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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Para uma Teoria do Estado Moderno - 5


O método geral do positivismo de Auguste Comte consiste na observação dos fenômenos, subordinando a imaginação, à observação (ouseja: mantém-se a imaginação), mas há outras características igualmente importantes. Na obra Apelo aos conservadores (1855), Comte definiu a palavra "positivo" com sete acepções: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Duas características são hoje reconhecidas por todos: a visão de conjunto, ou o holismo("orgânico"), e o relativo(embora haja uma curiosa e extremamente difundida versão que afirma que o Positivismo nega tanto a visão de conjunto quanto o relativismo). Mas, além disso, o "simpático" implica afirmar que as concepções e ações humanas são modificadas pelos afetos das pessoas (individuais e coletivos); mais do que isso, em diversas obras Augusto Comte indicou como a subjetividadeé um traço característico e fundamental do ser humano, que deve ser respeitado e desenvolvido. O homem passou e passa por três estágios em suas concepções, isto é, na forma de conceber as suas ideias:

  • Teológico: o ser humano explica a realidade apelando para entidades supranaturais (os "deuses"), buscando responder a questões como "de onde viemos" e "para onde vamos"; além disso, busca-se o absoluto;
  • Metafísico: meio-termo entre a teologia e a positividade, no lugar dos deuses há entidades abstratas para explicar a realidade: "o éter", "o povo" etc. Continua-se a procurar responder a questões como "de onde viemos" e "para onde vamos" e procurando o absoluto;
  • Positivo: etapa final e definitiva, não se busca mais o "porquê" das coisas, mas sim o "como", com as leis naturais, ou seja, relações constantes de sucessão ou de coexistência. A imaginação subordina-se à observação e busca-se apenas o relativo.

V Entorno e Bases do Conhecimento Sociológico

Michelet: O saber revolucionário

Jules Michelet(17981874) era um historiador que nasceu sob a tradição da Revolução Francesa e que, assim, trouxe desde tenra idade uma formação diversificada: republicanismo ardorosocom romantismo, transmitidos pela educação paterna. Tanto Michelet quanto o Positivismo (de Comte e de Condorcet) depararam-se com um fato/problema herdado do Iluminismo e da Revolução Francesa — uma nova crise: o presente é questionado (ou convulsionado, na França: 1848 e 1871) e o futuro interrogado (portanto, incerto). Para Michelet, a história também deveria ensinar que a ciência é una: “Ai daquele que tenta isolar um ramo do saber de outro [...] Toda ciência é una: linguagem, literatura e história, física, matemática e filosofia; assuntos que parecem os mais distantes um do outro são na realidade interligados; ou melhor, todos formam um único sistema” (Wilson, 1986, pp. 11-12). Michelet encontra em Vico as bases do organicismo. A diferença entre Vico e Bacon é que, a partir do Iluminismo do século XVIII tornou-se dominante uma ideia que não está em Vico, mas que é marcante em Bacon: o progresso humano e a capacidade de auto-aperfeiçoamento da humanidade. A ideia-base do progresso que retornaria com vigor a partir de Comte.

Michelet pensava e comparava com os tempos de seu pai, artesão que cantava a romanza enquanto compunha. Percebera que a maquinaria retiraria todo o controle da produção dos operários, transferindo o funcionamento do sistema ao próprio ritmo da maquinaria e da grande indústria. Quando voltado à educação, Michelet era um combatente do período sangrento, criticando Robespierre e Saint-Just. A proposta destes é conhecida: “A França ainda não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho, pois apenas uma palavra a dizer: a educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (Saint-Just, 1989, p. 65 – grifos nossos). Ora, se a lei existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes? Para Saint-Just, assim como para todos os partidários do chamado realismo político, a política (ou o poder, seu substrato) é sinônimo da violência: como irmãos siameses. O mais irônico, entretanto, é que Michelet estava muito mais próximo do espírito da revolução do que Saint-Just, como se vê logo na Declaração de Intenções (preâmbulo) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793: as causas da infelicidade do mundo são o esquecimento e o desprezo pelos direitos naturais do homem. Afinal, para evitar a tirania, os cidadãos devem sempre comparar os atos do governo com a finalidade de todas as instituições sociais. Especialmente para que a administração pública estabeleça os deveres correspondentes a ela e o legislador, o objeto de sua missão. A Declaração de 1793 diz em seu artigo 9 – “A lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam”. Ou, como se vê reforçado pelo direito de resistência à tirania, explicitamente, no artigo 11 – [...] “aquele contra quem se quer perpetrá-lo com violência tem direito de repeli-lo pela força”. O artigo 18 dirá que “A lei não reconhece nenhuma domesticidade”. Sentido também reforçado pelo artigo 27 – “Que todo indivíduo que usurpe a soberania seja imediatamente levado à morte pelos homens livres”. Seguido pelo artigo 33 – “A resistência à opressão é consequência dos outros direitos do homem”. Mais uma vez no artigo 34 – “Há opressão contra o corpo social quando se oprime um único de seus membros. Há opressão contra cada membro quando se oprime o corpo social”. Por fim, se era possível ser ainda mais taxativo, no artigo 35 – “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é para este e para cada porção deste o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” (Brandão, 2001, pp. 47-52 – grifos nossos).

Para Michelet, este novo humanista/socialista, era preciso ter fé, vocação[1], paixão, dedicação para sair da menoridade e da subserviência: “A primeira pergunta da educação é esta: ‘Tendes fé? Inspirais fé? [...] Que a criança creia nas coisas que poderá, feita homem, comprovar pela razão” (Michelet, 1988, p. 219 – grifos nossos). Afinal, não se pode reconhecer nenhuma domesticidade ou menoridade provocada. Os melhores exemplos que encontrou vieram dos clássicos gregos e romanos, pois a crença de atenienses e romanos estaria presente e viva por toda a moderna cultura ocidental: “O ateniense acreditava que toda cultura vinha da Acrópole, que sua Palas, saída do cérebro de Zeus, jorrara a luz da arte e da ciência. E isso se verificou: aquela cidade de vinte mil cidadãos inundou o mundo com sua luz; morta ela ainda o ilumina” (Michelet, 1988, p. 220 – grifos nossos). A fé é digna da razão. Na verdade, não há razão digna sem fé: “Mas a fé digna do homem é uma crença amorosa naquilo que a razão demonstra. Seu objeto não é esta ou aquela maravilha acidental, mas o milagre permanente da natureza e da história” (Michelet, 1988, p. 221).  Para ter fé, é preciso retomar o passado, as origens, os clássicos. Fé não é fanatismo, porque é um dom de amor e assim não é estéril. Só a Revolução investiu de coração na educação popular: “O único governo que se empenhou de coração na educação do povo foi o da Revolução. A Assembleia constituinte e a legislativa estabeleceram os princípios sob uma luz admirável, com um sentido verdadeiramente humano” (Michelet, 1988, p. 212).

O investimento na educação deu-se nos três níveis: fundamental, médio e superior. Mesmo os revolucionários de 1793 (já Jacobinos[2]e sanguinários) souberam verter em política pública o valor da educação, para um povo, para um Estado, para uma história que se inicia. Na Declaração de 1793, aassistência pública obrigatória aos cidadãos infelizes (artigo 21 – grifos nossos) surge associada ao fortalecimento maciço e massivo da EDUCAÇÃO PÚBLICA (artigo 22): “A instrução é necessária a todos. A sociedade deve favorecer ao máximo os progressos da razão pública e tornar a instrução acessível a todos os cidadãos” (Brandão, 2001, p. 50 – grifos nossos). É óbvio que, tanto lá como agora, sem educação não há razão pública, porque não há consciência política – só se conhecendo a menoridade, o assistencialismo, o patrimonialismo. O objetivo da educação, então, seria transmitir e fortalecer a fé na Nação ou na formação do Estado-Nação que nasceria com a Razão de Estado (Michelet, 1988, p. 222). Mas uma Razão de Estado baseada na soberania popular[3](Brandão, 2001, p. 51). Portanto, a educação tem que ser direta e simples: objetiva e contextualizada. Mas, isto não significava perder a sensibilidade, tal qual perceber que os mais experientes deveriam ensinar nas primeiras séries. O mais curioso, entretanto, é que desde a Revolução Francesa estava inscrita a necessidade do aprender a ensinar:

Os homens da mais alta hierarquia do Estado e da ciência aceitaram as mais humildes funções do ensino. Lagrange e Laplace ensinaram matemática. Mil e quinhentos alunos, homens feitos, muitos já ilustres, concordaram em retomar os bancos escolares, aprendendo na Escola Normal a ensinar (Michelet, 1988, p. 214 – grifos nossos).

 

Este aprender a ensinar é tão móvel e movente do espírito de cada um que se predisponha que, também no exemplo da Revolução Francesa, aprendia-se ensinando e, com isso, produzia-se conhecimento por pura inspiração criadora da mente aberta:

Eles estudaram, como se combatia, e em três meses fizeram o curso de três anos [...] Imaginai o espetáculo de um Lagrange que, em meio à lição, estacava de súbito, sonhava... Esperava-se em silêncio. Por fim despertava e lhes entregava toda ardente, a jovem invenção, recém-saída de seu espírito. Faltava tudo, menos gênio. Os alunos [...] Recebiam pão junto com o pão do espírito. Um dos mestres (Clouet[4]) só aceitou como salário um pedaço de terra na planície de Sablons, onde viveu dos legumes que cultivava (Michelet, 1988, p. 215 – grifos nossos).

 

Esta Escola Normal (formação de professores) sofreu um revés, quase como se houvesse voltado ao ensino destinado à matematização da realidade ou à anterior metafísica. Porém, também os métodos da burguesia não seriam diferentes ou melhores (Michelet, 1988, p. 217). Neste momento específico, Michelet referia-se a Robespierre e a Saint-Just como abstratores de homens, pois simplesmente lhes abstraíam as vidas, nas guilhotinas de sua razão revolucionária muito peculiar. Com o olhar para o futuro, a educação transformadora (da Revolução de 1789) deveria se apoderar do passado: como se fosse à voz rouca das ruas que expressa a virtú do povo:

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A Comuna de Paris DECRETA: O alistamento obrigatório é abolido; a guarda nacional é a única força militar permitida em Paris; todos os cidadãos válidos fazem parte da guarda nacional. Portanto, para Michelet, o direito à educação é um direito à identidade. Michelet veria a Comuna de Paris.

Michelet: Fiel às leis, não aos reis.

“Como? O povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos as portas, passemos o ferrolho [...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição vejo-o bem, está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia da questão da instrução pública[5][...]Parece que os remédios específicos não faltaram. São cerca de cinqüenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela comparação variada dos povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As mulheres do povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência [...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos).

 

Balzac – uma sociologia realista

Veremos a seguir como o realismo crítico de Balzac (1799-1850), à sociedade moderna, também tem uma dívida para com Goethe. Talvez o título, Ilusões Perdidas, não pudesse prometer algo mais, mas o final é melodramático, melancólico, como uma triste vingança, até meio moralista se assim quisermos. Mas o romance é uma aula magna (exatamente realista) sobre vaidade, cobiça, luxúria, corrupção, avidez, ambição – além do tema que o corta, a relação entre literatura e jornalismo (no bom e no mal sentido: na antevisão do maniqueísmo realista). Esse exato realismo fizera Balzac perceber e ver muito além de sua época. Como gênio e como clássico, anteveria o século XX e o seu poder: “A influência e o poder dos jornais estão no início — disse Finot. — O jornalismo ainda está na infância, vai crescer. Daqui a dez anos, tudo dependerá da publicidade[6]” (Balzac, 2002, p. 137). O romance Ilusões Perdidas relata as mesmas dificuldades enfrentadas pelo próprio Balzac, quando tentara publicar suas primeiras obras e se afirmar como escritor. Ao produzir sua Comédia Humana, Balzac percorrera, conhecendo, todo o interior da França, à procura de histórias e de personagens: “O rapaz leu o primeiro de uma série de deliciosos artigos que fizeram a fortuna daquele jornal. Em duas colunas, pintou em detalhes uma cena da vida parisiense. ‘Os pedestres de Paris’ foi escrito de forma nova e original; a ideia central era resultado do jogo de palavras” (Balzac, 2002, p. 169). Assim, o que Balzac mais faz neste romance é usar do jogo de palavras e das figuras de linguagem. Esse exato realismo é que o colocou no topo dos autores modernos, apesar de monarquista, porque viu muito bem a ascensão da burguesia (e é isto o que o atrairia em Marx): “Como aponta muito bem Otto Maria Carpeaux, foi Balzac — um conservador — quem criou a literatura moderna. Observador perspicaz, ele compôs um painel autêntico da sociedade, revelando as conseqüências da Revolução Francesa, em contraste com seus contemporâneos, que representavam o romantismo social, como Victor Hugo” (Salerno, 2002, p. 215). Balzac é um leitor e admirador de Victor Hugo, pois este quase que se transforma em personagem — habita a narrativa de Balzac e lhe empresta conteúdo ao abordar e construir a personagem do jovem escritor Lucien, um provinciano que quer ser gênio na metrópole (e rico): “Era uma revolução nos costumes um homem da cidade baixa, filho de farmacêutico, ser recebido em casa da senhora de Bargeton. Quem eram os autores dessa revolução? Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand, Benjamin Constant, os jovens e velhos escritores, tanto os liberais como os realistas” (Balzac, 2002, pp. 33-34).

Marx é um crítico severo de Victor Hugo, mas para Balzac o romântico francês é um liberal que desconfia das desigualdades de classe (quer a ascensão negada à burguesia) e reluta em aceitar as injustiças (como bem relatara em Os Miseráveis). Balzac conhecia os clássicos, como Shakespeare: “Você vai ser jornalista!”, como a feiticeira gritou para Macbeth: ‘Você vai ser rei!”(Balzac, 2002, p. 148). Apesar de ser monarquista, Balzac trabalha intensamente, quase chegando à fadiga, e foi este ritmo que lhe permitiu ter uma obra de uma centena de livros, fora os artigos e as resenhas. Mas isto não o impediu de colocar na boca deste jovem ambicioso (como todos de sua época) uma ironia sobre o trabalho pesado: “Ao boi, a vida paciente da agricultura; ao pássaro, a vida preguiçosa’, dizia David a si mesmo. ‘Serei o boi, Lucien será a águia” (Balzac, 2002, p. 29). Para o ganancioso, o trabalho é desprezado: como se vê nesta breve passagem da visão aristocrática da vida e do trabalho. Outro dado interessante é que o provincianismo parece fadado ao fracasso e por isso é combatido do começo ao fim do romance (aliás, como vingança à ganância desmedida de Lucien, Balzac o condena a voltar a pé para casa, no interior, falido e desmoralizado — numa distância de 30 km e fazendo um única refeição). De outro modo, a fim de combater o provincianismo será afirmando o seu contrário: o centrismo. Na obra, o centrismo aparece associado à educação e ao sucesso, como conquista da modernidade e da urbanidade (educação superior):

Longe do centro onde brilham os grandes espíritos, onde a atmosfera é impregnada de ideias e onde tudo se renova, a instrução envelhece e o gosto se corrompe como águas paradas. Por falta de acontecimentos e atividade intelectual, as coisas pequenas tornam-se grandes. Essa é a razão pela qual a pobreza de espírito e a fofoca dominam as cidades do interior. Em pouco tempo, a estreiteza de ideias e a mesquinharia prevalecem na pessoa mais distinta (Balzac, 2002, p. 36).

 

Também se pode ler esta passagem como a burguesia no centro do mundo, contra a pequenez habitual dos espíritos e das ideias não-burguesas. Depois, lembra-nos que o provincianismo não reconhece limites entre a vida privada e a vida pública: “Os provincianos são normalmente curiosos e querem participar de tudo. Os criados de Naïs iam e vinham pela casa sem ser chamados e sem se anunciar [...] Tanto dentro como fora de casa, a vida da senhora de Bargeton era pública. É assim a vida no interior” (Balzac, 2002, pp. 70-71). Na verdade, Ilusões Perdidas retrata a ânsia pelo sucesso fácil, a ascensão social que caracterizaria a burguesia e a redução dos valores humanos a valores monetários: tudo estava à venda: “Ilusões perdidas é o romance mais longo e completo de Balzac; nele se encontram todos os microcosmos que o escritor aborda ao longo de sua obra: amor, ambição, sonho, glória, decadência, vingança, ciúme, inocência, traição, dinheiro, suborno, corrupção, e as relações sociais entre burguesia e nobreza e políticas entre realismo e monarquia” (Salerno, 2002, p. 09). A modernidade de Balzac foi uma luta entre o romantismo e o realismo, entre a burguesia e o trabalho, entre o sonho e a trapaça, entre a poesia e o poder, entre o romance e o relato diário da vida, entre a arte e a política. O pensamento moderno e arguto de Balzac ainda se revela em frases curtas e finas como adagas: “... as pessoas que espalham ódio precisam de todos...” (p. 149); “É preciso ser mau com os homens; faz parte da política” (p. 164); “gente de espírito tacanho pensa que só há lugar para uma única pessoa vencer” (p. 167). O mal, no entanto, viria com o maniqueísmo próprio da modernidade: “Tudo é bilateral no domínio do pensamento” (Balzac, 2002, p. 175). Além, é claro, do mal-maior, que é a corrupção: “Alguns políticos conversavam na livraria. O jornal semanal que Dauriat acabava de comprar tinha o direito de tratar de política. Naquela época, a propriedade de um jornal era um privilégio concedido, tão ambicionado como a de um teatro” (Balzac, 2002, p. 119). Para que não fosse desse modo, a política teria que ser arte (ou techné, no complemento grego), mas ocorre que a política tem preço. Isto é, se a política fosse arte, teria valor e não preço: isto será realismo político ou corrupção?

Em complemento às leituras de Balzac, outros grandes ocupariam destaque na narração deste romance, como Goethe; além de Rousseau, Montesquieu (e até Maquiavel). Mas com Goethe há uma identificação maior, como, por exemplo, quando Lucien ouve (mas não segue) os conselhos de outro escritor pobre, mas honrado: “Ao ler Tasso, uma das melhores obras de Goethe, verá que o poeta gosta de festas, de brilho e de glória. O mundo e seus prazeres o chamam, Lucien? Resista, fique aqui conosco. Transporte para o ideal tudo o que a vaidade requer” (Balzac, 2202, p. 106). E ainda mais previdente Balzac recomenda que Lucien evitasse ao máximo o pacto diabólico de Mefistófeles – há outros meios de adentrar a modernidade: “A amizade perdoa o erro, o movimento irrefletido da paixão, mas deve ser implacável para quem vai comercializar a alma, o espírito e o pensamento” (Balzac, 2002, p. 108). E qual o perigo de ceder ao pacto de Mefistófeles? Aí está o perigo de sucumbir ao raciocínio da velha raposa de negócios, sempre pronta a devorar uma boa oportunidade de negócios, sem que a consciência sofra um centímetro ou um centésimo por isso:

Havia decidido oferecer-lhe mil francos pelos direitos autorais e contratar Lucien para escrever vários livros. Ao chegar ao miserável hotel, à velha raposa mudou de ideia.

“Um homem que vive aqui é modesto, gosta do trabalho e do estudo. Vou dar-lhe oitocentos francos”, pensou.

Quando a porteira lhe disse que ele vivia no quarto andar, o impressor mudou de ideia novamente.

“Este rapaz é muito bonito; se ganhar muito dinheiro, vai gastar tudo e parar de trabalhar. Para nosso interesse comum, vou dar-lhe seiscentos francos, mas em prata, não em dinheiro.” [...] “Que ele conserve esses modos simples”, pensou.

— Prazer em vê-lo - disse a Lucien. — Era assim que vivia Jean-Jacques Rousseau, com quem o senhor tem mais coisas em comum [...] — Pago quatrocentos francos[7]– disse Doguereau, em tom meloso (Balzac, 202, pp. 96-97).

 

O mal ou reverso da burguesia, do capitalismo ou da grande indústria está na usura, neste raciocínio obtuso da avareza. Tal qual a soma-zero de Maquiavel: para um vencer, o outro tem que perder. É tudo o que seria combatido pela ética protestante, mais favorável ao próprio capital (como dissera Weber). O livreiro também representa a figura do pequeno-burguês que quer subir socialmente, mas que no fim acaba derrotado por Lucien, que se recusa a fechar o negócio. Outra questão profundamente moderna é a necessidade da modernização tecnológica (ou revolução dos meios de produção, como em Marx) e que aparece desde o início, com a necessidade de revolucionar a produção e assim baratear a publicação dos livros[8]:

A queda do Império generalizou o uso do tecido de algodão, devido ao baixo preço em comparação com o linho. O papel é feito de trapos de cânhamo e linho, que são ingredientes caros e que retardam o desenvolvimento da imprensa. Ora, não se pode aumentar a produção de trapos, que são feitos com roupa usada. Se a procura do papel é maior que a quantidade de trapos para fazê-lo, é preciso substituir os trapos por outro material. O algodão está entrando na pasta de papel; Angoulême[9]é um dos últimos redutos em que se fabrica papel com trapos de linho (Balzac, 2002, p. 65).

 

No romance, David, amigo de infância de Lucien, tentaria uma descoberta que se assemelhasse a dos chineses, que já fabricavam o papel à base de bambu. Isto contrastava, é evidente, com a posição hierárquica superior que a nobreza queria resguardar para si: “Vocês não percebem — comentou o embaixador — que ao esclarecerem as classes baixas estão semeando a revolta, da qual os jornalistas serão as primeiras vítimas?” (Balzac, 2002, p. 138). Era a reverberação da aposta arcaica na dominação baseada na ignorância. Em oposição à modernidade, ainda havia outro dado preocupante: a estupidez e a futilidade são fortes aliadas da desigualdade social e do preconceito de classes: “— Se a senhora quer que o senhor de Bargeton arrume um cargo importante, não pode ter uma aparência miserável. Aqui, só os ricos vencem” (Balzac, 2002, p. 84). A nobre senhora de Bargeton (casada) foi o primeiro amor (platônico) de Lucien. Por causa desse afair, ambos acabaram fugindo para Paris, mas se separaram por causa de fofocas trazidas do interior. Lucien, alvo de calúnias de um nobre que também cobiçava a senhora Bargeton, foi viver no Quartier Latin, um bairro muito pobre e que só via trabalhadores e jovens que cobiçavam postos de burguesia. Mas, quando de sua estada aí, Lucien fez uma grande descoberta para o mundo moderno:

Depois de sua triste experiência com o mundo elegante, Lucien mergulhou no trabalho. Passava as manhãs na biblioteca, pesquisando história. Quando a biblioteca fechava ia para seu quarto úmido e frio corrigir e reescrever sua obra, O arqueiro de Carlos IX. Chegava ao restaurante às quatro e meia, pois percebera a vantagem de chegar cedo para jantar: os pratos eram mais variados. Depois de comer, ia ao Gabinete Literário de Blosse ler obras contemporâneas [...] e voltava ao miserável hotel à meia-noite sem haver gasto luz nem lenha para o aquecimento (Balzac, 2002, p. 92).

 

Descobrira, em síntese, que a modernidade se fez pelo realismo e que este forjou o racionalismo. Depois, ambos nos deram um raciocínio utilitarista (encontrar meios materiais para viver feliz) e que, todos somados, nos legaram o racionamento. Lucien, no entanto, terminou sua vida de acordo com a angústia ou mal-estar da modernidade; Lucien concluiu sua vida como começou: sem dinheiro (ou o vil metal burguês); sem glória (aristocrática); sem destino (sem eira, nem beira, na relação patrimonialista); sem sensatez (ou bom senso popular). Sua vida e seu gênio se esvaíram para que nos revelasse os prazeres e os perigos da modernidade. Porém, desse momento fundador aos dias atuais, ainda restaram muitas questões em aberto ou, ao menos, sujeitas ao debate: Por que a luta pelo reconhecimento da razão, contra os argumentos de autoridade, até hoje, é uma luta para desobstruir os preconceitos, o obscurantismo e a ignorância? A razão é um remédio perfeito ou também nos trouxe outros tipos de problemas?



[1]Para Max Weber, na Ciência como Vocação, a fé transmuta-se em vocação.

[2]“O Despotismo da Liberdade”.

[3]A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (a original) definia soberania de modo bastante distinto (artigo 3): “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer uma autoridade que não emane expressamente dela” (Brandão, 2001, p. 44). A diferença básica está em que o conceito de Nação corresponde a um todo orgânico, como se lhe faltassem irregularidades, oposições (direito de sedição), contradições. Já a ideia de povo pode (ou não) incluir (excluir) a realidade da luta de classes que, a seu tempo, Michelet bem visualizou.

[4]NE: Louis Clouet (1751-1801) descobriu o princípio do aço fundido e impulsionou a fábrica de armas.

[5]Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado.

[6]O romance Ilusões perdidas revela os bastidores do jornalismo francês, que nascia àquela época.

[7]Repare o leitor que, quando chega ao hotel, pensa em mil francos e no final da conversa está em quatrocentos.

[8]David, o melhor amigo de infância de Lucien, era filho de gráfico e impressor. Lucien viria a trabalhar algum tempo nesta gráfica.

[9]Cidade natal de Lucien e de David.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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