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Vinício Carrilho

Mensalão e Razão de Estado


            Fui contra o segundo julgamento do Mensalão. Mas, por razões diversas da costumeira narrativa jurídica. Não vou debater a mesmice se cabia ou não duplo grau de jurisdição aos condenados por fraudar a República. Até porque é óbvio que sim, ao menos desde o século XIX, na Europa em geral, no Reino Unido (a partir de 1707) e mais especificamente nos séculos XVI-XVII na Inglaterra do Habeas corpus, de John Locke (ou se quisermos desde 1215, com a Magna Carta, do Rei João Sem Terra). Esta é a lição da primeira aula no Curso de Direito.

            Mas, se ainda insistem, vamos lá: o que está em debate no Supremo Tribunal Federal (STF) não é o direito de ser julgado em corte imparcial (art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948) ou a prevalência ou não dos direitos humanos em nossa Constituição Federal/88: art. 4º, II. Tudo isso é obvio demais, até mesmo para o leigo, pois todo mundo sabe que todos têm direito a recursos e a um segundo julgamento, a começar dentro de casa, quando se reavaliam os filhos em seus erros. Com exceção de um pai ou mãe desnaturados ou filhos abomináveis, todos reconhecem que não há pena definitiva e que os julgamentos devem ocorrer em tribunais isentos e comprometidos com a verdade. Bem ao contrário do julgamento de Josef K, perpetrado por Franz Kafka, em O Processo.

            O que está em julgamento, sob a toga dos ministros que analisam o Mensalão, é a Razão de Estado. Popularmente, atribuímos ao italiano Nicolau Maquiavel (1513) a afirmação de que, para o Estado, “os fins justificam os meios”. Desse prisma, para salvar ou administrar o Estado brasileiro, diante do troca-troca de interesses e para livrar a jugular do Executivo – sempre talhado pelas sanguessugas do Legislativo –, a base aliada do governo Lula teria financiado votos favoráveis à governabilidade e estabilidade do Poder Político. Diante das constantes crises internacionais ou das ameaças internas, o governo preferiu comprar a oposição ou resistência.

É certo que o Mensalão não é uma corrupção comum, à medida em que se objetivava financiar o poder. Ou seja, o Mensalão, como cooptação e captação de dinheiro público para comprar votos de parlamentares no Congresso (com Roberto Jefferson – ex-PTB à frente) não tinha por finalidade enriquecer diretamente ninguém do Poder Executivo. O esforço político teria sido sistêmico, logístico e não personalíssimo. A crise de governabilidade, alegaram, ameaçaria os arcana imperii. Crise moral ou unidade e permanência das instituições?

            Os fins do Mensalão propunham facilitar a vida do Presidente Lula, diante do Legislativo que cria(va) dificuldades, para vender facilidades. Pois bem, se estavam agindo em nome da constituição de um Poder Político forte, estável (ainda que confundido com o governo de época), então, todos os meios eram válidos e justificáveis? É claro que muitos enriqueceram, a começar dos empresários envolvidos (Marcos Valério e que tais), mas o denominado núcleo político do esquema (Genoíno, José Dirceu) não ficou milionário. Agiram em nome do poder de governo.

            Pois bem, diante da gravíssima crise da República brasileira – corrompida até o fim do vocábulo e da medula ética – o que está em análise na Ação Penal 470é a chamada salus publica. Temos um embate clássico: a Razão de Estado e a lógica do tudo pela ordem do Poder Político (summa potestas) versus a coisa pública (a res publica requer, obrigatoriamente, o potestas in populo). Estão sim em conflito dois princípios elementares: O Princípio do duplo grau de jurisdição, vaticinado como direito humano de primeira geração, e o Princípio da República, em que deve vicejar o Princípio da Verdade Real (e não processual). Muitos não serão presos porque haverá prescrição do crime de formação de quadrilha.

            Este é o debate a ser considerado com maior seriedade: o que nos interessa por premissa, salvaguardar direitos de primeira geração? Retroalimentar o Estado Juiz em seus julgados atentos à formalidade do positivismo jurídico? Ou devemos, mesmo que ao custo do direito do corrupto assumido, salvar a República das saúvas e das trevas que se aproximam? (Machado de Assis, em A sereníssima República, é iluminado ao questionar o formalismo jurídico). Ou será que nosso “objetivo maior” é defender a Razão de Estado? (Há que se lembrar que Genoíno e José Dirceu estão sendo condenados pelo mesmo Tribunal que juraram defender até às últimas consequências). E isto lembra um pouco a saga Jacobina de Robespierre e de Saint-Jus, na França de 1789, julgados e punidos pela estrutura político-jurídica que construíram.

            O que está em jogo não é apenas (e ainda que seja muito) a corrupção política, mas os próprios contornos e limites do Estado. O Supremo Tribunal Federal está se perguntando (assim como alguns do lado de cá) se a política deve ser manipulada pela lógica “amigo-inimigo”, se estamos submetidos à Realpolitik (como Bismarck, na Alemanha do século XIX), se sempre irá vigorar o vale-tudo da Razão de Estado (na vontade de que quem governa); ou se está na hora de construir um verdadeiro Estado de Direito Republicano (e mesmo que para isso tenha de atropelar um princípio de direito em nome de outro). Assim, está em debate a Razão de Estado, quer seja aquela primária e mofada forma que se chamou de Estado Patrimonial, quer seja a nova que se quer modificar, modificando uma leitura tradicional da própria Constituição Política.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais

Doutor pela Universidade de São Paulo

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