Sexta-feira, 26 de julho de 2013 - 17h45
Soberano é quem decide sobre o
Estado de Exceção Permanente
Carl Schmitt
A essência da soberania é
a luta por autconservação do Estado
De modo simples e objetivo, a soberania implica no poder supremo, absoluto, superior: “um poder de dizer-se tal - qual”, de mandar. Por isso, não se diz de um “poder de comandar”, porque, neste caso, seria um poder de dividir o comando, “mandar com”, isto é, um poder de mandar com alguém não é um poder soberano, mas sim repartido. Vemos uma demonstração “organicista” do poder repartido, na figura estilizada de um indivíduo humano. Por sua vez, o poder soberano é inegociável: “não há meia soberania”; indivisível: “não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre mão”; inesgotável: “não há previsão de término”; ilimitada: “sem-limites”. Então, a soberania se resume (não que se limite) ao “poder de vida e de morte”. A soberania ocorre quando o príncipe, imperador, soberano ou mesmo o governante (na democracia) ou general (na ditadura) editam o direito por intermédio do Estado. Clique AQUI e leia artigo completo em PDF.
Em primeiro lugar, o direito ou a lei nada mais são do que a expressão fria, calculista do poder. Assim, o poder pertence àqueles que se ocupam do Estado naquele momento, enquanto grupo ou classe que domina o Estado, como “classe dominante” e que, portanto, passam a produzir um direito que lhes interessa. Em segundo lugar, se os detentores do poder (e processadores do direito) tiverem virtude, valor, prudência e astúcia, irão produzir leis que tragam obrigações e deveres ao povo, mas que lhes reservem apenas privilégios. Por fim, sua glória se revelará somente quando o povo não perceber que as leis são carregadas dessas imperfeições, isto é, quando o próprio povo estiver cego para ver que só lhe cabem deveres e que aos príncipes e barões só restam privilégios. De outro modo, quando o povo se apercebe de que está sendo ludibriado, então, o soberano tem que agir com vigor, mas um vigor suficiente para admoestar os adversários e assim novamente conduzi-los à cega obediência. Portanto, sob a ótica de quem detém o poder (soberano seria redundância) “o povo está sempre jungido ao jugo”, em que o direito é a expressão mais deletéria, abstrata, subsumida da excrescência do poder. Portanto, são características da soberania:
No passado remoto, o Príncipe faria tudo para manter o Estado unido, hoje é o governante. Na defesa da Razão de Estado, o soberano deve manter o Poder Público. Todo Estado soberano é um Estado regulador da moral pública, como Estado Interventor na cultura, moral. Alguns são mais, outros menos. Em suma, o Estado soberano é centrado (voltado para seus próprios problemas), centralizado (com um único poder central), centralizador (exerce-se pela força centrípeta), unificado (uno, indivisível) e apto (com recursos morais e materiais) para manter a unidade e a força do Poder Político.
O Direito de Príncipes e Magnatas
Para os mecanicistas ou organicistas, o poder soberano implica nos “elos da soberania”. No fundo, é como se quisessem dizer que tudo converge para o poder, para os elos do poder. Certamente, há uma hierarquia entre esses elos, entre o soberano e o povo: real possuidor, mas não destinatário da soberania. Há fases ou gomos de uma enorme correia de transmissão. Esta correia do poder que une os que mandam e os que simplesmente obedecem inclui obviamente o direito e o próprio Estado. Porém, também nesta correia de transmissão, há um elo mais fraco: o povo tutelado. Não há mediação entre quem manda e quem só obedece, numa das pontas está o feitor do soberano e na outra, o tutelado. A ilusão do povo está em acreditar que este feitor (mero emissário do poder) possa representá-lo com legitimidade e parcimônia. Na primeira ficção jurídica, o povo abriria mão do seu poder, “por não conseguir governar o tempo todo” (afinal, alguém tem que trabalhar), trocando a chamada soberania popular pela segurança prestada pelo Príncipe. Por fim, a outra parte desta mesma ilusão é pensar que o poder tenha parcimônia: realmente, trata-se de uma ficção jurídica e ideologia política porque nada na história política dos povos conhecidos, endossa esse pensamento.
Contudo, deve-se ver no direito uma relação de bipolaridade e que esta é sua alternativa para o “devido controle do poder” — pois dá para sustentar que esta bipolaridade do direito se resume a isto: de um lado, os que obedecem; de outro, os que mandam. Novamente os que procuram parcimônia no poder e no direito terão um desafio pela frente, pois o povo sabe do que fala: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, qual parcimônia? É somente o caso de uma resignação sábia: “há crítica e repreensão silenciosa”. Para os que pregam inadvertidamente que “o direito é parcimonioso”, ainda podemos dizer que “o poder dos magnatas não pode ser magnânimo”. É difícil conciliar, por motivos mais do que lógicos e óbvios, a dupla magnata/magnânimo (dadivoso) seria uma altercação do bom-senso e ignorar o bom-senso não é algo dizível e nem razoável: as punições costumam ser mais do que duras. No entanto, há grandes alterações entre o passado e o presente, entre o direito que socorre e serve aos poderosos de ontem e de hoje, entre os príncipes de outrora e os magnatas modernos?
De certo modo, isso explica porque um ex-juiz condenado a décadas de prisão (por corrupção e muitos outros crimes contra a fé pública) sai caminhando do Tribunal, para aguardar o julgamento dos recursos em liberdade. Podemos dizer que o direito é feito pelo feitor do soberano e que o carrasco é seu executor, mas a ilusão do feitor é exatamente esta: acreditar que ele é o soberano. Enfim, de certo modo, por isso se diz que “o poder é uma ilusão” e o direito mesquinharia. Agora, de lá para cá, entre esse modelo de Estado Moderno-colonial e a assim chamada “sociedade da informação” o que, de fato, mudou? Mudou o fato de que os feitores de antanho, hoje, estão revestidos de uma forte ideologia que é crer que o direito possa trazer pacificação social numa sociedade cindida em classes sociais.
Hobbes e o Poder Soberano
Em todo caso, quer seja um empréstimo apropriado ou não quanto à soberania ameaçada por delinquentes ou inimigos, Hobbes seria mais explícito quanto à própria soberania necessária à Razão de Estado, ou seja, no lugar do Homem de virtù deve consubstanciar-se realmente o Estado como soberano. Portanto, o poder, ainda que absolutista, é menos pessoal ou personalizado e mais seguro a todo o povo:
A soberania é o poder de exceção
A grande diferença entre os possíveis bandidos do passado e os usurpadores atuais do poder é que, no passado idílico, os mercenários respondiam aos seus generais e, na atualidade, empresas de matar como a Blackwater (assenhoreando-se do Iraque) atuam como civis e não respondem ao comando do Estado: literalmente, como nunca se viu na história, a máquina de guerra está acima da lei. Curiosamente, a soberania se apresenta melhor exposta sob os regimes de exceção, pois aí o poder aflora totalmente, como poder nu, no dizer de Einstein (1994). Soberano é aquele pode se colocar “fora” da lei: “O paradoxo da soberania assim se enuncia: ‘o soberano está ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’ [...] A especificação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei” (Agamben, 2002, p. 23). Em resumo: exceção é um conceito limítrofe, “conceito de esfera extrema”, por isso sua definição não se configura na normalidade, mas sim no limite, no caso ulterior à legalidade. Seguindo-se Agamben (2002), e aplicando-se a tautologia (ele chama de paradoxo da soberania), pode-se dizer que a lei está fora dela mesma, afinal a autoridade não precisa do direito para criar o direito (basta-lhe o poder). O controle pluripotenciário[1]ou institucional (divisão e controle dos três poderes), no fundo, também não responde satisfatoriamente à necessidade específica que gera exceções e que traz imbricações para a soberania. Diante da anormalidade, é preciso a ação eficaz do poder soberano — daí a dificuldade de se limitar a competência:
Se houver êxito na descrição das competências conferidas para o estado de exceção – seja por meio do controle recíproco, seja pela delimitação temporal, seja, enfim, como na regulamentação jurídico-estatal do estado de sítio por meio da enumeração das competências extraordinárias -, a questão da soberania será reprimida em um passo importante, mas, obviamente, não resolvida (Schmitt, 2006, p. 12).
O poder é mantido em detrimento do direito porque o Estado de Exceção é um “Leviatã fora da ordem”, em grave luta por autoconservação. A essência da soberania é a luta por autconservação do Estado. Por isso, não-contraditoriamente, a competência excepcional busca a lógica da normalidade para definir que a exceção pretende evitar o caos jurídico: o que não elimina a ironia[2]. De todo modo, em consequência, defende-se o status quo, o establishmentcomo indicador do poder soberano. Isto transformou a teoria do direito à exclusão em uma teoria sistêmica do status quo; apesar da redundância, não por acaso, status (firme) derivou a figura do próprio Estado, ou seja, a teoria da exceção procura a paz na Razão de Estado. Seguindo esta linha, para Carl Schmitt, a dominação estatal está baseada no monopólio decisional acerca do próprio uso do poder/coerção. Apesar da teoria da exceção se valer da lógica formal (mas provocando-nos com o raciocínio indutivo), a razão em que se baseia o Estado de Exceção não é a razão da autonomia e sim a Razão de Estado que acomete e subjuga a todos. De acordo com o raciocínio da exceção, basta ter suficiente razão/coerção. Portanto, dado que há o poder que se quer estabelecido, a exceção não está fora, mas dentro da regra e de sua lógica — “para poder excluir, a regra de exclusão teve de ser incluída”:
A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral [...] A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta [...] Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex capere) e não simplesmente excluída [...] Deleuze pôde assim escrever que “a soberania não reina a não ser sobre aquilo que é capaz de interiorizar[3]” (Agamben, 2002, p. 25 – grifos nossos).
Também é desta configuração que advirá o conceito de soberania: Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção Permanente, dirá solenemente Carl Schmitt (2006, p. 07). Mas, o que deve fazer o soberano em caso de extrema necessidade? A resposta à pergunta é igualmente uma resposta dada por Bodin e retomada por Schmitt:
Até que ponto o soberano se submete à leis e se obriga diante das corporações? [...] Bodin responde no sentido de que promessas são vinculantes, porque a força obrigacional de uma promessa repousa no Direito Natural; porém, no caso de necessidade, cessa a vinculação segundo os princípios naturais gerais. Em geral, ele diz que, frente às corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas ela não se vincula si la necessite est urgente (Schmitt, 2006, p. 09 – grifos nossos).
Com isto, diz Schmitt, Bodin inseriu a decisão no conceito de soberania. Por isso, a resposta à indagação de quem é o soberano na condição de exceção, já traz em si a resposta à questão de quem é a suma competência nestes casos: o soberano absoluto. Porém, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto:
Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11).
Vico também afirmou a superioridade da exceção. Neste sentido, para Vico (1999), superior aos limites impostos pela norma jurídica, a exceção se torna princípio e baliza, o fim em si mesmo que requer imediata e plena aplicação. Na verdade, saber que os casos de extrema necessidade (exceção) estão ou não previstos em lei, é uma questão menor, porque a decretação do Estado de Exceção suspende toda a fruição do ordenamento jurídico. Então, mesmo a previsão legal será suspensa e, se não houver previsão legal, com mais motivação a exceção será decretada. Atualmente, o que se chama de Estado Global nada mais é do que a globalização vista como um longo e amplo processo histórico-coletivo de negação de um suposto Direito Global, e que veio se formando desde o século XVI. Este processo se fortaleceu no século XVIII (com as Revoluções Americana e Francesa: a primeira mais republicana, fundante de um Estado-Nação; a segunda mais proletária e, depois, igualmente sangrenta e até conservadora). No século XIX, contou-se com a inclusão de um movimento operário organizado (ou mais organizado do que ao tempo das “barricadas” de 1848 por quase toda a Europa) e de um outro feminista (de Chicago para o restante do mundo). No século XX, apenas para recordar, este processo ainda tinha energia para aderir e congregar outras tantas forças sociais, como: requerer a autodeterminação dos povos, os “direitos humanitários” (especialmente no pós-Segunda Grande Guerra), além de contar com as minorias (inclusive dos “deficientes, mutilados e amputados" entre 1939-45), o meio-ambiente, o desenvolvimento tecno-científico.
Durante séculos vimos ascender por boa parte do mundo novo e do Velho Continente formas intensas e determinadas de luta pelo reconhecimento de demandas, direitos e inserção social na dura batalha pela transformação global e que levasse aos mais diversos tipos, formas e mecanismos de reconhecimento das diversidades sociais. Anteriormente, a globalização dos direitos havia nos trazido a perspectiva da interação, do reconhecimento, da expansão do próprio direito: sobretudo sob a alcunha dos direitos humanos. Neste sentido caminham os quase sempre enumerados exemplos das lutas operárias (da Revolução Mexicana à tomada do poder em Cuba: 1959), do movimento feminista, do movimento estudantil no maio de 68, da Revolução dos Cravos, num só dia em Portugal: 25/04/1974. Mas o que temos no século XXI, além da agonia desse fluxo de conquistas e de seus combatentes? No século XXI, o que mais afronta a soberania é o poder econômico das empresas e grupos transnacionais, o capital especulativo e os atos de terrorismo individual ou de grupos como a Al Qaeda.
Com o que vimos, podemos dizer que a soberania é realmente a capacidade de mobilizar as forças políticas necessárias, sem distinção da moral, para sanar os problemas que afligem a Razão de Estado. Portanto, neste prisma, a soberania pode aplicar forças que são próprias do Estado de Exceção. No final da ação, após a decretação da intervenção forçosa do poder, dir-se-á que a exceção está fora do alcance do Estado de Direito, uma vez que todo o ordenamento encontrar-se-á suspenso. Detém a soberania aquele que pode criar e manejar o poder de acordo com sua vontade e que, ao final das contas, pode dizer o direito:
Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor [...] O “ordenamento do espaço”, no qual consiste para Schmitt o Nómos soberano, não é, portanto, apenas “tomada da terra[4]” (Landnahme), fixação de uma ordem jurídica (Ordnung) e territorial (Ortung), mas, sobretudo, “tomada do fora”, exceção (Ausnahme) (Agamben, 2002, pp. 26-27).
À primeira leitura, o Ser Soberano orquestra a própria vida como melhor lhe aprouver. Soberano é não ser obrigado a seguir as ordens de outrem, a agir com liberdade, autonomia, independência, sem ser tutelado, administrado, controlado por outras pessoas, instituições e/ou Estados. Por isso, é comum identificar-se, confundir-se soberania com independência, como se todos que são independentes fossem soberanos e vice-versa. Afinal, um Estado incapaz de se manter economicamente estável, sem depender dos outros, não será um Estado soberano.
Se há propriedades particulares na Amazônia ocupadas por forças militares mercenárias, com sede nos EUA, isto implica que perdemos nossa soberania enquanto país? Ou será que perdemos a soberania apenas naquela região? Podemos manter metade ou um pedaço de território e ainda dizer que somos soberanos naquela região, mas que no todo estamos dominados, submetidos? Quando a Polícia Pacificadora, no alto dos morros no Rio de Janeiro, instala bandeiras do Brasil, estará admitindo que, a partir daquele momento, readmitiu a soberania naquela localidade e que, antes, não era soberano por ali? O crime organizado internacional, o tráfico de pessoas, isto também não desbaratina a soberania de um país?
Além disso, é preciso saber que a soberania se aplica à Razão de Estado, ou seja, há um núcleo que fortalece a identidade, uma reserva moral para formar a Nação, uma justificativa política e jurídica para que o Estado exista e é isto que deve ser preservado sob todas as formas; para manter a soberania, isto é, a integridade da Razão de Estado, “os fins justificam os meios”. O tema é complexo e todas essas relações e intersecções são difíceis de julgar de modo direito. Em sentido complementar, a soberania que se constrói na legalidade deve colocar freios e limitações ao uso/abusivo do poder.
Soberania Jurídica
A soberania surgiu como um dos conceitos fundamentais na moderna ideia de lei. O soberano, portanto, é aquela pessoa ou órgão (Poder Legislativo) que age como legislador supremo numa dada comunidade. O Estado é uma noção mais geral do que a de soberano, representando a comunidade como organização jurídica, e simbolizando assim todas as várias manifestações da comunidade legalmente organizada. É sentida a necessidade de atribuir essa autoridade a alguma fonte mais permanente, ou seja, o próprio Estado. O aspecto interno da soberania é o do supremo legislador. Em seu aspecto externo, por outro lado, a posição é muito semelhante a do monarca absoluto ao abrigo de um sistema tradicional de direito (poder absoluto, no passado, e Poder Extroverso, atualmente). Um dos objetivos positivistas é estabelecer a autonomia da lei como um sistema de normas positivas cuja validade pode ser determinada dentro da estrutura básica do próprio sistema jurídico (presunção de legitimidade, presunção de veracidade). Além disso, a ideia de direito positivo parece também acarretar a noção de uma regra estabelecida (positum) por algum legislador humano identificável (coercibilidade). A lei estaria apta a possuir essa autonomia sem recorrer à autoridade externa[5]. Em síntese, o positivismo (incluindo o positivismo jurídico):
A teoria imperativa (imperative theory of law - imperatividade) equivale realmente a dizer que a lei é aquilo que o soberano ordena e que, por outro lado, nada pode ser lei que não tenha sido ordenado pelo soberano. O positivismo jurídico (dogmatismo, legalismo, monismo) expressaria uma unidade auto-suficiente da lei (tautologia). Porém, como observou o juiz Holmes, “a vida do direito não se baseia na lógica, mas na experiência” (Path of the Law - do juiz Oliver Wendell Holmes Jr.[6]). Toda norma legal que imponha uma obrigação (em contraste com as normas que meramente permitem ou autorizam certos atos) deve ter uma sanção agregada. A própria sanção é, no entanto, mera descrição de certas normas concretas na base da hierarquia legal, as quais fornecem um fundamento legal para a aplicação da força em determinados casos. Para Kelsen, uma sanção não é ameaça de força ou sua aplicação concreta, mas, simplesmente, a “concretização” final da série de normas que faz com que esse resultado físico seja autorizado no sentido jurídico (Lloyd, 2000, p. 240)[7]. O ponto de vista de Kelsen é que esse sistema monístico é não só desejável, mas, de fato, operativo, pois os Estados aderem-lhe substancialmente, num grau que se coaduna com o princípio do mínimo de efetividade (erga omnes, exigibilidade, auto-executoriedade).
Controle externo da soberania: o positivismo de Kelsen
O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros).
O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista.
O que traria unidade ao sistema do direito seria a norma fundamental do direito internacional. Com isto, o que mais o distanciava da teoria dualista é o fato do direito internacional ser relegado a um tipo de moral, ou direito natural, distanciando-se o direito internacional de um verdadeiro direito - o – direito positivo.
Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta humana”, dotado de poder para que suas ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte ou, o próprio ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos ao Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado soberano poderia admitir contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa nacional de sua soberania.
Se o Estado é um conceito (ente) substancialmente político não seria em si uma substância jurídica e todas as soberanias estariam ameaçadas. Ao passo que, reunindo em um sistema único todas as regras do direito positivo, a soberania do Estado (de todos os Estados) se revelaria idêntica à positividade do direito. Esta comunidade de Estados, personificação do ordenamento jurídico mundial, como Estado mundial, é sinônimo de civitas maxima.
As oposições entre regras de direito interno e regras de direito internacional, neste modelo, não seriam contradições lógicas, mas sim antinomia entre uma norma inferior e outra de natureza superior. Fazendo-se prevalecer um princípio básico do direito: a lei superior derroga a lei inferior.
Assim, se para a concepção objetivista, o conceito ético de homem é a humanidade, para a teoria objetivista do direito, o direito só pode ser internacional, universal, e por isso ético. A expectativa objetivista seria garantir positividade ao direito internacional. Além do que a Teoria da Autolimitação do Poder (“regra da bilateralidade da norma jurídica”), sem que o Estado precisasse recorrer a uma ordem superior, não foi observada por Kelsen.
Outra contradição está em admitir que “não há capacidade de decisão política sem se considerar elementos meta-jurídicos – como ideias éticas e políticas. Em todo caso, a teoria pluralista e a concepção objetivista de Kelsen assinala que a “unidade da soberania” (como “unidade do conhecimento”) deve ultrapassar os limites do EU estatal, sob o espírito universal, em que as efemérides do “espírito de cada um” (ente político-jurídico) deve se realizar, objetivando-se, uma vez que supera-se o subjetivismo de cada-um-só.
Disto resulta outra contradição: “o direito se torna a organização da humanidade e aí se identifica com uma ordem moral suprema”. Fora do sistema puro do direito, direito e moral se apresentam sem distinção. Sua civitas maxima foi pensada a partir de todos os problemas da comunidade política do século XX, essencialmente em não se impor como unidade jurídica aos Estados soberanos. Mas, termina projetando ao direito internacional as mesmas características do Estado nacional: uma ética-universal e uma consciência humana universal. É isto o que o Estado representa para cada indivíduo em sociedade.
É de se acentuar que o seu modelo de globalismo jurídico está na base da concepção universalista dos direitos humanos, quando preceitua-se que a formação de instituições jurídicas supranacionais recorre à “unidade da experiência humana”, de uma moral validável universalmente e da vinculação de todos os Estados, quer queiram, quer não – mesmo os não-civilizados.
Seu objetivo era eliminar a justiça privada do âmbito das relações internacionais: o direito internacional seria o direito da comunidade interestatal. Do que decorre outra noção nuclear: a necessária centralização da administração da justiça em um tribunal internacional. O que confirma a ideia de que o direito é o monopólio da força em uma ordem coercitiva. A analogia doméstica revelaria que o Estado mundial garantiria a paz, tal qual se vê no esforço empreendido pela Federação nos EUA e nos Cantões suíços. Seu globalismo, enfim, é essencialmente jurídico. Mesmo para que tivesse eficácia fosse necessário que se criasse uma polícia internacional (jus puniend global). O que ainda equivaleria à restrição ou destruição da soberania estatal. A força dessa convicção está no fato de que o direito é também uma “ideologia de poder”.
A ONU teria criado uma estrutura internacional de segurança recíproca. Porém, o Conselho de Segurança Pública perderia juridicidade, pois a concentração de poder desembocaria em decisões políticas. Quando escreveu sobre isso, em 1954, Kelsen alertava inclusive para que os vencedores da Segunda Guerra julgassem os crimes de guerra neste embrião de Tribunal Penal Internacional. Afinal, para Kelsen, “o direito é força”. Acreditava que a criminalização pessoal dos agentes da guerra evitaria outros conflitos bélicos. Contudo, assim Kelsen retornava às noções medievais de punibilidade do justus hostis e ainda negava o Princípio da Legalidade. Os detratores da guerra sabem que agem de forma absolutamente imoral e, por isso, devem ser julgados, independentemente de lei anterior que defina a ação como crime.
Kelsen anteciparia as bases jurídicas e morais que passariam a ser invocadas na estruturação do Estado Penal: normas penais em branco (criminalização moral, independentemente de lei anterior que o defina) e polícia internacional a serviço do Império. Em todo caso, vislumbra-se ao menos a intenção de se demover o livre curso das forças incontroláveis da exceção[8].
Partindo-se do Positivismo Jurídico, especialmente de Hans Kelsen, o direito é tido como sinônimo de lei. Essa ideia do direito como um apanhado puramente dogmático de normas, decorre da visão monista do direito, ou seja, todo direito válido decorre única e exclusivamente do Estado. De outro modo, não podemos nos esquecer de que o pluralismo conceitual que recobre o direito é fruto exatamente da ocorrência da multiplicidade social (da dinâmica social) e que, portanto, o campo jurídico é sempre social, isto é, mais vasto do que a delimitação jurídica dos próprios eventos sociais. Desse ponto de vista, não se trata de uma discussão fútil a que procura ordenar alguns significados viáveis, aceitáveis, legítimos do direito; por isso, também não há neutralidade axiológica. Mas, como afirmava Kelsen, temos de observar o “princípio da supremacia da norma” – “a lei é obedecida porque é a lei”. Kelsen objetivava libertar o direito (a lei) dos elementos que lhe são estranhos, como o social, o político, o econômico. Esta proposição de uma teoria pura do direito quer ver o direito fora do contexto, ou seja, em “condições ideais de aplicabilidade”.
A soberania racional
A soberania foi definida no contexto do Estado Racional, ou seja, o monopólio político e jurídico não mais provém das tradições, do passado remoto, porque são decisões racionais do legislador. Trata-se, então, de um projeto de poder consciente, como soberania racional.Os indivíduos são portadores do direito de segurança e assim devem ser protegidos pela lei; anteriormente, os mesmos indivíduos estavam atados por laços de sangue e, como membros de uma comunidade, pertenciam a nações sem soberania. Assim, o Estado soberano é uma ordem jurídica que governa uma criação comunitária consciente, racional e desejada. Para a comunidade, a teoria da soberania permitiu a consciência do dever de organizar o governo de forma soberana. Na definição de Bodin: “O Estado define-se como um governo de muitas famílias e daquilo que lhes é comum, dotados de poder soberano e conduzido legitimamente” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 222)[9]. A soberania significa, portanto, o mais alto poder de comandar. Do latim majestas, resume-se como poder absoluto e perpétuo. Impera o sentido de que o soberano não está limitado de forma alguma, às próprias leis; é o ponto forte do Estado de Exceção. Elevando-se acima do senso de justiça (ou da tradição), é certo dizer que o direito retira sua força da soberania. De tal modo que a soberania é um poder de dominação formalmente supremo. Desde Bodin – sobretudo no Estado de Necessidade – o próprio direito de produzir outros direitos decorre da soberania como plenitude do poder e não requer qualquer legitimação adicional. Como unidade, o Estado é uma ordem pacífica unitária, uma vez que a base da legitimação do direito interno está na conquista da independência interna e externa. Não há soberania sem liberdade integral de ação. A soberania não é, pois, uma consequência, mas antes de tudo uma qualidade política. O Estado é uma unidade de poder que tem o monopólio para impor o direito estatal por meio da força (coerção): “Só o poder cria o direito. O justo e o injusto nascem por meio do Estado soberano” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 228 – grifos nossos). Quem pode criar o direito, tem o poder de transformar o justo no injusto – e vice-versa. O poder soberano é aquele que tem um poder ilimitado sobre o povo, em determinado território.
O conceito jurídico de soberania(competência soberana) engloba o direito de tomar decisões obrigatórias para os outros. O conceito político de soberania (plenitude de poder) implica apenas no poder de comandar os outros. Tem soberania externa quem é sujeito do direito internacional público e estabelece acordos e tratados com outros Estados. Na soberania interna, o Estado é identificado como a autoridade suprema perante seus cidadãos. Sob uma soberania orgânica, pode-se perguntar quem exerce internamente o poder supremo: o monarca ou o povo (soberania popular). Como soberania absoluta, há uma competência suprema no exercício do poder. Na soberania relativa se descreve a regulamentação do poder e a organização das funções públicas que servem ao interesse comum (o Judiciário e a polícia). Como soberania positiva se designa a margem de ação do Estado. Já a soberania negativa indica o espaço de liberdade política concedida pelo direito (historicamente, a liberdade negativa vem sendo demarcada desde a Carta do Rei João Sem Terra). Modernamente, para Austin – também citado por Gerster – são idênticas as soberanias jurídica e política. Com Hart – ainda próximo de Austin – a soberania não se constrói somente com obediência, costumes e comandos. O poder só (como poder nu) não basta; a obrigatoriedade intrínseca do direito é uma regra positivada. Portanto, o soberano deve se ater a certas regras, deve respeitar certas prescrições de procedimento. Com o que ainda se verifica um caráter vinculante intrínseco do direito, em que a soberania expressa a ordem jurídica democrática: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 242 – grifos nossos). Nesta soberania profunda, a legitimidade do poder – como mecanismo de controle do Estado de Direito – está na distribuição da Justiça Social. Desse modo, há uma presunção de legitimidade nas decisões; na soberania jurídica profunda está a autoridade do Estado e não só a força do Estado. Mas, ainda há que se reportar que na soberania profunda (ordem jurídica democrática) o potestas in populo não é um adereço do poder, sendo expressão do poder social. Portanto, soberano é o povo que expressa sua vontade contida no poder social. Não há soberania sem legitimidade – o poder de impor uma vontade sem restrições é tirania e o apelo à força pode indicar, exatamente, a perda da soberania como capacidade de exercitar o governo. Quanto mais autoritário, mais desesperado para se manter o poder já violado.
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