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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Direito é Consciência


 

A luta científica é uma luta armada

Bourdieu

 

                O que é consciência? Qual a consciência que queremos para nós e para nossos governantes? Vejamos o caso do governador de São Paulo, indagado sobre o crescimento de 40%  na taxa de homicídios:

"É normal que isso ocorra. Sempre tem [criminalidade]. Nós queríamos que fosse zero", disse ao ser questionado sobre os motivos para os moradores da capital paulista se sentirem inseguros[1].

 

            É normal sentir medo de morrer – aliás, o próprio Estado Moderno foi criado sob a alegação de que as pessoas temem “a morte violenta” e o aparato estatal lhes traria esta segurança (Hobbes, 1983). Assim, o Estado Moderno foi forjado a partir de uma moral política de racionalidade – um conatus, uma conexão entre a moral (de todo indivíduo) e a política, como relevância global (Angoulvent, 1996).

O que não é normal é ter medo de morrer alvejado por um esquadrão da morte, especialmente se é formado por policiais. O que não é normal é ter medo de morrer por besteira, no cruzamento de uma rua qualquer, alvejado por uma criança ou adolescente que está ali porque o dinheiro que deveria ter ido para a escola conheceu um destino anormal. Sem educação, não há emancipação, permanecendo-se tutelado, submetido, subjugado, inferiorizado (Adorno, 1995). Desse modo, sempre se trata de uma educação para o cidadão, como educação intencionada politicamente (Canivez, 1991). Portanto, não é normal ter medo do Estado, se este foi criado (na força da ideologia) para nos proteger. Todavia, é anormal alguém morrer de “bala perdida”, pois não é normal achar uma bala mortal nas ruas.

Penso que o problema maior é a falta de consciência, mais ainda se podemos esperar por uma consciência política. Farei algumas perguntas e logo veremos: todos têm consciência do que são? Os políticos têm consciência do bem e do mal que podem fazer? Os criminosos, assim como os políticos profissionais, têm consciência dos seus atos?

Penso que a consciência exige domínio de conhecimento, clareza conceitual, independência para pensar e para agir, avaliação crítica dos fatos, remoção dos preconceitos, maioridade moral e emocional. Quem tem a vida defensável moralmente? Este é o início para se ter consciência de quem se é. Enfim, consciência exige emancipação e liberdade. O homem é livre para pensar e para agir – conscientemente – quando está liberto das prisões da tragédia humana. Mas, se faltam condições mínimas para que a consciência se forme da infância e na adolescência, sobretudo na escola e na família, quem – além de uma elite – está livre?

Desse modo, o político profissional que pensa, fala e faz o que bem entende necessita expor os valores que interiorizou, mas aí sua própria consciência esbara na ideologia que já engoliu muito tempo atrás e que agora não pode confessar. Ao contrário, o político consciente demonstra capacidade de compreensão das consequências de seus atos, não se esquivando atrás das más ações dos seus adversários e inimigos políticos. O político consciente sabe que a política não é uma profissão, mas uma condição humana, que todo homem é um animal político (Aristóteles, 2001).

A consciência política exige que se projetem os resultados, com antecipação: o pensamento teleológico, descentrado do imediatismo. Exige-se uma ação precavida, baseada na prevenção. A consciência exige a aceitação intencional de postulados lastreados para além dos interesses mais individualistas, como juízo de valor e de realidade que podem/devem se ajustar à vida pública. Espera-se discernimento intelectual, amadurecimento moral, emocional.


O Direito é Consciência - Gente de Opinião

Será que os políticos, assim como nós, têm consciência e pleno domínio dessas capacidades quando agimos, no dia a dia? Tal qual a política, o ato criminoso – salvo aqueles inimputáveis – incide em um julgamento moral. Ocorre que o criminoso, seja político profissional ou não, apenas não se importa com a moral que é relevante a você e a mim. A diferença é que para nós, AINDA somos a maioria, a consciência exige capacidade de julgamento, culpa e arrependimento pelo malfeito. Esta é uma das grandes diferenças entre nós e os psicopatas: indivíduos comuns e/ou políticos indiferentes à “dor dos outros”. O homem inconsciente desconhece o Outro, é incapaz de formular/participar do pensamento abstrato que vê no Outro o destino do direito; o sujeito inconsciente não reconhece a humanidade (Honneth, 2003).O fato é que todos praticam malfeitos, mas poucos têm consciência da ação perpetrada.

A origem dos conflitos de interesse que, no caso aqui analisado, leva ao cometimento do crime está na homogênese: desigualdade no ponto de partida das relações sociais. Ocorre que, os conflitos de interesse não redimidos pela consciência exultam, via de regra, em crimes. Os antigos diziam: “aviso aos navegantes”. Estavam comunicando sentidos, direções, tornando-nos conscientes de que a navegação da vida é precisa, de que precisamos navegar nas águas mansas do discernimento entre o certo e o errado. Enfim, a consciência exige navegação pelas relações interpessoais, intersubjetivas e, acima de tudo, saber, ser consciente, de que as relações humanas são moldadas pelo direito, isto é, pela noção de regras que deslindam o “caminho reto” (direito).

Inversamente, a consciência do crime exige que se afaste deliberadamente do direito, do justo, do certo, do caminho reto, da própria lei. Se o criminoso é consciente das consequências dos seus atos – seja político profissional ou não – é porque há domínio das características gerais dos fatos (pelo menos do fato gerador) e, neste caso, há um “prazer no mal”. Ser consciente é saber que há uma intermediação entre o bem e o mal, entre o direito e a normalidade criminosa aceitável. E não é aceitável que os homicídios cresçam 40% em um único ano; tal qual não é normal ter medo de morrer antes da hora. A morte antecipada, decorrente da desordem pública não é normal. Por isso, a política no Brasil é anormal.

Também é curiosa a lembrança de que muitos se julgam mais preparados – conscientes – do que a maioria e por isso se consideram no direito de decidir o que é melhor para os demais. Afinal, se os pais sabem o que é melhor para os filhos, os gênios da política pensam o mesmo em relação ao povo. A história é repleta desses casos, mas hoje basta tomar a ficção científica. No romance – depois filme – Eu Robô, a máquina se julga mais consciente do que o homem na avaliação político-institucional de seu Estado e, assim, resolve agir inibindo os espaços políticos de ação humana (Asimov, 2004). Como temos visto no século XXI, alega-se eufemisticamente que para evitar o Golpe de Estado, decreta-se o Estado de Sítio.

O Direito é Consciência - Gente de OpiniãoEu Robô – O Estado de Sítio Consciente

Este livro de Isaac Asimov, escrito em 1950, é um clássico contemporâneo da ficção que aos poucos se vê plasmado como realidade. Podemos facilmente ler o romance como se fosse uma verdadeira História da Robótica — incluindo-se aí as três célebres leis da cibernética — ou como Sociologia da Ciência e da Tecnologia, sobretudo nos anos iniciais do século XXI. Neste sentido, como clássico do Século XX, na esteira da Sociologia da Ciência de Pierre Bourdieu (2004), podemos destacar elementos mais pontuais, quer sejam políticos quer sejam sociais, como por exemplo:

  • p. 159 – A desesperança do sitiado: o horror irreal do pesadelo da vida social, em que se tornou o cotidiano;
  • p. 172 – A decretação do Estado de Emergência como escape ao Golpe de Estado, expediente tão em voga no curto século XXI.

Por outro lado, destaca-se a armadilha em que se enredou o chamado Estado Cientificista e a negação de direitos básicos. Neste caso, vemos confluir narrativas tradicionais do Estado apimentadas com a força das Metanarrativas do Capital: o capitalismo revela-se capaz de um aprendizado inesperado, assustador, como vemos pelo Google, em que o usuário é o trabalhador que alimenta os “buscadores”, com sua própria ação de pesquisar; empresas como Benetton e sua escola/núcleo de criatividade conquistando talentos pelo mundo todo. A Ciência empresta seus recursos analíticos ao poder absolutista empregado atualmente ao controle social, na figura do Estado Penal (Wacquant, 2003). O mesmo capital, outrora desbravador de mercados, agora por meio do aprender a aprender, consegue conjugar o panótico do Estado Hobbesiano com as redes/teias do rizoma presente nas tecnologias mais refinadas da telemática. A modernidade conjuga Foucault (1994 & 1997) e Deleuze (1995), o antigo e moderno diante da mesma Modernidade Tardia.

Seria representação ou realidade de um Evolucionismo Científico que, sem moral, direito ou ética que o acompanhe, sucumbe em mera reprodução do Darwinismo Social — este já muito bem conhecido? O caso histórico mais sintomático, numa leitura muita realista, mas bastante crítica, destaca que Ausschwitz decorre de um antigo mito; o de que o Estado Prussiano representava a síntese da realização plena da racionalidade. O leitor, no entanto, fica convidado a ler o livro como um todo e a tecer suas próprias considerações. Aprendemos com a ficção de Asimov como o humanismo está longe da Humanidade, nos dias atuais, agitados por intensa crise de civilização.

O homem quer ser humano

Esta ânsia pela virtus (virtualmente, queremos ser “humanos-menos-imperfeitos”) é a marca patente de um outro romance, O homem bicentenário, também de Isaac Asimov (considerado o melhor romance de ficção do autor, publicado em 1976). Este segundo robô passa sua vida lutando (inclusive judicialmente) para se tornar humano. Em sua perspectiva, tornar-se menos vulnerável, mais completo e mesmo sabendo que a humanidade lhe traria finitude e morte. De nossa parte, especialmente se desterrados ou sitiados, presos ou soltos, mas inconscientes, experimentamos a interface da vida (apenas como caminho da morte), sem experimentar a liberdade. Aliás, o robô sabia bem qual era o preço da liberdade:

Podia ser livre, mas no fundo tinha um programa muito minucioso em relação ao seu comportamento com as pessoas humanas e só ousava avançar com passos bem tímidos; retrocedia meses quando encontrava franca desaprovação. Nem todos aceitavam a liberdade de Andrew. Era incapaz de ficar ressentido com isso, e no entanto sentia certa dificuldade no seu processo de raciocínio quando pensava no assunto (Asimov, 1997, p. 31).

 

            Um preço que seria mais moderado se a inteligência social fosse menos instrumental (em alguns casos, sectária ou coercitiva) e mais criativa. O próprio robô, enquanto robô programado, ainda atado à programação típica e triunfal (como se fosse seu tipo de “razão instrumental”), também não notava de imediato que o caminho da liberdade vinha pela criação, ou seja, por sua total reprogramação: “— Está limitando o seu campo de ação – disse Paul, pensativo. — como artista plástico, toda concepção te pertence; como historiador, você lida principalmente com robôs; como biólogo de robôs, vai lidar apenas consigo mesmo” (Asimov, 1997, p. 57). Esse lidar consigo mesmo não é um apelo ou ameaça da consciência, do peso de se ver obrigado a carregar o fardo da consciência humana?

Em estágio semelhante a nós, humanos, o robô precisaria adquirir uma consciência e uma inteligência interativa (literária): o robô deveria se afastar do cientificismo, do positivismo mecanicista e se aproximar das humanidades. O robô lutou para ser reconhecido como homem e em sua trajetória nos ensinou um pouco do que é preciso para vencer esse penoso e pesado processo de negações: “— Como que não vale a pena, se conseguir a minha condição humana? E, se não conseguir, vai acabar com toda essa luta e, portanto, também vale a pena” (Asimov, 1997, p. 80). O robô sagrou-se campeão na luta pela descoisificação:

— Há cinqüenta anos – disse o presidente diante de toda humanidade -, você foi proclamado o Robô Sesquicentenário, Andrew. – Fez uma pausa e depois, em tom mais solene, continuou: — Hoje nós o proclamamos Homem Bicentenário, Mr. Martin [...] Deitado na cama, Andrew aos poucos foi perdendo a consciência. Lutou desesperadamente para se manter lúcido. Homem! Era homem! Queria que fosse o seu último pensamento. Queria se desfazer – morrer – pensando nisso (Asimov, 1997, p. 31).

 

Andrew (que já era um humano mortal e não mais um simples robô infalível). Portanto, toda luta pelo reconhecimento é uma luta por enraizamento. Andrew lutou, assim como outros tantos milhões, contra a desfigurante modernidade tardia — Andrew não foi um robô-alegre como o que criticava C. W. Mills (1975), mas sim um robô-herói. Andrew foi o primeiro herói da pós-modernidade ou apenas um amante do humanismo. Tanto amou a humanidade que se propôs à finitude e à morte.

É tão estranha a relação política que podemos fazer entre ficção e a consciência que perdemos na longa história do poder no Brasil que, na rotina dos robôs há mais ética do que nas relações sociais predominantes na sociedade humana. Na cultura nacional, por exemplo, o jeitinho brasileiro, como sinônimo de esperteza, tem o intuito de burlar a lei, a interpretação da normalidade, regularidade esperadas. Para os robôs, mesmo aqueles que determinaram o Estado de Sítio Consciente – para o nosso bem – há regras duras, impossíveis de serem violadas. Estas cláusulas pétreas morais Asimov as apelidou de Leis da Robótica:

  • Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano, ou, através de inação, permitir que um ser humano seja ferido.
  • Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
  • Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Lei (CALIFE, in ASIMOV, 2004, p. 09 – grifos nossos)[2].

 

É certo que a cultura e as tradições são desafiadas constantemente, num ritmo nunca visto anteriormente em todo o mundo (Giddens, 2000), mas no Brasil o descontrole dos significados é avassalador, preocupante. Por isso tudo, não é difícil pensar as razões de nossa política anormal.

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1995.

ANGOULVENT, Anne-Laure. Hobbes e a moral política. Campinas-SP : Papirus, 1996.

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.

______ Eu Robô. Ediouro, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo, Editora UNESP, 2004.

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? Campinas, São Paulo : Papirus, 1991.

CHAMPAGNE, Patrick. Prefácio. IN : BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo, Editora UNESP, 2004.CERVANTES, Miguel. El cerco de Numancia. Madrid, Ediciones Cátedra, 1999.

DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”- para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assmann, do original IN : Dits et Écrits 1954-1988, Vol. IV. Paris : Gallimard, 1994.

______ Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes; 1977.

GIDDENS, A.As consequências da modernidade. São Paulo : Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991.

______ Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro : Record, 2000.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo : Ed. 34, 2003.

MARTINEZ, Vinício C.; SCHUMACHER, Aluisio Almeida. Luta por reconhecimento na "modernidade tardia". Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1270, 23 dez. 2006. Disponível em: .

MILLS, C. Wright. A Imaginação Sociológica. 4ª ed. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1975.

WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

       


[2]Elas formam a programação básica dos robôs e qualquer tentativa de quebrá-las provoca o colapso total do cérebro robótico [...] o épico espacial Planeta Proibido, de 1958, inspirou [...] Jornada nas Estrelas e Perdidos no Espaço. Perdidos no Espaço estreou na televisão em 1965, na mesma época em que o cineasta Stanley Kubrick produziu o clássico 2001: uma odisseia no espaço [...] o escritor Arthur C. Clarke, amigo de Asimov, queria equipar a nave da Discovery com um Robô chamado Hugo, obediente às três Leis da Robótica [...] Clarke ficou entusiasmado com minha sugestão e escreveu 2010: uma odisseia no espaço 2, romance que virou filme, exorcizando Frankenstein e reprogramando HAL com as três leis do doutor Asimov [...] Outro exemplo de um artista influenciado pelo livro Eu, robô é George Lucas. Seus robôs R2D2 e C3PO, heróis da saga de Guerra nas Estrelas são claramente moldados de acordo com a fórmula asimoviana [...] Um dos primeiro robôs a ser comercializado é um humanoide de 1,20m criado pela empresa japonesa Honda e que recebeu, com muita justiça, o nome de Asimo [...] Ele morreu em abril de 1992, com 72 anos, deixando uma obra de 470 volumes sobre assuntos que vão de ciência a Shakespeare (CALIFE, in ASIMOV, 2004, pp. 10-12).

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