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Vinício Carrilho

Povo Pobre, mas honesto


 Diz-se no senso comum que os pobres são mais honestos. É o que agora também se vê em pesquisa realizada no Brasil:

Para 82% dos entrevistados "é fácil desobedecer às leis no Brasil"; 79% responderam que "sempre que possível o brasileiro opta pelo 'jeitinho' ao invés de obedecer a lei"; e 54% avaliaram que "existem poucas razões para uma pessoa como eu obedecer a lei."

O QUE FEZ DE ERRADO NOS ÚLTIMOS 12 MESES?

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Segundo a pesquisa, 72% dos entrevistados afirmaram que atravessaram a rua fora da faixa de pedestres ao menos uma vez nos últimos 12 meses; 60% disseram ter comprado CD ou DVD pirata; 22% estacionaram em local proibido; 3% admitiram ter pagado propina a policiais ou funcionários para não levar multa; e 3% afirmaram ter levado itens de uma loja sem pagar.

ACHA QUE SERIA CONDENADO SE...

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Sobre a eficácia da Justiça, 80% acharam que seriam punidos se furtassem artigos baratos; 79% se dirigissem após beber e 78% se estacionassem em local proibido. Comprar produto pirata (54%) e atravessar a rua fora da faixa (52%) são as condutas que, na opinião dos entrevistados, são menos passíveis de punição[1].

Uma das reações mais conhecidas e difundidas pela cultura comum do homem médio recebeu agora a chancela da pesquisa: os pobres são mais honestos. Esta parcela majoritária do povo brasileiro, diz o senso comum, tem apenas a “palavra” para se fiar e se esta faltar não tem, literalmente, mais crédito para trabalhar, consumir.             Agora é preciso ter clareza sobre outros dois pontos: se há um corrupto, é porque há um corruptor; existe a grande e a pequena corrupção, o que as diferencia é o potencial de dano, não o ato desonroso em si. Neste sentido, o famoso gato que “rouba” energia é tão prejudicial quanto a ação do governante que desviou recursos da iluminação pública – o que se altera é o valor estimado. Mas, ambos devem ser combatidos porque recaem na conta de luz do povo, mais exatamente na conta dos que pagam suas contas.
 

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Em todo caso, apesar de não haver anjos e nem inocentes no âmbito da cultura popular, também se percebe no dia a dia que, apesar da tolerância à corrupção (tolerância negativa) ter-se difundido endemicamente pelo país, mulheres e “povo pobre” preferem as relações mais normais, menos abaladas pela corrupção; isto porque, como elo frágil das relações sociais, em casos de corrupção, eles, o pobre e a mulher, são sempre prejudicados, ainda mais espoliados. A tolerância (negativa) à corrupção só beneficia o corrupto cínico, aquele que diz, para justificar suas ações, que “todos têm seu preço”. Em todo caso, a tolerância à corrupção é tão grave quanto a corrupção em si, a exemplo da expressão popular muito difundida: “se estivesse lá, também roubaria”. O que ainda reforça a mágica da política corrupta, no pior estilo do “rouba, mas faz”. Ou até mesmo a expressão mais marcada pela história, mas que expressa muito bem a lógica política que relaciona os pobres e as elites dominantes: “é dando que se recebe”. Pela esmola, o mais pobre e vulnerável abdica da reivindicação, do protesto, dos seus direitos. Na ausência de um direito que se baseie na moral, consagra-se a corrupção como guia e meta; quando, na verdade, deveriam ser instigadas, toleradas somente as ações honestas, sendo estas entendidas como condutas republicanas, as que preservam a “coisa pública”, ao invés de dilapidar o patrimônio do povo. Isto porque, é óbvio, a corrupção dilapida apenas o patrimônio do povo, enriquecendo as elites que já são ou eram abastadas. Enfim, tudo é tolerável, salvo os intolerantes (aqueles que não toleram a tolerância, isto é, as regras do jogo democrático – e a democracia não prospera na corrupção). Em Bobbio (1992), essa noção está presente na fusão entre tolerância negativa e intolerância positiva:

A tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de repressão; a tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma sociedade anti-repressiva, maximamente permissiva [...] Não é que a tolerância seja ou deva ser ilimitada. Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis. A tolerância é sempre tolerância em face de alguma cosa e exclusão de outra coisa [...] O único critério razoável é o que deriva da ideia mesma de tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser deve estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes (pp. 212-213).

 

A intolerância positiva, portanto, é ação de desagravo, em desforço e desfavor do malfeito, e deve estar voltada contra tudo que estiver em desacordo com o sentido público. Neste caso, a intolerância é positiva porque, ao negar a corrupção, exalta-se a defesa exatamente daqueles (povo pobre) que mais precisam do Poder Público e de um direito que respalde o fortalecimento da República. Por isso, não tolerar a corrupção é uma forma de se consagrar a intolerância negativa, quando se desabona uma ação intolerante – e a corrupção talvez seja a ação social mais intolerável para o povo: o indivíduo marcado pela cultura comum do homem médio brasileiro.

 

Bibliografia

BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 4ª ed. Brasília-DF : Editora da UNB, 1985.

_____ A era dos direitos. Rio de Janeiro : Campus, 1992.

                                                                                                                 Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor pela UNESP/SP

Doutor pela Universidade de São Paulo

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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