Segunda-feira, 8 de julho de 2013 - 11h41
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)[1]
Poder não é algo de fácil definição, por ser multifacetado, pluridimensional, envolver diversos agentes e interesses muito diferentes e por vezes antagônicos, contraditórios. Entretanto, pode-se dizer que o poder sempre se expressa como relação.
Por si, a expressão Poder Social já indica que o poder pertence ao grupo social, que é compartilhado pela sociedade; provém de uma forma tradicional de poder nas sociedades primitivas, tal como analisado pelo antropólogo Pierre Clastres (1990).
Em sentido semelhante, ao retomar a Polis, a vita ativa e depois o ideal republicano clássico, Hanna Arendt – uma filósofa e escritora judia e alemã, perseguida pelos nazistas e exilada nos EUA – nos diz que a política e o poder precisam se alimentar de urbanidade, civilidade, convivialidade, sociabilidade: “Pois a polis era para os gregos, como a res publica para os romanos, em primeiro lugar a garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à imortalidade, dos mortais” (Arendt, 1991, p. 66).
O poder, nesta linha de argumentação, sempre é social, organizador, orgânico, é um amálgama, uma argamassa, um liame que produz solidariedade. Aliás, é a própria teia que enreda a vida social e com isso evita que as discórdias degenerem ou degradem os níveis mínimos de sociabilidade e de solidariedade; é uma reserva contra a absoluta violência de “todos contra todos” (na mais célebre fórmula de Hobbes).
Hannah Arendt, em total desacordo com o senso comum, denuncia a violência que se estampa nas ações desmotivadas ou descontroladas pelo poder político-institucional (leia-se Estado), isto é, quando o que outrora fora um poder social forte, criador e organizador de elos sociais, acabou por se revelar instável, corrupto ou fraco.
Em sentido contrário, a violência de “um contra todos” é em si um claro sinal de crise individual (em atitude criminosa, por exemplo, age-se contra o “todo social”), bem como indica a crise institucional (corrupção generalizada no interior do Estado) ou social, como ocorre na guerra civil ou na insurreição que desafia abertamente (de modo articulado ou não) o Estado — na medida em que o poder político-institucional já se mostre inoperante.
Desse modo, entendamos aqui o Estado como a agência reguladora do próprio “poder institucional” e a sociedade como a mola propulsora do poder social. Portanto, o poder, desde a origem, é ou deveria ser social, mas pode se corromper. A violência, ao contrário do poder social[2], via de regra é ilegítima, funcionando como uma ação descaracterizada, desconectada do social; está próxima da imposição de “uma vontade a outrem” (como no pensamento do sociólogo Max Weber). A análise é tornada clássica pela Filosofia Política de Hannah Arendt:
Poder, vigor, força, autoridade, violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimos porque têm a mesma função [...] O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo permanece unido. Quando dizemos que alguém está no poder, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome [...] (potestas in populo, sem o povo ou grupo não há poder) [strenght] O vigor inequivocamente designa algo no singular, uma entidade individual [...] é da natureza de um grupo e de seu poder voltar-se contra a independência, a propriedade do vigor individual [...] A força (force) [...] às “forças da natureza” ou à “força das circunstâncias” [...] (la force des choses) deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais. A autoridade [...] pode ser investida em pessoas [...] Senado romano (auctoritas in Senatus) [...] Sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aquele a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias [...] Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a risada [violência] Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo (Arendt, 1994, pp.36-7 – grifos nossos).
O Poder Social é definido como a capacidade de organizar relações sociais, a fim de agir em relativa harmonia. Ainda se diz que se constitui na capacidade de acessar recursos humanos e/ou materiais para obter e controlar os resultados almejados. Enfim, pode-se dizer que o Poder é social porque pertence a um grupo. Contudo, deve-se indagar se o Poder Social sempre será uma atividade racional. De modo simples, o Poder Social reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social. Assim, poder social é uma capacidade humana:
Em suma, para Arendt: “A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos” (Arendt, 1994, pp. 35-6 – grifos nossos). Lembrando-se que este Um tanto pode ser um príncipe, um déspota quanto o Estado na forma totalitária. No sentido global do poder, quando há um revés nesta lógica do Eu-controlo-o-poder, ultrapassando-se a luta por sobrevivência, mas com reconhecimento da intersubjetividade (Honneth, 2003) ou simples práxis social, então, é porque já não estão em vigor a impotência, a violência e a corrupção (o exato contrário, o sentido oposto da política, para Arendt).
Destaca-se que o “acordo genuíno” que constituiu o poder social não poderia se converter em coerção pelo sistema, desconectando-se das resolutivas sociais, uma vez que esta mutação simplesmente converteria poder em violência. Afinal, o poder do consenso/legítimo repousa na persuasão: “imposição singularmente não-impositiva[3]”. Porque é um “poder proposto”, interposto, não-imposto. Ainda é preciso lembrar que Habermas considera que o significado de poder em Arendt origina-se da vita activa, na sua práxis social — em outros termos, na “capacidade de se alcançar um acordo visando a ação conjunta que transforma”.
É necessário retomar algumas diferenciações, neste caso entre Arendt e Weber, pois o “poder como consenso” não se avalia pelo êxito dos atores, mas sim pela “aspiração comum à validade razoável”. Para Habermas, o poder em Arendt é fonte da legitimidade validada pela práxis social e figura, portanto, como fruto de um consenso almejado/alcançado na própria comunicação ou comunidade política (Habermas, 1980, 103). Ou, então, como quer definir Hannah Arendt, de modo preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[4], isegoria; mas, sem a política, não passaria de um animal social, como aliás a natureza tem vários tipos e espécies. Sem política não há humanidade, apenas indivíduos socialmente determinados; e sendo que a política é exatamente a capacidade humana de modificar as determinações sociais, econômicas, culturais, jurídicas.
Ainda é preciso reforçar que sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, mas apenas sob a égide da vita activa que requer movimento e ação para a transformação individual e social (Arendt, 1991). A dignidade de se envolver com o poder provém dessa voz ativa: a altivez política.
Desse modo, para Arendt, o poder seria efeito da ação comunicativa, mas também se revelaria em três níveis ou modalidades: a) regulamento que sobrevém à práxis; b) resistência à opressão; c) atos revolucionários inaugurais (Habermas, 1980, p. 103). O poder é práxis, mas a práxis de Arendt vem da polis (Habermas, 1980, 104). Mesmo que limitado, esse conceito de práxis procura exasperadamente pelo reconhecimento de uma “intersubjetividade multifacetada, mas não-mutilada”.
O efeito direto dessa práxis no poder seria preservar a luta pelo reconhecimento da própria intersubjetividade no interior do mundo da vida. Mais especialmente, na modernidade, práxis e vita activa se aproximam do que chamamos de espaço público ou “esfera pública” — quando se encontram, na modernidade e diferentemente da polis grega, o sistema político-institucional com o mundo da vida: aí estaria, sobretudo, a ideia da representação política, parlamentar ou legislativa. A vontade geral se mantém na transferência da capacidade de ação, da práxis, mas somente se não houver mitigação da soberania popular, como mandato vinculado de mando ao poder social, como comando: dominação compartilhada pelo grupo ou pelas regras definidas globalmente, com anuência coletiva.
De todo modo, se o direito obedece à política (enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social, em que as regras apenas mantêm viciosamente o status quo. Aliás, este “mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo, isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social. Portanto, uma das maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito (inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder extroverso/funcional do Estado (Sundfeld, 2004).
Quanto mais concreto for o caráter socialmente impositivo[5]do direito, tanto maior a legitimidade e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais comedidos pelos meios. Justamente porque as vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito socialmente positivado — este que é aberto à interpretação, mas já partindo-se de um sentido firmado e não “figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria da arte, da política, da educação) é, primeiro, quanto à legitimidade e, só depois, quanto à validação.
Referências Bibliográficas
ARENDT, H.A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991.
_____ Sobre a violência. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1994.
_____ O que é política. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martinez Fontes, 2001.
HABERMAS, Jürgen. O conceito de poder em Hannah Arendt. IN: Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Rio de Janeiro : Ática, 1980.
KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa : Edições 70, 1990.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. A rede dos cidadãos: a política na Internet. Tese de doutorado. São Paulo : Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), 2001.
_____ Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da Dominação Racional à Legitimidade (anti)Democrática. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNESP/Marília, 2010.
MARX, Karl. As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo : Global, 1986b.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4ª ed, 5ª tiragem. Malheiros Editores : São Paulo, 2004.
WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.
______ Sociologia. 4ª ed. São Paulo : Ática, 1989.
______ Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol I e II. Brasília-DF : Editora Universidade de Brasília : São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 1999.
[1]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia.
[2]A violência prospera onde o poder social perdeu o liame, a capacidade agregadora, daí a violência como forma de se instituir nova forma de organização e de obtenção de outro poder regulador.
[3]Aqui o cuidado exigido seria o de não confundir “persuasão” com massificação e é isto o que Honneth (2003) chama claramente de “reconhecimento intersubjetivo”, sem imposição heterônoma e sem manipulação coletiva das vontades individuais. Persuasão como “validação legítima”.
[4]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.
[5]Como consenso obtido pelo reconhecimento e validado pela livre comunicação dos sujeitos envolvidos e requerentes, e não como heteronomia política, jurídica ou moral. Mas aí o problema seria quanto aos costumes, tanto comus quanto ethos, porque são entes culturais relativamente fechados em torno de regras sociais anteriormente definidas e não predispostas a modificações substanciais subrepticiamente.
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