Domingo, 5 de agosto de 2018 - 10h15
Peças e parças deveriam ser sujeitos de direitos, mas se resumem ao “direito de não-ser”. Todavia, vejamos com calma o sentido da afirmação.
Cada tempo tem suas gírias, expressões para simplificar algum significado atribuído às pessoas, às coisas, relações ou acontecimentos. No “meu tempo” era cara, antes disso era bicho. Desse bicho, que se vê em músicas antigas, para depreciar o novo, os antigos de idade ou de pensamentos passaram ao bicho-grilo: um inferno se abatia sobre você se algum almofadinha (hoje são coxinhas) te apelidasse disso.
O bicho-grilo estava condenado ao preconceito, ao racismo elitista, à falência na carreira ou ao desemprego. Entre ambos estão os “manos e as minas”, os Brothers ou irmãos – que podem ser de fé ou de armação.
Hoje há dois tipos que se aproximam e, curiosamente, tem origem próxima ao futebol: peças e parças. Peças são os jogadores e parças são seus amigos inseparáveis. Antigamente, chamava-se de reforço ou de substituto à altura, mas aí ficou muito comprido pra se falar – em tempos de emojis – e os jogadores viraram só peças. Já os parças são escudeiros de balada, bajulação e, inexoravelmente, bola pra frente.
Os dois – peças e parças –, no entanto, chamam atenção para um sentido específico da cultura nacional e da contemporaneidade. Primeiro as peças: lembro que meu pai trocava peças do carro ocasionalmente. Depois, na universidade, aprendi que há uma sociologia voltada ao funcionamento das coisas, como se a sociedade fosse um “mecanismo” formado de roldanas e de porcas e parafusos.
As peças de hoje, ou seja, as pessoas, eram (ou são) denominadas por esses experts de “coisas”. Peças ou coisas, portanto. No dicionário comum, por sua vez, vê-se que “coisa” corresponde à falta absoluta de vocabulário. Então, as pessoas que são coisas, são as pessoas que sequer têm melhor denominação – tal o descaso com que são tratadas. Peças de reposição, na melhor das hipóteses.
No mundo globalizado, em que ter é poder – antigamente, “saber era poder” –, as pessoas não são sujeitos, são peças. No jogo de xadrez, já batido pelos parças do futebol, as tais peças de reposição são os peões sacrificados, os mais baixos na hierarquia que se eleva à rainha e ao rei. Há filmes antigos em que fulano é chamado de um mero peão do jogo do poder. Pois bem, hoje, as pessoas são peças do capital.
Já os parças – e aqui confesso meu inteiro preconceito contra essa tipologia – são os amigos do rei; se pudesse emprestar uma expressão do passado. Quem é o rei? É o jogador milionário que custou bilhões. Este é o símbolo de sucesso nacional: não importa se você vive cercado de puxa-saco, parça, aspone: assessor de p...nenhuma, como se dizia. Não é a honestidade ou a amizade dos parças que importam, mas sim a fidelidade canina. Na traição ele será seu álibi perfeito.
Como não é um amigo de fato, mas um álibi, engodo ou fake news, que anda nas sombras de quem realmente manda, o parça também lembra um tipo clássico da ciência política mais antiga: o bajulador, o falso amigo (traíra) que espera a hora certa pra dar o bote da traição. Também no passado viviam as “iminências pardas” – que não eram parças – e que, mal traduzidos, viraram papagaio de pirata. (Mas, este é assunto para outro dia).
O parça é passivo, vai no embalo do boleiro, joga suas cartas como pode – via de regra uma peça pobre, que nem tem a comanda da balada, que nunca dá uma cartada –, porém, sempre está à espera de algum reconhecimento especial. Como não é ativo, o parça não tem altivez no jogo de cartas; também é curioso pensar nos parças como se fossem blefes do ativo jogador de poker.
Na política em ano eleitoral não é diferente. Os candidatos a vice, que antes eram aspones ou figura de decoração, hoje são peças ou parças. Aliás, todos os candidatos majoritários (futuros governadores ou presidente) gostariam que fossem parças; entretanto, depois de 2016, desconfia-se que sejam apenas peças, como peças que podem substituir os titulares.
Por isso, as eleições de 2018 começaram com a expectativa do próximo impeachment, a partir do momento em que os parças de agora se convertam, amanhã, no milagre do poder.
Afinal, aprendemos, bem sabatinados pelo Golpe de 2016, que todo parça deseja ser uma peça vital. E, como não tem cacife ou qualidade técnica (ou moral), é o parça quem fica à espreita, traiçoeiro, esperando quem dê o melhor lance pela sua (in)significação.
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar/DEd
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a
O que o terrorista faz, primordialmente?Provoca terror - que se manifesta nos sentimentos primordiais, os mais antigos e soterrados da humanidade q
Os direitos fundamentais têm esse título porque são a base de outros direitos e das garantias necessárias (também fundamentais) à sua ocorrência, fr
Ensaio ideológico da burocracia
Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de