, aliás, seria marcado pelo individualismo. Apesar de propor uma Antropologia do Poder, com base no centralismo, não está clara, no Príncipe, a ideia de que o Estado é fundamental à Humanidade: o urstaat. A Razão de Estado é uma política obrigatória, não há Humanismo sem a proteção do Estado unificado, mas esta seria a pista do urstaat?
Introdução
Maquiavel (1469-1527) serviu ao Estado livre da República de Florença como chanceler e secretário. Este período de sua vida durou 18 anos. Em 1512, Maquiavel foi preso e torturado e em 1513 escreveria O Príncipe, já no exílio. Nicolau Maquiavel, como pensador politico, e o livro O Príncipe mudaram a história da Humanidade. O problema é que muitas tentativas de simplificação de sua leitura acabaram na vulgarização e, por isso, O Príncipe também foi lido como manual de autoajuda. O mesmo recurso teria sido utilizado com a estratégia de Sun Tzu e Sun Tzu II (apelidado de Sun Bin, O Mutilado)[1]. Lembra-se muito das recomendações da violência, da astúcia e da traição, mas pouco se fala dos seus ensinamentos acerca da Prudência.
O método do realismo político
O maior absurdo em relação a Maquiavel está na imputação dos chamados maquiavelismos, como se o poder fosse uma conquista da mesquinharia individual, algo que se adquire e se guarda em casa. Quando, na verdade, aprendemos com Maquiavel que o poder é sempre uma relação.
Como esclarece Isaiah Berlin (2003), em 1953, já eram destacadas ao menos 20 interpretações possíveis para o Príncipe, além de 3.000 indicações bibliográficas. No geral, O Príncipe é apontado como um livro curto, sucinto e pungente, um modelo de prosa clara e renascentista — daí a estranheza de ver tantas discordâncias quanto ao núcleo central das teses adotadas. Dentre tantas concepções há inclusive a de que o livro é só uma sátira. Em outro sentido, no entanto, será tomado como um livro típico de sua época, comum à Renascença: um “espelho para os príncipes”. Daí o sentido de ser um livro anticristão.
Na interpretação de Isaiah Berlin (2003), Maquiavel é tomado por um autor de “austera e dolorosa consciência moral”, que “desejava denunciar uma política de poder escancarada”, um humanista angustiado que lamentava os vícios humanos, ele próprio uma “vítima da malícia da sorte”. De modo geral, tratou da política com total transparência e desse modo, é óbvio, não agradou às elites do poder.
Assim, entende-se uma parte da ira que se abateu sobre Maquiavel, sobretudo, porque se atreveu a escrever sobre o poder, mas não só para os poderosos; ao mesmo tempo – e talvez esta tenha sido sua real intenção – abriu as portas do conhecimento sobre a política. Separando-se os muitos aspectos morais e religiosos da realidade política, Maquiavel tirou o véu da incompreensão e tornou a política uma ação – diremos hoje – de natureza popular.
É certo que, para a política se tornar realmente popular, ainda se passaria muito tempo. Mas, a chave-mestra fora-nos entregue: o conhecimento científico, empírico, realista fora ofertado a todas as pessoas e não só ao príncipe. Apesar de ter o título de O Príncipe, apenas aparentemente é um livro para príncipes. Escrito sobre a realidade, de forma realista, é um livro aberto. A epistemologia política trazida e traduzida por Maquiavel nos conta como é o poder. Mas, vejamos bem, trata-se de como o poder é – e não como o poder poderia/deveria ser[2].
Criando as bases do realismo político – utilizando-se dosmétodos científicos de que se dispunha à época, como o empirismo –, Maquiavel buscava a veritá effettuale[3](a verdade prática dos fatos, o mundo real e não o imaginário da ética[4]). Com esta racionalidade, aprendemos que o Poder Político é um caminho sem volta: o médico e o político são profissionais que precisam amputar e cauterizar. Não se exclui nenhum meio de manutenção do poder[5].
Maquiavel aplica-se ao método histórico desenvolvido por Políbio, mas para ver um Estado real, não imaginar feitos fictícios de seus governantes. Na busca do passado, o homem de virtù pode apreender lições que o guiem no futuro de seu Estado e de sua própria vida política. Esta metodologia de apreensão da realidade, como verdade efetiva dos fatos, levou a comparações com Galileu Galilei: a ideia é antever as consequências para saber que remédios utilizar. Para ter estabilidade no Estado, o cientista da política deve ser capaz de ver e analisar os efeitos transitórios, passageiros, descontínuos que atormentam e abalam a perenidade das instituições do Estado.
Se Maquiavel observa a psicologia humana, a ciência da alma do homem da política, se observa o quanto podem ser malévolas as paixões humanas – ainda mais em torno do poder e da vaidade –, faz isto para auxiliar, guiar, este homem de poder a encontrar os melhores meios para atingir os fins do Estado. Maquiavel é quem formula, pela primeira vez, a grande charada da Razão de Estado, sem abandonar a “natureza humana” que dirige a todos que vislumbrem o poder. Se o realismo de Maquiavel trata dos sentimentos malévolos, mesquinhos, sádicos, é para enaltecer os caminhos da paz e da segurança pública, o que só se verifica na República.
Portanto, um indivíduo e um povo não são governados com a mesma regra. A bondade é uma virtude individual, mas no príncipe será uma fraqueza, porque seus inimigos não terão temor e, com isso, seu povo estará desguarnecido: a ação e a resposta do Príncipe devem ser duras, objetivas, diretas, claras, rápidas. Entretanto, se Maquiavel se dissocia da ilusão, da contemplação filosófica, metafísica do Estado, isto não implica em que haja desilusão, ao contrário, o povo sem paixão política é facilmente dominado. Essa chama precisa estar sempre acesa: Estados e povos que perderam o apetite pelo poder já estão em frangalhos, não são mais donos de seus próprios sonhos e objetivos. Esta é a essência da Ética Pagã[6].
Maquiavel e a ética pagã da política
Ao sentenciar que “os fins justificam os meios”, Maquiavel formulou a chamada Razão de Estado, Cosini de’ Medici, coisa do Estado que não se reduz à moral e que não está, muitas vezes, ao alcance da compreensão mediana, uma vez que não se reflete na vida comum do homem médio (Bobbio, 2000, p. 228). Maquiavel não era um anti-ético, um famigerado, porque não idolatrava ou não adotaria a moral platônica-judaico-cristã, mas sim um pensador da “moral romana-pagã”.
Em resumo: em termos públicos, pode-se concluir que só se faz o Bem (maior) por meio do Mal (o menor possível). Maquiavel receita esses remédios amargos porque, na luta por autoconservação, a nossa total inépcia para a cooperação exigiria a aplicação de uma violência cuidadosamente administrada. Maquiavel revelou que a razão privada pode ser beatífica, altruísta (e a isso se louva com estímulos morais), mas a razão pública (como Razão de Estado), por definição, obrigatoriamente, tem que ser instrumental, rígida, eficaz. Maquiavel, portanto, não é anti-humano, anticristo, pelo contrário, é um humanista antes do Humanismo.
Humanismo antes do pensamento humanista
Em Maquiavel, são claros os reflexos do famoso filósofo Petrarca (2006)[7]. O menos sensível realismo de Maquiavel (1994) é um apelo ao bom senso, à dosagem equilibrada que refreie a astúcia e a força, como expresso no romance A Mandrágora. Os humanistas ao tempo de Maquiavel ensinariam aos homens que o verdadeiro aprendizado está na vida pública saudável e não nas medidas impactantes, mas ocasionais, da violência. Vê-que a política tanto é resultado do processo civilizatório quanto é meio indutor de civilidade – o que em si é outra exigência para se tornar o público, realmente, o principal assunto do Estado. O humanismo ensinaria ao próprio realismo de Maquiavel que sua virtù configura-se realmente como a máxima virtude. A virtù, enquanto característica definitiva do homem de poder, não seria limitada às formas de sua coragem, astúcia, ardor, especialmente se não viesse acompanhada de equilíbrio e gradação no uso da violência e dos ardis políticos.
Afinal, o que interessa a Maquiavel é a “verdade pública testada pelo sucesso e pela experiência”: os Estados devem ser criados a partir de instituições duradouras, nem que seja sobre os ossos de vítimas inocentes (a veritá effettuale pode esclarecer a Razão de Estado). O que ainda nos leva a crer que, se Maquiavel recomenda a crueldade para combater a corrupção[8], não é porque seja sádico, mas sim porque defenda o Estado. Ele quer educar os homens para serem leões e raposas aptas ao combate pela República e, para tanto, Maquiavel adota a ética da Pólis grega: os objetivos comunitários são valores últimos que devem ser perseguidos a todo custo. Esta é a inflexão terrível provocada na moderna razão ocidental por Maquiavel. O florentino opôs a vida privada à consciência pública de forma irreversível.
Desencantamento do político
Então, há claramente um problema de oposição criado entre moral e política ou entre ética individual e ética de grupo. Aplica-se um tipo de razão política à sobrevivência institucional, da soberania estatal. Portanto, Razão de Estado quer dizer que a ratio está a serviço do Estado e é isto que define a Razão de Estado como ideologia que aposta em um sistema fechado, completo, totalizador, e que (por definição) não pode reconhecer fissuras na soberania.
No âmbito econômico e jurídico do Estado Moderno que se iniciava com os prenúncios do Renascimento, aliam-se a ética protestante e a ética pagã que se constituíram na história do Estado-Nação. Pela primeira, invoca-se o direito que separa(va) proprietários e não-proprietários; pela segunda, diz-se que os não-proprietários podem ser repelidos em nome da segurança jurídica da Razão de Estado. Portanto, vistos como insurgentes sociais, os rebelados do controle do Poder Político, podem alimentar uma cadeia de aprisionamento social e criminal. Ao longo da história, na longa esteira dos que se inspiraram em Maquiavel, para os apoiadores do realismo político, a Realpolitik – entre outros, Hobbes, Marx e Weber –, a violência é o eixo da política.
A antiqua virtus
Sabedoria e Prudência, estas são as mais antigas virtudes políticas. O homem de poder, que Maquiavel chamava de homem de virtù, precisa ser forte, especialmente para tomar o poder ou formar o Estado; mas, para manter o poder ou firmar o Estado, é preciso ter virtudes. De modo simples, virtù – como antiqua virtus[9] –, podemos dizer, trata-se deForça + Vigor + Astúcia + Estabilidade. Maquiavel é um escritor realista que, apostando na ideia de um governo misto, identifica na capacidade de racionalização[10] uma das causas da virtù. Mas, o que fortalece e enfraquece o realismo político é o pragmatismo: O pivô da Realpolitik está nessa política de resultados. Pois, a ausência de uma miríade pode levar os cidadãos a perderem o entusiasmo por seu Estado. Sem expectativa, ficariam isolados em seus próprios problemas. A racionalização da política ainda leva a prever porque se analisa o novodiante do já conhecido e porque se busca algum padrão na ocorrência que também sirva à análise. Portanto, prever, leva-nos a prevenir. Assim, a palavra de ordem é: prever para prevenir. A maior virtude do homem de poder está em manter a coesão social e a unidade do Estado. Este é o maior legado do florentino.
Referências Bibliográficas
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BATH, Sérgio. Arthashastra/Kautilya: o Maquiavel da Índia. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1994.
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BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed. Brasília-DF : Editora da UNB, 1985.
_____ Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro : Campus, 2000.
CHISHOLM, Robert. A ética feroz de Nicolau Maquiavel. IN : QUIRINO, C. G. & VOUGA, C. & BRANDÃO, G. (organizadores). Clássicos do pensamento político. 2ª ed. São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
DEUTSCH, Karl. Política e governo. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1979.
GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre, Rio Grande do Sul : L&PM, 1980.
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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.
_____ A Mandrágora. (2ª Edição). São Paulo : Brasiliense, 1994.
_____ O Príncipe – comentários de Napoleão Bonaparte. 12ª ed. São Paulo : Hemus, 1996.
_____ O Príncipe. São Paulo : Ediouro, 2003.
MARTINEZ, Vinício C. Teorias do Estado: instituições e dilemas do Estado de Direito Capitalista. São Paulo : Scortecci, 2012.
_____ Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
PETRARCA, Francesco. Triunfos. São Paulo : Hedra, 2006.
RIBEIRO, Renato Janine. A última razão dos reis: ensaios sobre filosofia e política. São Paulo : Companhia das Letras, 1993.
RICCIARDI, Maurizio. Príncipes e razão de Estado na Primeira Idade Moderna. IN : Duso, Giuseppe (org.). O Poder: história da filosofia política moderna. Petrópolis-RJ : Vozes, 2005.
RUBY, Christian. Introdução à Filosofia Política. São Paulo : Editora da UNESP, 1998.
SADEK, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. IN : WEFORT, Francisco C. (org.) Os clássicos da Política. São Paulo : Ática, 1991.
SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. 16ª Ed. São Paulo : Atual, 1994.
SKINNER, Quentin. Maquiavel. São Paulo : Brasiliense, 1988.
SUN TZU. A arte da guerra. 30ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2002.
WEBER, MAX. Ciência e Política: duas vocações. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1993.
[1]“O livro de Sun Bin é um texto composto, baseado num sentido chinês de ordem holística, e não num sentido helênico de lógica [...] os métodos de Sun Bin estão representados por estruturas que funcionam como metáforas para acontecimentos e atividades outros que não a guerra, nas áreas do governo, da diplomacia, dos negócios e da ação social” (Cleary, 2002, p. 14).
[2] Aliás, o poder que poderia e não é, torna-se apenas potência e não poder de fato.
[3] Na mitologia romana, filha de Saturno, Veritasera a deusa da verdade e a mãe da virtude. Para os gregos, significava verdade e realidade, simultaneamente.
[4] Apesar de ser um humanista, antes do humanismo, Maquiavel procura a realidade e não a fantasia, procura entender o que há de pior no homem da política, para salvar o bem público. Para a ética pagã, o ethos é o local
[5] Comparativamente, sob o Estado de Direito, fala-se em meios de contenção do poder.
[6] Do latim paganus, que significa "rústico”.
[7]Petrarca(1304-1374), possivelmente o maior poeta do Trecento, no Renascimento italiano, é também considerado o precursor ou o primeiro humanista.
[8] A corrupção é um crime de lesa majestade.
[9] Uma antiga virtude.
[10] Aquele que é incapaz de prever, será igualmente inábil para prevenir e, assim, igualmente deverá falhar na hora de melhor prover.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de