Segunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Estado Penal visto por um juiz


 

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)

Professor Ajunto IV da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/CECH

Jovanir Lopes Dettoni (Ms.)

Advogado e professor do Departamento de Ciências Jurídicas – UNIR/RO

As imagens abaixo foram fixadas pelas lentes de um juiz de direito. São reflexos do sistema prisional do país. Mas, mais do que isso, revelam a face mais obscura do poder de Estado que nos coloniza desde sempre.

As fotos revelam o que o poder pensa acerca da miséria humana e como trata o povo pobre, negro, desabastecido de esperança, incrédulo na justiça. Pessoas que, sem dúvida, mais dia, menos dia, serão desafetas do direito e da ética que os aprisionou nos confins das masmorras da civilização.

O Estado Penal visto por um juiz - Gente de Opinião
 

A imagem do não-ser, à espera do que não-fazer, sem-ter como ser-diferente.

A imagem de quem nunca-foi e, muito provavelmente, nunca-será.

“Hoje, estou contido. Mas, amanhã, estarei contigo” (diz um preso na CPI do sistema carcerário).

A imagem, no reflexo invertido, de quem somos do lado de fora.

A imagem do luxo de quem produz tanto “lixo” para os humanos.

A imagem dos “direitos dos humanos”, porque são incapazes de conhecer do direito.

A imagem de quem nunca saberá o que é direito, por mais que estude.

Porque é a imagem do direito que não se aprende em codificações, mas sim no senso de humanidade.

A imagem de que a luta pelo direito falhou por aqui, se é que houve um dia.

Porque a luta pelo direito é uma luta política que se faz no meio da luta de classes.

A imagem do direito, portanto, de quem sempre renegou a óbvia luta de classes, e agora  estampada pelo próprio operador do Estado Penal.
 

O Estado Penal visto por um juiz - Gente de Opinião[1]

A imagem do resto do humano que um dia entrou ali.

Ao contrário do que estampa a imprensa oficial – seja remunerada ou não –, não se trata de precariedade. O termo vazio, inodoro, insípido poderia revelar a situação da despensa caseira de milhões de brasileiros. E mesmo seriam teriam dignidade ao comer.

O discurso da precariedade de condições esconde, cinicamente, o crime sistêmico cometido contra o povo, pelo próprio Poder Público. Por isso, alguns juízes são tão severamente perseguidos por seu empregador. Porque dizem o que deve ser dito, sem chavões e acomodações do sistema desumano, impróprio para a sanidade de qualquer um – inclusive dos que lá trabalham.

Porém, para melhor entendermos a situação – numa análise sistêmica e global – precisamos responder algumas questões. Trata-se “do lide” do Estado Penal: O que é? Como é? Onde? Quem o manuseia? Quando se verifica?

O porquê disso tudo virá como impulso e consequência da realidade societal que nos massacra em casa e na rua. O porquê é conhecido, e por isso ficará como conclusão.

1.      O que é o Estado Penal?

Conceitualmente, o Estado Penal é uma engrenagem político-institucional que faz do aprisionamento crescente (em massa)  uma forma rentável, lucrativa, independente da capacidade de recuperação/ressocialização, ao próprio poder encarcerador.

Quanto mais presos forem feitos, em sociedade violentada e violenta do capital expiatório, mais rentável o negócio. Quanto menor a taxa de ressocialização – e que aciona a reincidência contumaz e progressiva –, mais lucrativo será o negócio do crime para o Poder Político gerido pelos interesses do capital hegemônico.

Na Ditadura Inconstitucional, o máximo do antidireito (Filho, ) vem com a presunção de culpa baseada na livre convicção do senso comum: “todos são culpados até prova em contrário”. (Mas, como, se não precisa de comprovação?). Como há Mal que não se acabe, o fim da humanização nao só é protagonizado institucionalmente[2] como é alimentado pelo institium do Estado Penal (Wacquant, 2003).

2.      Como é ou como se operacionaliza o Estado Penal?

No geral, especialmente nos EUA, o sistema prisional tem intima ligação com o sistema produtivo. Esta engrenagem econômica, pena-produção, só é possível, obviamente, porque há um encarceramento em série, em escala, que oferta mão de obra em abundância. São aproximadamente cinco mil unidades prisionais e mais de 2,5 milhões de presos. A privatização da pena, portanto, é sua engrenagem.

No Brasil, o processo é um pouco diferente, ainda que caminhemos para a pauta da privatização também. Nosso foco permanece baseado na vingança pública, pois, em que pese ser tratado constitucionalmente como ressocialização, a pena de encarceramento, raramente, traz benefícios sociais. Além disso, é um sistema altamente seletivo, desagregador e racista. Nesta conta estão negros e pardos, todos pobres e analfabetos funcionais ou totalmente excluídos do mundo do trabalho. Ainda que a pena pudesse ressocializar, sem qualificação educacional ou técnica, quase nenhum dos apenados teria a sorte de encontrar emprego e colocação social. Basicamente por duas razões: desqualificação funcional; estigma de presidiário negro ou pardo, e pobre. Portanto, por aqui – ainda que nos EUA também –, verifica-se um forte conteúdo de classe social, de segregação racista e de exclusão da vida pública.

3.      Onde se manifesta o Estado Penal?

Ao contrário de sistemas corretivos como da Holanda e de outros países nórdicos – que fecham presídios, por escassez de infratores –, tanto nos EUA, quanto entre nós, o sistema penal se aplica quase exclusivamente à pena retributiva. Quer dizer, de cunho punitiva: “olho por olho, dente por dente”. Na base da relação crime/castigo, forma-se um substrato social de puníveis que vieram diretamente da exclusão do mundo econômico e produtivo. Enquanto nos EUA é evidente o fenômeno da guetualização, estigmatização geográfica (antigos filhos do Harlem), por aqui as periferias, comunidades e favelas são depósitos humanos. Uma parte, sem dúvida não-majoritária, é formada de trabalhadores e de produtores de sua subsistência, mas a imensa maioria é tida como lumpemproletariado. Isto quer dizer que funcionam, sistemicamente, como fator de pressão social sobre a classe trabalhadora. Ao não se manterem, por si, como fragmento social ou fração de classe (dada sua proximidade com a classe trabalhadora), são reféns fáceis da criminalidade. Não importa muito a razão individual de cada escolha, o fato é que a condição de dejeto humano os impulsiona para o que se chamava antigamente – hipocritamente – de “fímbrias sociais”. São meros filamentos humanos de uma engrenagem que não precisa deles para se por em operação.

4.      Quem manuseia o Estado Penal?

No Brasil, com o incremento dos chamados “crimes hediondos”, pode-se pensar que o Poder Público seja o fator protetivo de uma sociedade que clama por “ordem e lei”. Na verdade, basta uma verificação mais apurada para vermos que as votações dessas leis atentem aos interesses de determinados grupos, classes e setores sociais. Denominados de Grupos Hegemônicos de Poder, fazem-se representar por bancadas bem estabelecidas no Congresso Nacional. Por meio do grupo que se auto intitula de Bancada BBB, os segmentos sociais, econômicos, corporativos e culturais representativos da cultura proto-fascista – germinada pelo coronelismo, patrimonialismo, patriarcalismo – ecoam por meio da legislação regressiva e repressiva. Assim, o Estado Penal no Brasil atende pelo primitivismo penal.  

5.      Quando se verifica a instituição do Estado Penal?

Tradicionalmente, a partir da exemplificação estadunidense, o Estado Penal serve como aporte jurídico-penalista ao sistema econômico. Porém, por aqui, não tem apenas uma função social regulativa/punitiva ou de controle social. O Estado Penal funciona muito mais como mecanismo de controle/posse do poder estabelecido – quase como sesmarias políticas – e, desse modo, sua principal função é de forte estratificação e estagnação social. Como índice mais preciso desse fato/fator de exclusão/expurgo social, basta-nos verificar que a mobilidade social, granjeada pelo capitalismo hegemônico, nunca foi a mola propulsora de nossa sociedade. Por aqui, há um verdadeiro divórcio entre função social (trabalhar, gerar riqueza, no mote do liberalismo clássico) e status social: quando há crescente aproximação societal (pelos níveis educacionais formais, pela cultura da violência) entre a classe trabalhadora e o lumpemproletariado.

O porquê do Estado Penal

O porquê, se nos é forçoso encontrar apenas um, remete-nos à estrutura social excludente imposta pela sociedade patriarcal brasileira. Como condição social que tem um forte cunho racista, classista, misógino, elitista, o sistema prisional funciona como apartheid jurídico/judicial que impele as classes sociais indesejadas – e ainda que fundamentais à operacionalização econômica – para as masmorras da lei meramente repressiva. A “força de lei retributiva”, nos EUA, é uma senha produtiva; para nós, a “força de lei primitivista” é o santo graal do degredo social e humano. Nas condições de miséria humana em que nos encontramos, a única retribuição possível e esperada é o crescimento da desumanização, do embrutecimento e da cultura proto-fascista.
 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoSegunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Segunda-feira, 6 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)