Segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016 - 06h06
Naturalização do Estado de Emergência
para uma sociologia da cultura da exceção
No século XXI, o principal tipo de exceção é o Estado de Emergência. A tipologia das formas autocráticas, autoritárias do Estado é longa, mas uma das diferenças entre a exceção e a regra está em que o Estado de Necessidade, por exemplo, tem uma tendência de se expandir, tornando natural a invasão e o controle do espaço público (“naturalização” da negação do Político) e perpetuar o uso da força para além do fato que supostamente a originou. No texto, veremos algumas dicotomias entre o Estado de Exceção e a norma social comum e aceitável como regra moral e jurídica: esta que regula o cotidiano da vida comum do homem médio.
Esta manipulação do argumento da violência, como veremos, é sem dúvida oportunista (fascista), uma vez que alonga o uso da violência (descontrolada e aprovada por leis de exceção) e que jurou combater. Quer dizer, utiliza-se a violência antissocial como desculpa para se implantar a negação do direito e depois se institui a mesma violência como prerrogativa do Estado.
Regras do “eixo suportável” e da exceção
A violência de origem que desafiava o Estado, presentes no crime e no terrorismo, por exemplo, é também um desafio à sociedade. Porque não só a Razão de Estado é ameaçada, na prerrogativa do uso sistêmico da força; muito mais do que isso, a sociedade perde seu eixo comum de convivência possível.
A regra comum, a norma social ou jurídica procura normalizar as relações humanas, ou seja, aproximá-las de uma “normalidade” que possa ser (com)partilhada. É um princípio da interação social: a urbanidade, a convivialidade só é possível a partir de um eixo suportável de obrigações comuns. Este efeito ocorre com certa “naturalidade” aceitável (como a gentileza), até porque as regras foram em sua maioria fabricadas socialmente antes do nosso nascimento.
Tudo isso que herdamos (exterioridade, anterioridade), juridicamente, pode ser chamado de legitimidade. Há uma espécie de desejo de comando (dominação), dentro de uma “normalidade” aceitável e em que as normas sociais e as regras de direito também possam ser expressas como regras jurídicas. Neste caso, se as regras sociais e morais são mediadoras da vida civil, o Estado, por sua vez, detentor do “poder de decisão”, será seu instrumento imediato. Assim, o “eixo suportável” torna-se obrigação de fazer ou de não-fazer (direito positivo).
Então a regra geral do “eixo suportável” é plausível e não há necessidade, obviamente, de nenhuma prática de exceção; visto que a exceção é acionada quando a regra está em desajuste com a realidade. Na interveniência de instabilidades grandiosas no sistema, por outro lado, irrompem reações dentro e fora do comando legal, moral, racional.
A sistematicidade e o descontrole institucional diante do crime e do terrorismo, por exemplo, abalam o “eixo suportável” das regras morais e sociais e incutem em alguns o desejo da exceção. Como o “antigo” sentido de normalidade deixa de ser aceitável – pois, o “eixo suportável” não é mais comum –, o desejo da exceção prospera e, além do conteúdo legal/racional ser severamente questionado, cresce o apelo por medidas de intervenção cada vez mais demarcadas pelo uso da força física: embrutecimento do cotidiano.
Este sentido/sentimento será replicado dentro e fora do sistema político-jurídico e, por isso, assiste-se placidamente o linchamento público de “marginais” (não são mais humanos). Bem como fermenta uma autorização prévia para que o uso da força possa ocorrer ao largo da legalidade. Diante do “eixo suportável”, este conjunto de ações/reações cotidianas e sistêmicas seria a expressão de uma irracionalidade. Contudo, se o desejo da exceção autoriza tal uso descontrolado da força, logo se vê que a irracionalidade do passado (a que estava presente no crime e no terrorismo) transmuta-se agora em racionalidade da exceção.
Por fim, a “nova” racionalidade da exceção – dado seu apego e apreço cotidiano e sistêmico, e que se volta contra o “eixo suportável” – apresenta-se como legitimidade da exceção. De certo modo, isto também consubstancia uma cultura de exceção, quando há internalização e aceitação acrítica das regras de exceção. Porque, em suma, o outrora irracional – atentados à racionalidade do “eixo suportável”, provocados pelo crime e terrorismo –, converte-se na “nova” normalidade.
Ou seja, na cultura da exceção, o que era normal passa a ser insuportável (o próprio Estado de Direito) e o que era aberrante, ao sistema e à vida comum (ações violentas do crime e do terrorismo), é agora manifestado como normalidade requerida, desejada. A violência condenada, no passado, é agora aplaudida.
Dentre outros, este é um dos mecanismos que mantêm operantes tanto o fascismo quanto o Estado de Emergência Política. Outras formas/fórmulas – como cesarismo (política de Júlio César) e bonapartismo (medidas de Napoleão III) – identificam o modus operandi da ação cotidiana e sistêmica que anula/aniquila o “eixo suportável”; diga-se, por tal eixo, a correspondência da civilidade e do processo continuado de humanização.
Como a violência incontida pela legalidade é agora a tônica da cultura da exceção, isto é, se é perfeitamente normal, dentro do desejo manifesto de se controlar por meios de exceção, por que não prolongar indefinidamente o uso institucional dos mecanismos de poder abusivo/ilegítimos?
Aceitação acrítica do Estado de Emergência
Pois é isto que ocorre com pequenas alterações de parte a parte. O Estado de Exceção se torna permanente e globalizado: estranhamento e desejo do fim do Político. Na França, depois dos atentados promovidos pelo Estado Islâmico, a “extensão” da força, tendência à perpetuação do Estado de Emergência[1], confirma a lógica geral de que há um uso/abusivo a fim de se naturalizar a exceção e assim agregá-la como ordem natural da política. A revolta de milhares de pessoas contra o Estado de Emergência francês é a exceção que confirma a regra, pois a tendência geral é de todos(as) requerendo o uso da força excessiva – com evidente mitigação de direitos – para que se consolide como regra impositiva e determinante.
Em termos exatos, a extensão do Estado de Necessidade equivale a banir o Político da vida comum do homem médio, desumanizando-o, pois o Político, a luta pelo direito, a ocupação popular do espaço público são a origem do longo processo civilizatório e de humanização. A exceção provoca, em síntese, o desejo (inconsciente) do fim de si mesmo, posto que se requer o fim da atividade política e humanizadora. Há que se reportar, ainda, que é da política que surge a normalidade e a legalidade: legitimidade.
Por seu turno, no Brasil, não há recipiente constitucional para o Estado de Emergência, nos moldes do instituto jurídico francês. Contudo, se o Judiciário e o Ministério Público não são ativos na investigação e no combate à violência institucional – do Executivo – ou de suas polícias, em um exemplo concreto, é porque já estamos mergulhados na exceção.
As leis para crimes hediondos e que aditivam as penas de restrição de liberdade, bem como anulam outras garantias fundamentais – são imprescritíveis e inafiançáveis –, são, claramente, leis de exceção. Basta-nos pensar que estão em sentido reverso à humanização da pena prevista na CF/88.
Também não precisamos do instituto perfeito do Estado de Emergência (temos o Estado de Defesa, no art. 136 da CF/88) porque temos, de fato, dois tipos de “cesarismos” em andamento, ou seja, contamos com a aplicação de medidas de exceção (coerção adicional) que se baseia em regimes não-democráticos e até pré-capitalistas: cesarismo constitucional (latente), cesarismo institucional (manifesto).
O cesarismo constitucional foi aqui apelidado de latente porque o próprio Texto Constitucional assegura a promulgação de leis de exceção, desde 1988, isto é, não houve necessidade de nenhum aporte de poder estranho ao nascedouro da Constituição. Estavam, pois, previstas. O cesarismo institucional foi denominado de manifesto porque se revela/age por iniciativa ou inércia (proposital) do Poder Político.
Neste sentido, a edição ou a recusa de leis que ferem o Estado Laico – como a não-criminalização do crime de homofobia, pois pastores seriam presos – denotam que a exceção é vigorosa, ainda que esteja em condição de não-fazer, neste caso, não promulgar leis de amparo a direitos fundamentais de determinados grupos sociais.
Em outras situações, até mais evidentes – porque, exatamente, permitir-se a mutação constitucional –, direitos igualmente fundamentais são removidos da noite para o dia: os direitos trabalhistas, a PEC 215, a Lei Antiterror, a tentativa legislativa de se criminalizar o MST, o manuseio do Estado de Direito de acordo com os grupos de poder dominantes, o coronelismo recalcitrante. Por isso, no todo do conjunto, podemos verificar que temos os efeitos do Estado de Emergência em plenitude política, institucional e jurídica nos dois modelos do cesarismo aventados:
1) Sob a negação de se criar direitos especiais ou, ao contrário, na criação de leis hediondas, e na ofensiva de todas as demais frentes de deslegitimação constitucional (cesarismo jurídico-constitucional latente).
2) Na condição de se acobertar nas brechas da lei o próprio abuso legal (prorrogação das prisões preventivas e temporárias), a manutenção de privilégios de estratos sociais (magistratura, por exemplo), o apoio institucional ao “arrepio da lei”: no caso das polícias treinadas para matar (cesarismo político-institucional manifesto).
Assim, os direitos humanos fundamentais (vida, liberdade) de pobres e negros são violados todos os dias em todas as cidades – e de índios, quilombolas e trabalhadores rurais ou assentados, no campo – sem que se precise da decretação de um tipo qualquer de Estado de Emergência social ou política.
Também não há necessidade de tal decretação porque a cultura da sociedade violenta (e historicamente violentada) autoriza, legitima a ação violenta e letal dos aparelhos repressivos de Estado. Ainda que, de outro modo, os mesmos grupos sociais violentados pela repressão estatal possa agir de igual forma no encontro com as polícias, por exemplo. Ação e reação extremamente violentas e letais.
Agimos/reagimos diante de uma espécie de lei de ação e de reação; a polícia e a política sofrem do mesmo mal: total descrédito social. O que, por sua vez, gera ainda mais violência. Este também poderia ser considerado um dos pilares institucionais da guerra social (eufemismo para guerra civil) que devasta/devora a sociedade brasileira. Por fim, tudo ocorre em certa “normalidade” porque há um entranhamento do desejo de exceção; mais exatamente onde viceja a descrença de que o secular processo civilizatório pudesse obter êxito na formulação de um “eixo suportável” e regulador da vida comum do homem médio.
Por isso, a “ultima razão dos reis” (ultima ratio), e que é a capacidade do Estado mobilizar todas as forças possíveis, para (re)agir em seu proveito (burocracia) e dos grupos que o manejam, torna-se, em verdade, a primeira escolha do Poder Político (prima ratio). Assim, com a prorrogação indefinida do Estado de Emergência, a exceção se converte em regra duradoura; visto que a regra anterior (democracia) é tida agora como malefício social. Lembrando-se de que se trata da mesma regra que garantia a humanização do processo civilizatório. Portanto, do ponto de vista humanitário, todo Estado de Exceção é desumano, criminoso e anti-natural, posto que é antissocial.
Esta modalidade de controle societal, exercido pelo Estado de Emergência – e que é um dos tipos de Estado de Exceção –, exercida no mundo real, pode, perfeitamente, ser estendida/replicada no realismo político que se projeta no “mundo virtual”. No Brasil, dentre outras, temos a Lei Antiterror e a proposta legislativa de criminalização da ofensiva popular, nas redes sociais, contra os políticos profissionais desonestos: uma vez que os honestos não são objeto de ironia e sátira política.
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de