Quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O que é o Estado?


A corrente majoritária no mundo jurídico associa o Estado à ideologia do Bem Comum, sacramentando-se com a definição trazida pela encíclica Pacem in Terris, em 1963. O senso comum também referenda este pensamento, como diriam nossas mães: “O Estado é um conjunto de pensamentos e ideais mais ou menos iguais dos que lutam por uma vida melhor para todos”. A lógica não traria conclusão diferente, afinal, por que razão o homem criaria uma instituição tão poderosa quanto o Estado para lhe fazer o Mal?

Todavia, a análise das relações de poder não demonstra exatamente isso, pois há classes sociais e grupos de interesses que instrumentalizam o Estado, levando-o a agir de acordo com motivações menos nobres. O Estado brasileiro, por exemplo, apesar dos avanços institucionais, normativos e políticos, ainda reflete o passado patrimonialista. O Estado Patrimonial guarda como segrego de alcova o fato de que as impurezas da cultura das elites dominantes são estendidas a todo o conjunto da cultura nacional.

Historicamente, o Estado remonta à Suméria, atual Iraque (7000 a.C.). As primeiras formas de Estado, o chamado Estado Antigo, eram baseadas exatamente na exploração da explosão da violência, a fim da conquista e da dominação (com penalidades igualmente lastreadas em repressão e violência)[1].

Para a antiga Filosofia do Estado, Aristóteles e Platão, o Estado surge como a melhor forma para se organizar a sociedade; como organização política para a justiça. Porém, alguns sofistas acreditavam ser o Estado apenas “o interesse do mais forte”, encontrando-se o Estado basicamente ligado ao poder. Em todo caso, mesmo que se ocupasse de grupos de interesse específicos, o Estado não seria uma oligarquia – acreditavam os gregos –, uma vez que vários grupos em disputa equilibrariam a balança da justiça.

O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[2], isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com uma vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).

Como definiu Hannah Arendt, de modo preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[3], isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação.

Na Idade Média, o Estado passou a ser tido como instância de poder inferior à Igreja; sendo algo frequentemente Mau (Santo Agostinho) ou como mero reflexo da Igreja (Tomás de Aquino). Do Renascimento em diante, como status (Maquiavel[4]) e contrato (Hobbes), o Estado se separou gradativamente da Igreja: a soberania temporal[5]se afirmou na transição para o primado do Estado (laico).

Com Spinoza, o Estado sintetiza a liberdade, “a comunidade de homens livres, mas livres porque vivem no Estado segundo o decreto comum”. Neste sentido, o Estado é o equilíbrio entre religiões, ideologias, classes e indivíduos. Na Ilustração, o Estado é o caminho da razão e a libertação do obscurantismo (despotismo esclarecido). Já o romantismo alemão acabou por associar o Estado à Nação, em que o Estado encarnaria o próprio espírito nacional – e como se não houvesse, por exemplo, contradições entre a sociedade e a família (Mora, 2001). Em todo caso, surgiram noções, ideais, elementos e instituições que perduram até hoje:

  • O Estado é status, força que garante a permanência, estabilidade, durabilidade da organização social (Maquiavel)
  • O Estado e suas leis correspondem ao pacto ou contrato anterior (Hobbes)
  • O Estado sacramenta a “vontade geral” (Rousseau)
  • Como componente do Estado, o povo não é um meio político (Kant)
  • O fortalecimento da moral coletiva é o objeto do Estado, como espírito público (Hegel)
  • O Estado é “a organização da sociedade que garante a liberdade” (Spinoza)
  • O dever fundamental é garantir o cumprimento dos direitos fundamentais (constitucionalismo)

 

Para a Sociologia Política do Estado, o Poder Político tem cada vez mais sido relacionado ao capital, como exemplo de sua temporalidade. Contudo, o Estado pode ser tido como uma instituição geral que congrega muitos elementos e outras instituições-parte:

  1. Instituições de suporte dos meios de violência e de COERÇÃO
  2. Suas instituições são geograficamente delimitadas, como SOCIEDADE
  3. A institucionalização das normas sociais e das regras jurídicas gera uma CULTURA POLÍTICA compartilhável

 

Neste leque, o Estado é definido como organização social que produz cultura política por meio da coerção. No entanto, configura-se um paradoxo insolúvel, entre liberdade e coesão social: “A teoria tradicional preocupava-se com o alcance dos poderes discricionários do Estado” (Outhwaite & Bottomore, 1996,p. 258). Mas, a realidade obrigou a uma segunda concepção “infra-estrutural”. Isto é, o poder do Estado é medido a partir de sua capacidade de colaborar com os vários grupos sociais que o compõe. Este poder colaborativo ainda atuou como limitador ao poder despótico do Estado.

Na interpretação da Filosofia Jurídica do Estado, o leque é amplo, de Hegel a Kant, de Del Vecchio a Duguit. Hegel definiu como Estado Ético: “realidade da ideia moral”; “substância ética consciente de si mesma”; “síntese do espírito coletivo”; “instituição acima da qual paira somente o Absoluto: a arte, a religião, a filosofia”. Em Kant, o Estado surge como “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. Para Del Vecchio é “a expressão potestativa da Sociedade”; “o Estado é o laço jurídico ou político ao passo que a Sociedade é uma pluralidade de laços”. Em Burdieu: “o Estado se forma quando o poder assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante uma operação jurídica que se chama a institucionalização do Poder” (Bonavides, 2012, p. 66-67 – grifos nossos). Também é possível ir além e visualizar a política-social, como o exercício de uma força política capaz de proporcionar interação e sociabilidade:

Há atualmente a necessidade de‘deflacionar’ seja a política-competência, seja a política-interesses para conquistar de novo um observatório capaz de voltar a conectar a competência política e os interesses com o quadro do conjunto das instituições e dos procedimentos jurídicos nos quais funciona o Estado Moderno, e também com o quadro dos valores culturais de onde nasceu a liberdade moderna (Cerroni, 1992, p. 12 – grifos nossos).

        

Neste sentido, o Estado deveria atuar como vetor político de elevação dos critérios de racionalização e imprimir valores próprios ao processo civilizatório, e a partir de ideias e ideais como República, Democracia, Estado de Direito, Liberdade, emancipação, consciência e responsabilidade pública.

Em todo caso, inicialmente, ainda podemos entender o Estado como um tipo privilegiado de comunhão política, seja como força potestativa, seja como aliança de classes. Mais frequentemente é definido como o Poder Político organizado, sendo centralizado na forma de um poder unitário. O que implica em afirmar que o Estado é um poder único e centralizado (mesmo sob a forma da Federação e dos Estados autônomos). O Estado também é a instituição por excelência responsável pela organização das demais – o que ressalta a importância da divisão de funções – para a administração e controle do poder – e congrega como elementos funcionais o povo, o território e a soberania. Mas isso não explica muita coisa, pois é preciso, por exemplo, discutir em que consiste a soberania, a quem e de que modo se organiza esta soberania, em que bases territoriais e culturais abriga-se determinado povo.

            Em todo caso, como instituição por excelência, o Estado conhece a outra forma complementar de exercício do Poder Político, além da regulação da política – neste caso quando opera como Poder Público. Se o Estado é o Poder Político centralizado (esta também seria uma definição para soberania), o Estado também é o Poder Público que se manifesta como organicidade e funcionalidade administrativa.

            É como se dissesse que o Poder Público é uma forma especial de conversão do Poder Político, atuando como prestação de serviços essenciais ao público, ao povo, e à administração do próprio Estado. Assim, o Estado é a conversão do poder in natura – inerente a qualquer organização social – em poder organizado para a dominação.

            Então, Estado é a transformação da política em ato regimental do poder de se estabelecer a própria dominação. O que permite entender que o Estado promove a ordem jurídica por meio da coação física. Mas, acima da força física,o Estado é a organização política que faz brotar a norma jurídica onde só havia a força. Contudo, o Estado é a instituição que se prima pelo exercício legítimo da força física e do monopólio legislativo. O efeito prático é a criação da hegemonia exercida sobre a força física e demais mecanismos de controle social.

Este é o “fator hegemônico” que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da sociedade. Nas sociedades capitalistas, nas democráticas e nas republicanas, é o fenômeno que ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do “direito a ter direitos”. Assim, efetivamente para que hegemonia não seja sinônimo de monopólio, o emprego do termo hegemonia deveria seguir o princípio grego:

O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”, “ser líder”, ou também do verbo eghemoneuo, que significa “ser guia”, preceder, “conduzir”, e do qual deriva “estar à frente”, “comandar”, “ser o senhor”. Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar[6]. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01).

           

Desse modo, o Estado é a instituição que exerce o monopólio (legítimo) da força física, mas também deveria ser o guia e o suporte dos institutos democráticos e republicanos. O que nos leva a concluir que oEstado é mais do que um contrato de poder ou de dominação, mesmo porque a dominação pode rapidamente se converter em opressão e até expropriação ilegítima de bens, valores, tradições e de graves violações de direitos.

            É certo que uma escolha política anterior determinou o Estado – se foi por meio de um contrato, esta é outra questão; porém, ao mesmo tempo, o Estado é a instituição capaz de transformar a política em norma e regimento. Desse modo, o Estado faz conviver e legitima as regras sociais e as normas jurídicas. Portanto, o Estado é o poder organizado para a dominação, para o fato de que a política impõe finalidades, meios e consequências. Vendo-se que o Estado é o árbitro entre meios e fins políticos. Portanto, utilizar a ágora para aniquilar a liberdade e o próprio Estado de Direito é como retroagir a um Estado pré-moderno, abrindo brecha a muitos usos/abusivos do poder. O que nos leva a concluir como em Hannah Arendt que o Estado Constitucional é regulado pela soberania popular:

O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço (Arendt, 1998, p. 75).

 

A principal função pública do Estado é assegurar regularidade à organização social que lhe deu origem. A fim de assegurar o controle social – instaurando níveis suportáveis de desregramento e infrações sociais, como normais – o Estado conta com a Administração Pública. Por isso, o Estado ainda é Administração Pública e gestão de políticas públicas.

De modo amplo, definindo-se o Estado como organização social para a normalidade, pode-se ver que o Estado regulariza os embates políticos e ideológicos e assim limita juridicamente os conflitos de interesse. Obviamente, o que é normal ou não será estabelecido pelos grupos dominantes em exercício no próprio Poder Político.

            Por fim, o Estado é uma forma especial de organização da política, da normatização jurídica e das relações sociais. De tal forma que o Estado se converte em soberania política, jurídica, organizacional. Portanto, ainda pode-se dizer que o Estado, como poder soberano, sofre uma divisão e passa a conhecer outras formas de limitação ao poder central, por meio da soberania interna e externa.

 

Bibliografia

ARENDT, H.O que é política. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.

CERRONI, Umberto. Política: método, teorías, procesos, sujetos, instituciones y categorias. México, D.F. : Siglo Veintiuno Editores, 1992.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. (4ª Ed.). Rio de Janeiro : Graal, 1978.

_____ Tudo começou com Maquiavel: as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre, Rio Grande do Sul : L&PM, 1980.

MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomos I e IV. São Paulo : Loyola, 2001.

OUTHWAITE, William & BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996.

 


[2]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

[3]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

[4]É Maquiavel quem utiliza pela primeira vez o vocábulo Estado, em que o Estado, (status = forte), é uma fortaleza, firme, constante.

[5]A Soberania é um dos elementos de formação do Estado Moderno, contudo, a soberania temporal, como separação do poder da Igreja, é um dos seus rudimentos mais importantes.

[6]E como serviu bem às alegações da Razão de Estado, da modernidade em diante!

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuarta-feira, 1 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

 Toda tese é uma antítese

Toda tese é uma antítese

A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez

Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes são racistas

Todos os golpes no Brasil são racistas.          Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas.          É a nossa história, da nossa formação

Emancipação e Autonomia

Emancipação e Autonomia

Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a

Gente de Opinião Quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)