Segunda-feira, 11 de maio de 2015 - 19h15
Para se comemorar o fim da Segunda Grande Guerra, com a humilhação nazista, nada melhor do que retomar Kafka. No texto, empregaremos metáforas da ficção científica e literária. Porque o sentido que se aqui se emprega é o de automatismo, como forma de acomodação social extremada.
Quem não quer ser autômato
No mundo de Kafka, e no nosso também, há muitos sujeitos de direito, mas quase-nenhum sujeito de fato, como sujeitos sociais provocadores de fatos históricos. Com certeza, Kafka ficaria muito mais feliz em reconhecer o Sujeito Social Histórico do que debater-se com o famoso “operador do direito” – até porque este está contido no primeiro, mas sem que ocorra o contrário. E este talvez fosse o primeiro passo justo e democrático.
O que aproxima o discurso de Kafka ao humanismo é o emprego de um enredo semelhante quanto ao processo de humanização; sendo este evidente no robô Andrew de Asimov (1997) e latente (ou mais que isso) na “criatura” de Shelley (1994). Além desses, em Blade Runner – filme[1] ou romance (1968) –, os chamados “replicantes” lutam bravamente (até a morte) para afirmarem sua identidade, pois ninguém quer ser “replicante da história”, mas sim protagonista.
Modernidade Tardia
O que a Modernidade Tardia nos lembra constantemente é o embate entre “desenraizamento” e esse “processo de descoisificação”, com as várias lutas pelo reconhecimento das culturas, dos povos, da diversidade do(a) Outro(a). Muito mais do que “antropomorfização”, como algum resquício de eurocentrismo ou da tola idolatria da “superioridade racial”, os romances e filmes nos trazem de volta à premente necessidade humana: o “primeiro ato histórico”, como luta pela sobrevivência, e depois como “luta-para-ser-em-si-e-para-si”, ao longo do processo civilizatório, sem perder esta ânsia por viver.
Esse “estar-na-história” (ou resgatar e reter a memória, como nos replicantes de Blade Runner) é um sentir-se plenamente humano, convicto do seu “enraizamento na verdade” — numa verdade espelhada pelos “melhores momentos e atores da história” (virtus). Sem esta virtus, o homem é ainda mais incompleto e refém, à espera do pai, do salvador, do tutor, dominador ou amestrador.
O que nos torna diferentes, em geral, da “criatura” gerada por Frankenstein(Shelley,1994 ) não é a inteligência, mas a ânsia por ser um humano-menos-incompleto (ou mais perfeito, no que dá no mesmo), é a luta pelo reconhecimento de sua virtus (ou do que “ele” é de fato) e do melhor em si mesmo. Nossa diferença não está na inteligência social, porque tanto a “criatura” e os “replicantes”, quanto muitos outros animais têm graus elevados de “articulação de sentidos”, como golfinhos, elefantes (com memória de décadas de “experiência de vida”[2]), o cão selvagem africano e sua refinada “inteligência social”. Nossa grande diferença e afirmação está na virtus que possuímos ou não.
Kafka revela o nazismo como apego infindável ao capital
Por seu turno, já no pequeno conto “A batida no portão da propriedade” (em Narrativas do Espólio), Kafka (2002b) trabalhou basicamente com sujeitos ocultos e ocupou-se, como de hábito, em ser um narrador ácido e irônico. Sua queixa, tal qual no Processo e Na Colônia Penal, dirige-se contra a mesquinharia humana revelada pelo “sistema” e que atinge o epicentro do Estado de Direito: “o sagrado direito da propriedade privada”.
No conto, dois irmãos (irmão e irmã) caminham distraidamente de volta para casa quando a moça, “por travessura ou distração”, resvalou a mão no portão de uma residência (ou apenas pensou que o fez). No ato seguinte, moradores próximos dali, coisa de cem metros adiante, já lhes apontavam as mãos em alerta ou em represália quanto ao absurdo ato praticado: “Os proprietários vão nos denunciar, logo terá início o inquérito” (Kafka, 2002, p.92).
Como sucedâneo disso, ocorreria outro fenômeno jurídico indicado por Kafka com absoluta estranheza: o irmão seria processado por cumplicidade. Afinal, andava ao lado da suposta “criminosa”. Assim, mal encerrou-se essa admoestação dos camponeses e todos logo olharam para o interior da dita propriedade violada em sua honra. Dali, em instantes, o Estado já se punha em andamento e vinha direto na direção do grupo: “A poeira ergueu-se, cobrindo tudo, só as pontas das altas lanças reluziram. E, mal tinha desaparecido do pátio, a tropa parecia ter mudado o rumo dos cavalos avançando em nossa direção” (Kafka, 2002, p. 93).
Neste breve ínterim, o irmão (cúmplice do bárbaro atentado) conseguira convencer a irmã a ir para casa trocar de roupas a fim de receber os insignes cavalheiros. Sem descer de suas montarias, indagaram pela moça e o irmão (cúmplice do ato abjeto) prontamente disse-lhes que se ausentara. Desse modo, foi obrigado a entrar no “saguão dos camponeses” e quem primeiro lhe recebeu foi o próprio juiz, e que também vinha montado com a tropa, dizendo-lhe laconicamente: “— Este homem me dá pena” (Kafka, 2002, p. 93.).
O capital guarda o máximo de direito
O irmão, que não era tolo, logo atinou para os verdadeiros fatos e conseqüências: “Estava acima de qualquer dúvida, porém, que com isso ele não se referia ao meu estado atual e sim àquilo que iria acontecer comigo. A sala era mais parecida com uma cela de prisão do que com um salão de hóspedes de camponeses” (Kafka, 2002b, p. 93-94).
Com isto, o narrador pôs termo aos objetivos, meios e fins do direito sob a tutela da propriedade: “Será que eu ainda poderia fruir outro ar que não fosse o da prisão? Essa é a grande pergunta, ou antes: seria, se eu ainda tivesse qualquer perspectiva de ser libertado” (Kafka, 2002b, p. 94).
Sob esta sensação – neste misto de impotência, incoerência, absurdo e a certeza mais do que absoluta, de que ocorrem e ocorrerão tais fatalidades – o Estado K. (nazi-fascismo) se fortalece no não-direito (Canotilho, 1999) e que, em suma, é a própria injustiça do capital.
Bibliografia
ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.
______ Eu Robô. Ediouro, 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.
KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal. (4ª ed.). São Paulo : Brasiliense, 1993.
______ Um artista da fome - A Construção. 2ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 2002.
______ Narrativas do Espólio. São Paulo : Companhia das Letras, 2002b.
PHILIP, K. Dick. Blade Runner: perigo iminente. 2ª ed. Portugal : MEM Martins Codex, 1968.
SHELLEY, Mary. Frankenstein – uma história de Mary Shelley contada por Ruy Castro. São Paulo : Companhia das Letras, 1994.
[2]Tem a mesma capacidade de memorização do homem moderno.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de