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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Estado de Exceção Purificador


O Estado de Exceção nos impede de ver os germes embutidos e sedutores tanto do fascismo quanto do totalitarismo. Mantêm-nos vislumbrados com as maravilhas da democracia formal e do Estado de Direito. Pois, em essência, não permite ao homem médio em sua vida comum perceber que é no ventre do Estado de Direito que está sendo gestada a besta da exceção. Porém, diferentemente de um filme de horror, a ficção se torna realidade e a criatura invernal devora a todos os despossuídos de poder. Não percebemos que é a na democracia ocidental – salvo as raríssimas “exceções” – que se operacionalizam cada dia mais as estruturas e superestruturas propícias ao Super-presidencialismo.

O Kaiserpresident é o gestor político-jurídico dos grupos de poder apossados pelo capital que mantém o Executivo distante das demandas sociais e dos interesses globais. Sob a forma-Estado Bonapartista, o Executivo é presa e predador: presa do capital nacional e internacional e predador das vítimas incontestes dos que podem mandar sem ter que obedecer à lei geral. A exceção – como se sabe – tem regras distintas para os donos do poder (mandatários, sobretudo, do Executivo que monopoliza o Legislativo e submete o Judiciário) e outras para os não-empoderados.

Culturalmente, nesse status político, não somos afetos ao diferente, ao inusitado (“lá onde havia o Outro, adveio o mesmo” – Baudrillard). O Poder Político aninhado no capital – descontrolado por regras beneplácidas e complacentes que o ausentam de toda forma de controle que não sejam as estabelecidas pelos próprios grupos de poder – não admite grupos distintos, com visões de mundo alternativas, porque esses grupos culturais poderiam se tornar detratores, rivais e inimigos. Não há cultura neutra – apenas para desfilar folclores e regionalismos – e, assim, o cultural em sentido político passa a formular proposições de caráter político; ainda que seja, inicialmente, apenas para requerer mais espaço para sua cultura florescer. Os ciganos nunca foram um ameaça política institucional – não têm partidos e nem projeto de poder –, no entanto, sempre foram perseguidos. Especialmente pelas religiões oficiais do Estado Moderno ocidental. Não pode haver, por óbvio, direito de sedição cultural, uma vez que rapidamente se tornaria sedução de poder de transformação.

É assim que vemos o totalitarismo como projeto de poder de um Estado Islâmico necrófilo, muito além da autofagia da cultura do Islã, mas nos silenciamos ou calmamente ignoramos as ações da Igreja Oficial; como se fossem apenas um mal menor, secundário – uma exceção dentro da regra da salvação pela fé redentora dos pecados da própria civilização ocidental. Este é o caso específico de freiras católicas irlandesas que escravizaram dez mil jovens e crianças em suas lavanderias, de 1922 a 1996 (portanto, pelo lapso de tempo, não foi uma exceção). Além dos atos criminosos análogos à escravidão, ainda cometiam abusos físicos e sexuais. Nas chamadas Lavanderias Madalena, as meninas ficavam de seis a nove meses trancadas – sem contato com o mundo exterior – para serem “purificadas”. Este era um dos mecanismos de “enquadramento” utilizado pelo Estado para subjugar e adestrar as meninas. Porque, no Terrorismo de Estado purificado, as meninas eram tidas como párias pelo modelo de pureza mítica reinante.

Crimes contra a inteligência

O niilismo totalitário, adorando-se incondicionalmente, evidentemente, não é exclusividade do Estado Islâmico (EI), uma vez que acossa - e muito - os Adoradores do Capital. Mas, o EI é a bola da vez, ao destruir definitivamente uma parte fundadora da história da Humanidade (e do próprio islamismo). A diferença - mesmo que sejamos pecadores do capital - está na tentativa de preservar o padrão civilizatório. Devemos sempre recordar do arquimilionário nipônico que queria ser enterrado com uma pintura única, mas acabou impedido pela Corte Superior japonesa. Depois de muitos protestos pelo mundo afora, o testamento foi negado, alegando-se exatamente o valor monumental da obra. Valor inestimável para a Humanidade, a pintura não poderia ser convertida ou reduzida aos milhões de dólares pagos na sua aquisição.

A diferença, então, é que o quadro foi resgatado do túmulo da vaidade e a proto-história do Oriente está sendo consumida pelo obscurantismo. E mais obscuro ainda é pensar sobre a "humanidade" que gerou/permitiu que o "lado obscuro da força" chegasse a tal ponto. Sem uma mudança radical no status do sistema global - com o capital internacional à frente -, iremos ver muitos outros EIs em igual ou superior ignorância do que é a Humanidade. Sem mudar as condições e bases mal assentadas, a ladainha só vai se repetir: "jogar bombas"; "matar líderes; “cortar a cabeça da medusa"; "invadir, destruir". Esquecemos de ver/dizer é que o EI é uma medusa (com muitas cabeças) que se transforma em centopeia, caminhando agilmente e com força bruta por todo o planeta. O que também não serve de desculpa para nada fazer, para não-combater o EI e sua avalanche de desintegração moral e cultural.

O que une os dois elos da promiscuidade política, entre Ocidente – que financia a instabilidade política para obter vantagens econômicas na região – e Oriente (destruidor de toda memória que não seja a sua), é a busca de financiamento para as “causas”. O Ocidente (a CIA/EUA) treinou Bin Laden e Saddam Hussein para combaterem os que não se dobravam ao Império. Fez o Iraque entrar em guerra com o Irã. Perdeu. Na derrota descartou tanto o saudita quanto o iraquiano, e depois caçou os dois em novas guerras de conquista. O Oriente sem horizonte, do EI, pratica o tráfico arqueológico com o Ocidente. Faz uma fortuna para comprar mais armas ocidentais de destruição da vida e da história, com a própria destruição da história do Oriente e das vidas daqueles que se colocam à sua frente. O Talebã, um dos precursores do EI, alimenta-se da venda de papoula e ópio para o Ocidente. Voraz consumidor de tudo que possa adormecer a consciência parasitária – dos que não agüentam servir ao sistema, sendo tragados por ele –, o Ocidente se comove com o Alzheimer da cultura histórica, mas quer esquecer irreversivelmente que é seu criador. Parace lenda, mas quando a história se afirma como farsa, as criaturas sempre se voltam contra seus criadores. Ou seja, não é lenda, é a sina de uma história mentirosa e contada aos pedaços, tropeçando em interesses mesquinhos de posse e propriedade. Consumidor da vitalidade de qualquer cultura, o passado dos engodos quer nos condenar a não ter futuro.

Vinício Carrilho Martinez

Professor da Universidade Federal de São Carlos

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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