Segunda-feira, 8 de julho de 2013 - 21h26
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
Venero a lei, e especialmente nosso sistema de leis,
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como um dos mais vastos produtos da mente humana.
Mas pode-se criticar mesmo o que se venera.
Holmes Jr.
Para o ditado popular, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, poder é simplesmente ordenar e obedecer? Nesta relação apenas um manda e outro obedece? Esta definição corresponde à definição de Poder Público?
No senso comum da política – e este pensamento não está de todo errado, apenas incompleto –, o poder é a capacidade de impor sua vontade, de determinar que o(s) outro(s) façam muitas vezes o que é contra seu interesse ou que deixem de fazer o que gostariam de realizar. Para o bem, para o mal, o poder é sempre determinação, acatamento, realização.
Não há sociedade sem poder, por mais simples que seja, como contrato de dois ou um pouco mais de indivíduos, sempre haverá obrigações de fazer ou de não-fazer. Em todo caso, ainda é preciso discutir a(s) forma(s) como este poder é efetivado, quem se submete a ele e o quanto pode ser útil e benéfico (ou não) à coletividade. Ou seja, poder é uma relação.
Seja para massacrar, seja para libertar um povo, o que sabemos – empiricamente, historicamente – é que o poder é uma construção social. Só faz sentido falar do poder como relação social, ampla, conectada à sociedade. Não há poder fora da sociedade; não há poder que se realize unicamente dentro do Estado e das suas instituições, partidos ou agências, bem como das corporações e sem que haja conexão social. Mesmo o poder limitado no tempo-espaço de uma corporação, que restringe seu contato social, é um poder social que quer evitar maiores aproximações da corporação com o restante da sociedade, ou seja, este poder restritivo tem como principal função mitigar a relação social. Mas, não deixa de ser um poder social, ainda que se queira o afastamento da sociedade.
O poder é uma construção social
É mais do que certo que o poder é uma relação, mas é uma relação que envolve sujeitos e substantivos, trata-se de uma experiência empírica e não metafísica, seja entre senhor e escravo, homem/mulher, pai/filho, empregador/empregado, governante e governados. Mas como se constitui esta relação em que a política se define como uma experiência empírica do poder? Se o poder é uma relação (determinação, acatamento, realização), é preciso ter em conta a efetivação desse poder, suas formas de manifestação e de realização. Mesmo o poder como virtualidade (virtus = potência) precisa apresentar condições reais de efetivação.
O poder não pode ser reduzido a uma experiência psicológica, em que uma personalidade quer se impor a outros indivíduos – e ainda que isto seja verdadeiro. Como relação, o próprio poder decorre de experiências, estruturas e dinâmicas sociais anteriores. Para Maquiavel (1979), apesar do homem de virtù (de virtudes políticas aplicadas ao poder) almejar a conquista e manutenção do poder, do Estado ou do Império, suas virtudes dependem do contingenciamento da política. Neste sentido, pode-se dizer inicialmente que haja um poder embasado em virtudes (virtù). Note-se que são as virtudes próprias da política, em que “os fins justificam os meios”, são todas as virtudes que servem à conquista, organização, manutenção e ampliação do poder.
De modo quase geral, alimentado pelo senso comum, acredita-se que Maquiavel produziu um manual sobre o poder, como conquistar e manter o poder, sendo quase um manual de autoajuda para políticos – especialmente os sem-escrúpulos. No entanto, Maquiavel, como criador da Ciência Política, produziu um manual sim, um clássico sobre a formação da Razão de Estado.
Maquiavel e o poder como virtù
Muito simplificadamente, virtù – como antiqua virtus – equivale à Ética Pagã (individualismo aplicado à política: quem detém o poder?). Mas, em sentido mais amplo, numa fórmula de poder: virtù = Força + Vigor + Astúcia + Estabilidade (o status do Estado). Isto Maquiavel (1979) descreveu em todos os seus escritos, de uma forma ou outra; todavia, foi no livro O Príncipe em que sistematizou sua análise científica da política.
Para Maquiavel, não importa muito o dever-ser da política, mesmo o “sonho” com a República (em Comentários à Primeira Década de Tito Lívio) é uma realidade em que se faz uso dos “fins para justificar os meios”. Esta é a grande diferença em relação à filosofia política clássica. Maquiavel criou a Ciência Política não porque usou ou deixou de usar a palavra política (como o fizera Aristóteles, no livro A Política), mas sim porque empregou os modernos métodos científicos na análise da realidade política.
O idealismo de Maquiavel “pode” ser a República (um dos maquiavelismos), mas não há puericultura, uma vez que se for preciso utilizará da mentira, da traição, do assassinato premeditado, do engodo para alcançar o primado do Bem Público. Daí a Razão de Estado (status, no latim antigo: a extrema firmeza que interessa ao príncipe da política para manter o Estado coeso). Desse modo, vemos que a Ciência Política criada por Maquiavel é absurdamente realista, promovendo um choque de realidade na especulação moralista, legalista ou religiosa, do que se espera da política, como o fizera Santo Thomás de Aquino na análise da Prudência[2]. Às vezes, na maioria das vezes, é preciso fazer o Mal para se obter o Bem Público.
Quanto ao Príncipe, quer queiramos ou não, quer Maquiavel tenha ou não tenha dito ou descrito claramente se e como usaria a palavra “política”, o fato relevante – aliás, o único fato relevante – é que a análise que fez da política instituiu a chamada Ciência Política. Foi o primeiro a aplicar o realismo e o empirismo (bem antes de Francis Bacon) na análise da política, do poder e do Estado (status). Com Maquiavel aprendemos que o empirismo aplicado nas ciências humanas provém do esforço da cognição da história.
Comparativamente, devemos saber que os sumérios (hoje Iraque), que criaram a escrita cuneiforme, não “conheciam o conhecimento político” (epistemologia) para descrever a Polis como os gregos; contudo, foram os criadores da Cidade-Estado ou Estados soberanos, como Ur, Nipur e Lagash. Os gregos são herdeiros das instituições da Suméria e não contrário; apesar de os gregos terem criado o conceito de Polis, foram os sumérios que lhe instituíram a realidade.
Ter iniciado a prática da política institucional confere o status de precursores aos sumérios, assim como a análise de Maquiavel sobre a política (tenha ou não usado a “palavra”) lhe atribuiu a primogenitura da Ciência Política. No fundo, análises que se prendem ao uso de certas “palavras”, que insistem em sua presença, são análises ortodoxas (bíblicas, fundamentalistas), e que pouco afetam a investigação científica relevante. Só há validade científica no emprego das “palavras” quando, por meio da etimologia, buscamos o conceito e seu alcance e não a tergiversação.
Será que Maquiavel tratou da virtù ou foi Petrarca? Esse tipo de conhecimento realmente é relevante? Alguém com seriedade acadêmica duvida que Maquiavel construiu as bases do realismo político com a investigação da virtù? Há pouca sabedoria na dúvida de que Maquiavel revestiu a análise da política sob a virtù. O que importa saber é que Maquiavel empregou todos os esforços possíveis a seu tempo para analisar a política em sua essência (virtù) e foi este realismo político que instituiu a Ciência Política.
O príncipe da política
Em todo caso, n’O Príncipe, Maquiavel tratou de uma lógica do poder em análise objetiva, histórica, da razão que explica e sustenta o poder em sua concretude. A mais conhecida frase sobre o poder, superando qualquer pensamento genial de Aristóteles, por exemplo, assegura que “os fins justificam os meios”. Não nos importa saber se ele próprio gostaria ou não que as coisas se dessem desse modo, se seria possível outra forma para definir o alcance do poder. Importa acima de tudo saber que esta regra do realismo político independe de qualquer análise subjetiva trazida por nossa moralidade política.
Aliás, antes de mais nada, é preciso saber que Maquiavel refere-se ao poder do Estado e não se expressa aos poderosos de plantão como se lhes desse uma justificativa para massacrar o povo. Quem lê seu principal livro sabe localizar, perfeitamente, outras tantas afirmações de Maquiavel a fim de que o poder seja dominado com prudência e sabedoria dosadora da força. Basta-nos lembrar o pensamento que guardou de Petrarca: “O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!”. Não seja tolo, não abuse da sorte ou da força bruta, e terá poder por muito tempo. Este homem de virtù, o político virtuoso, é capaz de manter o poder do Estado organizado, coeso, funcional. É a este fenômeno que se chamou de (auto)conservação:
...Nicolau Maquiavel se desliga de todas as premissas antropológicas da tradição filosófica ao introduzir o conceito de homem como um ser egocêntrico, atento somente ao proveito próprio. Nas diversas reflexões que Maquiavel realiza sob o ponto de vista de como uma coletividade política pode manter e ampliar inteligentemente seu poder, o fundamento da ontologia social apresenta a suposição de um estado permanente de concorrência hostil entre os sujeitos: visto que os homens, impelidos pela ambição incessante de obter estratégias sempre renovadas de ação orientada ao êxito[3], sabem mutuamente do egocentrismo de suas constelações de interesses, eles se defrontam ininterruptamente numa atitude de desconfiança e receio (Honneth, 2003, pp. 32-33 – grifos nossos).
A primeira modernidade, séculos XV e XVI, em consonância com a formação das bases do Estado Moderno, centralizado, organizado, pronto para a expansão e conquista, teve um núcleo comum, uma base ideológica ou justificativa muito eficiente, e é isto que se chama de Razão de Estado. Maquiavel foi o precursor desta guinada entre a ética ou moral da política a uma visão substancialmente realista da vida política. Foi este realismo político que o levou a pensar a virtù como aquela capacidade humana (especialmente do Príncipe) de articular e de manter o poder em favor da sobrevivência do grupo — a Razão de Estado[4](Honneth, 2003, pp. 32-33).
Mas há diferenças mais ou menos sutis com outros pensadores do Estado Moderno, pois Hobbes, por exemplo, tivera a vantagem do tempo (centralização de Estados, a exemplo de Portugal, e das descobertas ultramarinas)e de novos conhecimentos científicos a seu favor, a exemplo da física e da concepção do chamado mecanismo: desdobramento do racionalismo em favor de sistemas organizados, mais tarde incorporados na fabricação da grande indústria. Além disso, chamaríamos a atenção para o fato de que o Estado Moderno estava em plena formação, e sem contar o adventoou incremento das bases estruturais do capitalismo[5]:
Mas não são somente as experiências históricas e políticas da constituição de um aparelho estatal moderno e de uma expansão maior da circulação de mercadorias que dão a Hobbes vantagens sobre Maquiavel; em seus trabalhos teóricos, ele já pode se apoiar no modelo metodológico das ciências naturais, que nesse meio tempo conquistou validez universal graças à pesquisa prática bem-sucedida de Galileu e à teoria do conhecimento filosófica de Descartes [...] Para Hobbes a essência humana, que ele pensa à maneira mecanicista como uma espécie de autômato movendo-se por si próprio, destaca-se primeiramente pela capacidade especial de empenhar-se com providência para o seu bem-estar futuro (Honneth, 2003, p. 34).
Neste sentido, a teoria do contratualismo traria ou seria a justificativa (a explicação, o convencimento lógico e moral) necessária à Razão do Estado (desculpa, razão ou demonstração lógica do porquê de o Estado existir), assim como o homem de virtù (Príncipe) é o sujeito que melhor conduz e comanda (condottiere)a máquina de poder público[6]. Em sentido complementar, pelo aferimento do contrato social, o homem abandonaria o estágio primitivo de sua organização social e aí passaria realmente a experimentar o sabor/dissabor político.
Então, em termos de Razão de Estado,Poder significa a capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano. É óbvio que não há poder sem que a potência tenha se desvencilhado do repouso em que se encontrava – sob esse argumento, poder é sempre movimento. A potência do poder também pressupõe vontade.
Hobbes e o contrato com o poder soberano
Para Hobbes (1588-1679), é preciso ter regras claras que operacionalizem ou condicionem a soberania. Desse modo, em Hobbes, o Estado é o Leviatã, um monstro bíblico, uma fortaleza sobre-humana capaz de subjugar a todos os indivíduos, graças a sua força descomunal. Para representar tal força do Estado, Hobbes utilizou-se de uma imagem bíblica – um potente, selvagem e indomável crocodilo (Livro de Jô – 40, 41). Já sabemos que Hobbes é um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e que esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin – este sim, conhecido como o clássico pensador do tema soberania:
Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95).
Bodin, por sua vez, estaria embasado em outros juristas medievais, que também haviam se debruçado sobre este tema: “Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Júris, tinham traçado uma distinção entre as ‘civitates superiorem recognoscentes’ e as ‘civitates superiorem non recognoscentes’ – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas Estados, no sentido moderno do termo” (Bobbio, 1985, p. 95).
Em sentido prático, na definição do poder, Hobbes foi mais supremo do que Bodin, uma vez que, Bodin admitia certos limites ao poder absoluto do soberano. Bobin recomendava: “a observância das leis naturais e divinas e os direitos privados” (Bobbio, 1985, p. 107). Para Hobbes, todavia, ou o poder é supremo ou é impotente, simplesmente porque não há (não pode haver) limites à própria soberania. A soberania é infatigável porque o homem egoísta deve ser forçado a viver em sociedade, e a vida social deve-se totalmente à soberania estatal.
Assim, em uma frase, pode-se dizer que a soberania do Estado é ilimitada e é fundamental porque os homens lutam por seus interesses, incapazes da vida em comum, se não forem obrigados a tal; a soberania é necessária porque os indivíduos não são capazes de se reportar ao coletivo. É de fundamental importância que o Estado seja um ente presente, onipotente para conter tanto a agressividade quanto o egoísmo natural dos homens, uma vez que o Rei é só um (homem) e não seria capaz de mobilizar tantas forças ao mesmo tempo.
Hobbes vê o homem como uma máquina, em que o funcionamento resulta de um encadeamento a partir da incidência de movimentos externos que estimulam outros movimentos internos. Para Hobbes, a realidade é um conjunto de corpos em movimento. Mas Hobbes diverge de Descartes, pois o “eu existo” depende de um “eu penso”; mas Hobbes quer saber de onde vem o pensamento. Para Hobbes, a origem de todo pensamento é a sensação (empirismo) — no nosso caso, desejo e “sensação de poder”. Para explicar o poder como se fosse um “estado tendencial”, Hobbes formulou o conceito de conatus (endeavour).
A vida é um “movimento vital”, animada pelo “sistema sanguíneo” e conatus nada mais é do desejo que se desdobra em paixões e vontades (desejo transformado em ato). Por outro lado, são reações internas do corpo estimuladas por movimentos de corpos externos (primeiro sensações, depois imaginações). Mas conatus também é pensamento: e pensamentos são movimentos internos provocados por outros externos, sob a forma de “sensações, fantasmas, imaginações, recordações”. Há ligações mecânicas entre pensamentos, como se fossem “comboios de pensamentos”, em associações de movimentos e de significações. Daí virá a linguagem e a comunicação: um “discurso mental” que se transforma em “discurso verbal”.
Há uma sequência de ações e de transformações entre “estado de natureza” e Estado Político – uma conexão de sentimentos que se inicia com o desejo íntimo de sobreviver (conatus ou endeavour). Conatus é, então, uma força genética que impulsiona o comportamento, um “começo interno”, um desejo. Este desejo tanto é “canalizado” para o poder quanto para a sobrevivência (conservação) — a conservação que ainda exige afirmação e (conhecimento) crescimento de si mesmo. Então, conatus é esse “desejo pela autoconservação” (compulsão). Pelo conatus, somos todos levados a vencer e isto gera conflitos: miséria para o perdedor; felicidade para o vencedor. Portanto, é o “desejo de sobrevivência” que nos leva à paz, pois se todos lutarem entre sim, sem o contrato social, muitos pereceram sem necessidade.
Do Homo homini lupus (“o homem é o lobo do homem”) e Bellum omnium contra omnes (“a guerra de todos contra todos”) à soberania do Estado, houve alienação e não delegação de poderes. A soberania se impõe pela Razão de Estado e pelos arcana imperii (“segredos guardados nas arcas do império”). Portanto, soberania é onipotência: o poder não pode estar dividido. E onipotência implica num poder absoluto, único, indivisível, irresistível, uma vez que o soberano (onipotente) não tem deveres, só funções: Está acima das leis e acima dos direitos, porquanto faz as leis e outorga direitos. Por sua vez, o poder soberano é inegociável: “não há meia soberania”; indivisível: “não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre mão”; inesgotável: “não há previsão de término”; ilimitada: “não pode ser contingenciada”.
Então, a soberania se resume (não que se limite) ao “poder de vida e de morte”. Mas, o conceito de Estado (racional), assim formulado, apesar desse poder absoluto, guardava ao cidadão o direito de se defender e de resistir, se sua vida estivesse ameaçada (inclusive ou sobretudo pelo Estado). Daí que o soberano é a “razão em ato” e aí se vê em Hobbes um racionalismo também absoluto: o commonwealth pode se transformar numa máquina azeitada, racional, ordenada e governada pelo poder soberano, igualmente racional. Afinal, “o pacto sem a espada não passa de palavras ao léu”. Este commonwealth pode ser traduzido/entendido como “Deus mortal”, ora também chamado República ou Civitas em latim. Porém, a soberania não admite superlativos.
O poder como soma-zero
Nesta forma de se ver o poder, o resultado mais claro é a ocorrência de uma soma-zero, pois o poder de um é necessariamente a negação do poder do outro, sem que os dois possam ganhar seja o que for com a própria relação imposta e garantida pelo poder. Na geometrização do poder, soma-zero implica em dizer que: “Se X tem poder, é preciso que em algum lugar haja um ou vários Y que sejam desprovidos de tal poder. É o que a sociologia norte-americana chama de teoria do ‘poder de soma zero’: o poder é uma soma fixa, tal que o poder de A implica o não poder de B” (Lebrun, 1984, p. 18 – grifos nossos). A maior dificuldade está, exatamente, em superar esta equação da soma-zero do poder. É preciso ver como se daria esta passagem do mando simples (de A para B) para uma relação de comando, com valor agregado ao poder social.
Como capacidade de realização por meio de relações impostas ou constituídas, como mito ou realidade comum, analisar o poder implica em refletir em termos de meios e fins ou recursos, substâncias e o próprio exercício do poder, as formas de atuação, de justificação.
Recursos e exercício do poder
O poder tem uma espécie de fórmula de obtenção de meios e de recursos para sua eficácia. Tanto quanto em relação aos “fins que justificam os meios” (Maquiavel, 1979) tanto no exercício da proporcionalidade de que os “os meios devem se adequar aos fins” (Weber, 1999).
Na formulação mais conhecida, segue que: Poder é colocar A na posição de B ou, então, impedi-lo disso. Para que A tenha poder, B deve ser destituído dessa pretensão, da mesma forma como não pode haver dois soberanos, pois aí nenhum seria de verdade. Poder significa a capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano.
O poder não pode ser dividido, seccionado, devendo ser uno e indivisível (Maquiavel e Hobbes). Como vimos, a isto se chamou de “soma-zero” do poder. Para ultrapassar este limite o poder deve ser um instrumento de comando que agregue valor social. Como Poder Político, mas sob a justificativa da Razão de Estado (a razão política de ser do Estado), o Estado existe para dar salvaguarda à vida social.
O poder é mais do que uma soma-zero
De fato, o poder não é tão simples e não é apenas esta soma-zero, em que para um ganhar o outro tem, obrigatoriamente, de perder. Na metáfora da economia, pode-se dizer que não há valor agregado, sem mais-valor; ainda que esta ideia de mais-valia também seja negativa, em todo caso, há geração de um novo valor, numa espécie de soma-mais-um. Em outra metáfora, a soma-zero do poder corresponde a um ciclo vicioso e o poder que agrega valor é um círculo virtuoso. Neste caso, a Filosofia Política nos auxilia na busca de racionalidades que construam, logicamente, novos constructos e organogramas de soma de valor agregado ao poder.
Filosoficamente, o poder é sinônimo de capacidade e de potência (Mora, 2001).
Entretanto, o poder absorve um sentido ativo (de atividade); portanto, de ação. Mas, o poder (força) ainda pode ser visto por um duplo sentido:
1.1 O poder ativo é a faculdade de produzir resultados. Não só mobilização, mas ação que implique em algum resultado efetivo (a omissão também pode produzir resultados).
2.2 O poder passivo é uma capacidade inerente dos instrumentos de poder, a fim de receber e absorver novas regras de limitação do próprio poder. Todo poder acaba vinculado e todo vínculo estabelece limites.
Da filosofia política à ciência política propriamente dita, há uma mudança de prisma, de perspectiva, em que o poder deixa de ser tratado como gerador de impacto ou de atribulações na ordem da epistemologia política, como problema do conhecimento aplicado à política, para se converter em realismo político, em experiência empírica do poder. Assim, o poder tem uma divisão básica, clássica em ciência política, na forma do:
De modo simples, a corrente clássica associa o Poder Político, em regra,à característica de monopólio do uso da força física (Weber, 1979). Não há poder desarmado, que não se sustente no controle e no uso da violência organizada e isso vale em todos os quadrantes:
Hobbes [...] “Pactos sem a espada são meras palavras” [Mao Tse-Tung] “o poder brota do cano de uma arma”. Certamente, Marx estava ciente do papel da violência na história, mas esse papel era para ele secundário [...] a “ditadura do proletariado” – francamente repressiva nos escritos de Marx – vem após a revolução e destina-se, como a ditadura romana, a durar por um período estritamente limitado [...] “Toda política é uma luta pelo poder, a forma básica do poder é a violência”, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como “o domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima [...] “O Poder”, disse Voltaire, “consiste em fazer com que os outros ajam conforme eu escolho”; ele está presente onde quer que eu tenha a oportunidade de “afirmar minha própria vontade contra a resistência” dos outros, disse Max Weber, lembrando-nos da definição de Clausewitz, da guerra como “um ato de violência a fim de compelir o oponente a fazer o que desejamos” [...] De acordo com John Stuart Mill, “a primeira lição da civilização (é) aquela da obediência” [...] A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos (Arendt, 1994, pp. 14-18-31-32-33-35 – grifos nossos).
O fato é que a realidade do poder instituído e igualmente presente na vida comum do homem médio traz perquirições acima e fora da média. Neste sentido, o texto será ampliado para outras formas de manifestação do poder, além dessas três formas consideradas como clássicas. Desse modo, podemos emprestar de Kelsen alguns elementos acerca do Poder Jurídico.
Poder Jurídico: capacidade (potência, possibilidade) ou competência de regulação da política presente/prevista na norma jurídica:
Quem elucidar o direito como norma elucidará o Estado. A força coercitiva deste nada mais significa que o grau de eficácia da regra de direito, ou seja, da norma jurídica. O Estado, organização do poder, para Kelsen, se esvazia de toda a substantividade. Os elementos materiais que o compõem – território e população – se convertem, respectivamente, na típica e revolucionária linguagem do antigo professor vienense, em âmbito espacial e âmbito pessoal de validade do ordenamento jurídico (Bonavides, 2012, p. 44).
Sem substância, ou seja, povo e território, o Estado resta como abstração jurídica que se materializa apenas na aplicabilidade (ou não)da norma. Assim, se o Estado é norma, o poder está contido na norma (afastando-se do poder tanto o povo, quanto as instituições). Este Poder Jurídico seria equivalente ao poder da política que já foi normatizado. O que aqui se denominou de Poder Jurídico ou de normatização do poder, e de modo ainda mais institucional e formal, recebe no âmbito do direito público a denominação de Poder Extroverso.
Poder Extroverso: é a capacidade do poder político constituir, unilateralmente, obrigações para terceiros, ultrapassando seus próprios limites, ao instituir a regulamentação, fiscalização e fomento de ações públicas, como o policiamento e a cobrança de impostos. Por isso, também poderá ser definido como um poder lastreado pelas instituições públicas, de gerenciamento do Estado e da vida social. É um poder típico das instituições do Estado.
Poder Institucional: no sentido estrito, o Estado produz instituições que devem servir à organização do Poder Político. Porém, no sentido amplo, em que associamos política e direito, a partir das principais instituições públicas, o próprio poder institucional tem de ser visto além de uma mera nomenclatura. Precisa ser tomado como relação social construída entre a epistemologia política – como conhecimento da política e que produz modificações políticas efetivas – e a experiência empírica do poder, em que, do mesmo modo, no âmbito republicano, o conhecimento da política deverá gerar um valor que possa ser agregado.
Esta combinação geraria uma profunda relação entre poder e valor, mas como valor iminentemente público – o que se entende como Poder Público. Ocorre, no entanto, que este novo homem republicano é, na verdade, o velho homem grego reinventado. O poder legítimo dá origem à normatividade, como poder capaz de constituir novas bases jurídicas. A República, por sua vez, decorre de processos revolucionários, como capacidade de constituir o novo poder e um outro direito.
Poder Constituinte: o novo poder é uma espécie de poder político in natura, é um poder popular que se converteu em normatividade. Como poder constituinte originário é um intenso poder político; na forma de poder constituinte derivado atua como poder popular que já se transformou em normatividade, a exemplo da Constituição Política. Assim, mesmo definindo-se o poder como exercício da dominação, o povo tem capacidade política de modificar a vontade expressa no Estado ou instaurar outra ordem.
O poder é a capacidade de interferir no caminho/condução normal, natural, regular dos sentidos originalmente previstos. Neste sentido, o poder já é um mito. Esta ideia de poder atemporal, como mito criado ao seu redor do poder, auxilia a perceber a profundidade de alguns significados e símbolos envolvidos. No exemplo do nazismo isto é claro, pois mesmo ali havia um contrato social sob a roupagem jurídica do Estado de Direito. O que também nos leva a pensar que existem elementos compartilháveis entre todos os mitos, um deles seria o poder atemporal e que se aplica como ameaça às gerações futuras.
Poder Atemporal:a diferença é que o contrato jurídico que encontra suas bases fora da razão, por sua vez, encontrará as “certezas” em fontes não compartilháveis e nem justificáveis, a exemplo dos mitos que alimentam todas as formas de irracionalidades sociais. Na Alemanha, por exemplo, Armínio (Arminius, em latim, ou Hermann, em alemão) foi um líder tribal e grande guerreiro (16 a.C. – 21 d.C.) e depois acabou editado como mito ariano pelo nazismo. Antes da instrumentalização nazista, contudo, Bismarck – o Napoleão da Alemanha – já havia empregado toda a força necessária à unificação do Estado nacional na Alemanha, no século XIX.
Sustentados pelo Mito de Armínio, milhares de pessoas julgaram-se superiores, capazes de formular um mundo que lhes pertencia e que deveria ser imposto aos demais. É óbvio que o nazismo foi uma criação racional, especialmente sua base jurídica (Schmitt, 2006), mas, a não ser para os nazistas, não há justificação racional para seus atores sociais. O direito nazista, antes de ter construída sua base jurídica (ou concomitantemente), encontrou sustentação mitológica, neste caso irracional. Depois, o direito nazista procurou apoio em uma pretensa cientificidade (Müller-Hill, 1993) que, logicamente, não tinha sustentação verificável, isto é, não se coadunava com a humanidade: pela lógica, não pode haver uma experiência lógica para os nazistas e outra para os “inferiores”. Todo mito também é mantido por símbolos fortes de poder.
Poder Simbólico: o poder, de certo modo, também é estabelecido por uma rede completa de relações circulares que unem estruturas e práticas pela mediação do habitus[7], definindo-se limites de validade — um tipo de nexo conceitual entre estruturas e práticas. O Poder Simbólico é definido como poder circular — a citação é muito utilizada, mas vale retomar:
No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos adentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, pp. 7-8).
Neste caso, a maior crítica repousa no fato de que todo poder simbólico é um poder real – ou então não é poder. Logo, é preferível tratar do poder de fato. E um poder de fato, como uma espécie de carne viva do poder, como poder nu (Einstein, 1994b), é o típico poder dos militares. É importante ressaltar a obra de Einstein porque se trata de um físico e não de um cientista político, que se interessa pela política (muitas vezes como “resultado” da própria aplicação tecnológica: este é o caso da acusação de que Einstein teria contribuído para o desenvolvimento das teorias que levaram à construção das Bombas A, mais tarde lançadas no Japão).
Einstein não simpatizava com a ideia de que os militares dirigissem as pesquisas científicas ou de que elas passassem para sua jurisdição, sob o pretexto da segurança nacional. Essa submissão, dizia, criava um pensamento militarista na sociedade civil. E, em decorrência, gerava-se uma espécie de “poder nu” ou “poder bruto” — tal qual a expressão que empresta de Bertrand Russel (aliás, o prefaciador de Escritos da maturidade). Esse poder reduzia os homens a mero “capital humano” ou “material humano”, e por isso Einstein também criticava o “marxismo teórico”, em que julgava haver uma “militarização do social”: a revolução. Não se pode esquecer que Einstein é um pacifista nos moldes de Ghandi, daí condenar a violência política. Portanto, há uma recusa do poder militar.
Poder militar: conhecido como manu militari, é um típico poder de exceção, de cunho fascista, repressor, ditatorial, em que vigoram os meios de exceção e o terror que não consegue escamotear a ilegalidade. Este Estado de não-Direito extemporâneo leva o lema francês presente na Guerra da Argélia: A legalidade pode ser inconveniente. Salvo exceções, o nível ou padrão civilizatório da sociedade moderna não suporta mais o Manu militari, esta mão militar que executa a legalidade no paredão do embrutecimento e estranhamento político.
É passado o tempo da execução de ato ou obrigação pela força pública. Este também seria o caso do regime da Estratocracia (stratus = militar). Via de regra fechado militarmente, este recinto político se converte em ideologia – no caso, propriamente uma Ideologia Autocrática: “Ideologia, propriamente entendida, deve, em primeiro lugar, indicar um certo nível de racionalidade e universalidade; em segundo lugar, deve desempenhar um papel no amoldamento da realidade social” (Castoriadis, 1985, p. 11). O Poder Militar, certamente, receberá uma congruência de outras tantas formas e recursos de Exceção.
Poder de Exceção: vem do latim excipio (tomar, apanhar); indica algo que foi apanhado, extraído de seu lugar de origem e/ou de sua referência, da mesma forma como alienar, quando se retira, perde algo que lhe é próprio (a perda de si, do controle sobre...). Em suma, temos aqui uma clara restrição. No aspecto político, trata-se de uma medida político-administrativa que rompe com a normalidade — surpreendentemente, rompe-se com a normalidade do Estado sem pretensamente abalar esse mesmo Estado. No caso específico do Estado de Exceção (substantivo e adjetivo), ainda se trata de evidente suspensão de direitos. Protege-se o Estado suspendendo as garantias individuais e institucionais que subsidiavam a democracia e a soberania popular.
Neste sentido, é uma medida do poder político que se volta contra a guerra civil ou revolução social — age-se contra a liberdade quando a normalidade institucional e a ordem do Estado estão sob forte ameaça[8]. Sob a forma clássica do Estado de Sítio[9], a previsão coercitiva é temporária, mas como visa sanar a anormalidade pode se perpetuar, desde que o próprio Estado julgue que as causas que lhe motivaram ainda permaneçam — aí o estado de alerta não seria desligado[10]. Esta definição de luta do Estado contra a guerra civil tem origem na Revolução Francesa: état de siége, como Estado de Sítio. De acordo com a Teoria Política Clássica seria como a descrição do Estado lutando contra a sociedade — um contrassenso porque o contrato social não fora programado para se voltar o poder contra a sociedade. Se há crise institucional deve-se reestruturar o Estado, não abater a liberdade e os direitos fundamentais.
Contemporaneamente, trata-se de uma luta do Estado contra setores significativos da sociedade e também implica que a luta de classes não se converteu em luta de ideias (em luta ideológica) ou porque houve um retrocesso. A ideia de guerra também se traduz por comoção, abalo, perturbação, “revolta popular”. Comoção que vem de emoção: émouvoir. Quer dizer que se submete o poder político e a sociedade a um movimento perturbador, capaz de abalar o sentido prévio de coletividade — utilizando-se a auto-conservação. Assim, uma parte da sociedade se revolta (volta-se contra o Estado) e outra, em represália, volta-se contra esta, em nome do todo. Historicamente, vê-se o golpe de Estado contra a revolta popular:
O com da comoção indica uma forte emoção conjunta, o desespero e o apelo dos que se encontram unidos diante do desgosto, da ameaça, do medo, ou da dor [...] Mas o estar-junto não é suspenso apenas em sua versão física, reunião, mas também em sua versão escrita, virtual, comunicativa: suspensão do sigilo de correspondência, da liberdade de imprensa, da liberdade de informação [...] O Estado faz uso, ele se apropria das forças recônditas individualizadas no momento de comoção — aquele lapso fugaz, extraordinário, que rompe com as cadeias discursivas, jurídicas e temporais (Ghetti, 2006, p. 293).
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de