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Vinício Carrilho

O Estado do Não


O Estado do Não

ou o fascismo que teima em não sair de casa

O proto-fascismo é dissimulado, esgueira-se pela falsa consciência (da meia-verdade que é uma mentira inteira) plantada pelos aparatos de poder (ou contra-poder) que quer se manter como poder (ou abocanhá-lo).

Mais uma vez Kafka será extremamente útil para entendermos a rebeldia das elites nacionais e de suas massas comandadas. O escritor será útil tanto para entendermos a manipulação (sobretudo pelos meios de comunicação de massa) quanto para visualizarmos o modus operandi (fascista) que deprecia a consciência política e a cultura popular.

De modo conciso, veremos o Estado de não-Direito como uma das formas absolutistas ou absolutizadas do Estado de Exceção.

O Estado de não-Direito é aqui retratado como uma categoria política negativa do Direito como fato social (Canotilho, 1999). No pólo positivo do antagonismo, poderíamos ver o Estado Jurídico como negação do não-Direito. Os caminhos para esse tipo de abordagem são inúmeros, porém utilizaremos uma das muitas metáforas de Franz Kafka que, além do romance O Processo, escreveu contos que nos permitem essa mesma leitura, a exemplo de Josefina, a cantora ou O Povo dos Camundongos.

Kafka e o Estado do não-Direito (o Estado K. - de exceção absoluta)

As metáforas de Kafka, portanto, serão aqui empregadas como antíteses do não-Direito, ou seja, como negação do arbítrio e da violência que se desencadeia a partir da negação inicial. Trataremos de algumas características do que chamaremos de Estado K., como um tipo de Estado de Exceção.

Os contos de Kafka, desse momento de sua vida (entre 1922 e 1924), remetem-nos à abordagem metafórica e crítica dos regimes políticos autocráticos, principalmente se partirmos de sua experiência pessoal às vésperas da erupção nazista. Basicamente, os contos antinazistas reunidos nesse período são: Uma pequena mulher; Um artista da fome; Josefina, a cantora; O Povo dos Camundongos; A Construção (Kafka, 2002, p. 112).

Para esta análise, vamos nos deter mais especificamente no contoJosefina, a cantora ou O Povo dos Camundongos, em que destacaremos o que chamamos de os princípios básicos da autocracia e suas consequências. Um ponto inicial no conto é a revelação de que a elitização cultural é necessária a fim de se destacar – para fins de comparação[1]– a mediocridade popular.

Referindo-se à personagem central, à cantora Josefina, Kafka – por intermédio de seu narrador – refere-se da seguinte forma:

Ela tem só desprezo por aqueles que têm opinião contrária à sua – e provavelmente um ódio não confessado [...] a arte dela nos faz bem e quando nos sentimos bem, assobiamos; mas sua audiência não assobia, nela nem um rato bole, como se participássemos todos da paz almejada, da qual nosso próprio assobio no mínimo nos aparta – e por isso silenciamos. É seu canto o que nos enleva ou a quietude solene que envolve a fraca vozinha? (Kafka, 2002, p. 40-41).

Diga-se de passagem que o narrador é persona non grata, além de que enfrenta um terrível processo de coisificação e de inculcação do sentimento (sofrimento) de inferioridade: o camundongo é um ser inferior, uma coisa menor. Deveria ser devorado.

Na mesma linha, mas no polo da coisa maior, decorre a visão ou a percepção geral sobre a personalidade da personagem Josefina. Daí advém nossa interpretação acerca dos princípios e das características que conformam a opressão nazi-fascista. Por isso, os três princípios iniciais destacados são:

·                    Primeiro Princípio: “insuflar ódio e instigar desprezo pelos inferiores”.

·                    Segundo Princípio: “Alimentar a arrogância”.

·                    Terceiro Princípio: “Impor o silêncio e a resignação”.

É claro como os três (re)quesitos estão interligados, mas, no caso do terceiro princípio, é evidente a conjugação de três verbos de forma negativa. A voz do narrador no Estado K. (a própria voz popular) soa fraca, afogada, rouca, tênue, sonolenta, quando diz: não vi; não ouvi; não falei – ao contrário de Júlio César, de posse da máquina de matar do Estado que, ao conquistar seu imenso poderio, vaticinava: vim, vi, venci.

Do sujeito de direito e da Ação Repressora

Os sujeitos – na verdade, uma espécie de narradores condenados (Josefina não permite que ninguém pense e fale por si) – fazem ouvidos moucos, de mercadores, como forma de oposição resignada de espantalho, como povo estupefato e nutrindo plena devoção: acrítica, insuspeita, irreal. Assim, a conseqüência é clara: alimenta-se ainda mais o sentimento de inferioridade que lhe deu origem.

Disto decorrerá de forma lógica o quarto pressuposto, qual seja, a obediência natural. A questão mais intrigante é, sem dúvida, histórica: comparativamente à história da Segunda Guerra Mundial, por que uma caricatura (Hitler) pôde ser objeto de tanta devoção?

Uma resposta plausível apresenta-se porque o falso narrador traz o manto do salvacionismo (quinto princípio). Pelo silvo da ignorância, impõe-se não a dominação racional, mas a dominação brutal, meio-bestial, alimentando-se a ignorância com mais ignorância, com maior castração. A verdade não dita a todos os interessados é simples e direta: salvar o povo é fácil, pois o povo sempre se salva, e quase sempre por si só.

O sexto princípio também não poderia ser outro que não fosse alimentar a ignorância, pois com isso se ignoram os fatos, seus matizes, as contradições, as meias-verdades, as idiossincrasias, as dissimulações, as tergiversações, as ideologias-totalizantes. Da regra jurídica que possa haver, vai-se imediatamente à excrescência social.

O sétimo item, igualmente decorrente dessa série de manipulações/desfigurações, recorre da destruição da inocência em que todo o povo é alçado à condição de culpado, até que se prove em contrário. Neste caso, vive-se em martírio, penitência, abnegação, obstinadamente infeliz até que se possa expiar toda a culpa.

A juventude nazista julgava, culpava e delatava os próprios pais. Essa vida pública tirada a fórceps, em que a infância é mutilada, com menosprezo do lúdico (daí o machismo: “é coisa de meninas ou de afeminados”), acaba por construir mini-adultos robotizados, em vivência de neurose total.

Trata-se, portanto, de uma vida-pública-totalizante, mas sem convivência, com vida social interativa, passível de ser com-partilhada: o robô não era e não é inteligente, sendo incapaz de projetar e de reconhecer o Outro. E este é o oitavo princípio, e que, por sua vez, liga-se ao próximo item, que é a infantilização no trato das questões sociais sérias: apenas as autoridades são adultas o suficiente, sendo os demais apenas robotizados (nono princípio): a idiotia vira assunto-reflexo do Estado.

Diante do novo, a resposta é invariavelmente anacrônica e reacionária: “a salvação está no passado”, o futuro é cópia desse passado (décimo princípio), o que nos leva a mais um pressuposto: rejeitar a descontração ou a informalidade. O formalismo, a burocratização das relações cotidianas e sociais, a demonstração do controle formal dos meios de poder, são dados que constituem a mediação possível daqueles que, diante do poder de fato, não admitem a nulidade de si mesmos. Uma falácia de seriedade, um processo de coisificação como no Capote de Gogol (1986). A vida burocrática passa a ser a “coisa” mais importante que se tem (11º princípio).

Os salvadores, aqueles que se colocaram acima dessa bestificação (porque são os precursores do próprio processo), instigam um nivelamento por baixo, no sentido de que não há saída fora desse sistema circular, vicioso, recrudescido, violento: a desesperança é provocadora do cinismo, e este é o 13º princípio. Já o 12º princípio é justamente viver sob a desesperança, e viver desesperadamente, tensionado, estressado.

Assim, novamente, pode entrar em cena o salvador, a fim de alimentar um sonho grandioso de poder de império (como cópia do Império Romano, o III Reich queria durar mil anos), partindo-se da sedução (falácia) de uma paz grandiosa, infinita, portanto, eternamente sedutora: o 14º princípio.

O 15º pressuposto não pode ir muito longe e irá revelar que o sábio fascista é aquele que fala o que o povo quer ouvir (nem mais, nem menos), sem provocar nenhum desconforto, angústia ou inquietude de alma. O que se faz é repetir o senso-comum e reforçar a ignorância da “inocente simplicidade”. Isto é, o populista não deve revelar a verdade, só os fatos que lhe interessam, na toada da música que embala a plebe ignara: o máximo de cultura fascista é um Vivaldi[2] para dormir.

O bom-senso, do tipo “quem usa, cuida”, e que possa haver na voz rouca das ruas, deve ser combatido em razão da crítica que de fato alimenta sua ironia, e que é substituída pela razão bovina do senso-comum. Portanto, aqui, o ditado popular é falsamente apaziguador, porque perdeu a manjedoura da consciência popular. Esqueceu-se (ou quer esquecer-se) que a sabedoria popular desafia a si mesma, mais exatamente porque tem as duas faces da mesma moeda: enquanto assegura que “quem trabalha, não tem tempo de ganhar dinheiro”. Sob a tutela da canga (jungido ao jugo), até mesmo como mecanismo de sobrevivência, o povo-sábio se vê obrigado a pular para trás, ou então atira no pé, ao recomendar que se deve “deixar como está, para ver como fica”. Nesta que é a máquina da ignorância fascista.

Quando submetido à tutela estatal, a cultura popular permanece realmente dúbia; enfrentando um doloroso processo de despersonalização, a parca cultura resta com sentido duplo, impreciso, sem destinação. Também se fala de uma espécie de culpa culturalmente interiorizada no povo, com intuito claro de sua despersonalização, submetendo-o a um incessante, massacrante processo de inculcação do sentimento de inferioridade.

Nesta fase, perdeu-se a capacidade crítica das próprias tradições e, outra vez, o discurso salvacionista nos remete a alimentar uma postura fraternal; mas, sabendo-se desde logo que os mandantes estão sempre acima da lei. No Brasil, vivemos um claro bordão da injustiça disseminada e sistêmica: “aos amigos tudo; aos inimigos, a lei”. Neste que é o 16º princípio fascista.

O 17º princípio seria um tipo de resumo do que vimos até agora – é de interesse direto produzir um discurso de autoridade que reafirme as verdades absolutas –, pois com os dogmas, faz-se da política uma evangelização. O evangelho ou a catequese que, por sua vez, produz um conhecimento a ser apropriado pelos escolhidos (a “profissionalização da política”), pelos que têm mérito para tal – e esta é a meritocracia[3] que vemos surgir como ideologia no 19º princípio.

A verdade absoluta, todavia, está a cargo das lideranças e das mesmas elites que a produziram, isto é, quando se refere ao povo se joga baseado no improviso, provocando-se um sentimento de insegurança geral. Isto ocorre porque se quer a proteção apenas das elites e porque assim os líderes podem produzir um discurso de defesa ou de salvação de si mesmos. Com isso fechamos o 18º pressuposto.

Já os demais princípios, vamos apenas indicá-los: 20º) idolatria do trabalho; 21º) provocação de ansiedades; 22º) exacerbação das próprias qualidades; 23º) celebração dos fins que justificam os meios; 24º) burocratização de todo espaço social; 25º) reiteração da mentira; 26º) teatralização e infantilização do espaço público; 27º) bajulação dos poderosos; 28º) celebração e personalização do poder; 29º) “popularização populista”, mas não popular.

Infelizmente, esses e muitos outros traços do fascismo estão presentes na sociedade brasileira, como o racismo, a homofobia, o elitismo. Talvez o mais correto fosse dizer que nunca deixaram de estar apresentáveis, quer latentes, quer mais atuantes.

Bibliografia

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.

GOGOL, Nicolau.  O Capote. Editorial Alhambra : Rio de Janeiro, 1986.

KAFKA, Franz. O Veredicto/Na Colônia Penal. (4ª ed.). São Paulo : Brasiliense, 1993.

______ Um artista da fome - A Construção. 2ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 2002.

______ Narrativas do Espólio. São Paulo : Companhia das Letras, 2002b.

Vinício Carrilho Martinez

Professor da Universidade Federal de São Carlos



[1]Diríamos comparação e auto-afirmação, mais autocrática do que meritocrática.

[2] E ainda que Vivaldi deva ser ouvido por todos, especialmente em regimes democráticos.

[3]Um processo elitista que separa do meio do povo multicultural e miscigenado, todo ser social cara-pálida.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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