Terça-feira, 4 de março de 2014 - 10h59
Vinício Carrilho Martinez[1]
Os fatores reais do poder que regulam
no seio de cada sociedade são essa força ativa
e eficaz que informa todas as leis
e instituições jurídicas da sociedade
Lassale
Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção
Carl Schmitt
A Constituição Federal demonstra a congregação das forças reais de poder (inclusive ou, mais especialmente, na definição dos meios de exceção) – isto é certo! Mas, não se pode falar de uma Ética Pública a ser respeitada pelo Poder Judiciário?
Dominação política (e no Brasil partidária) do direito constitucional– esta é a fórmula de poder que se pode tirar das observações de Lassale (1985) e de Schmitt (2006). A questão que fundamenta a Constituição é, acima de tudo,sua origem política – afinal, antes de tudo, o Poder Constituinte é um poder político:
“Constituição é um pacto juramentado entre o rei e o povo, estabelecendo princípios alicerçadores da legislação e do governo dentro de um país”. Ou generalizando, pois existe também a Constituição nos países de governo republicano: “a Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual se baseia a organização do direito público dessa nação” [...] Para isso será necessário: 1° – Que a lei fundamental seja uma lei básica [...] 2° – Que constitua [...] o verdadeiro fundamento das outras leis [...] A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois, atuar e irradiar através das leis comuns do país [...] 3° – Mas, as coisas que tem um fundamento não o são assim por um capricho;existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não permite serem de outro modo [...] pois aqui rege a lei da necessidade [...] A ideia de fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz, que torna por lei da necessidade que o que sobre ela se baseia seja assim e não de outro modo [...] Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país – e fazendo esta pergunta os horizontes clareiam – alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis do mesmo, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo? [...] Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são (Lassalle, 1985, pp. 10-14-15-16-17 – grifos nossos).
O constitucionalismo moderno é uma regra política que, ao invés de vergar a força da Constituição aos interesses político-partidários, deveria sufragar as garantias legais-institucionais contidas e asseguradas (portanto, com força de lei) na cultura democrática. Entretanto, ao revés da moral pública, osentido sociológico é aquele já apontado por Ferdinand Lassale, ao sinalizar os principais fatores reais do poder que condicionam a Constituição.
Como diria Lassale (1985), trata-se da Constituição de papel. O sentido político teria sido dado por Carl Schmitt, quando ressaltou a decisão política fundamental, que é a vontade expressa pelo Poder Constituinte domesticado pelas forças políticas hegemônicas. Na realidade, há um Estado de não-Direito (Canotilho, 1999), em que vige o antidireito e a injustiça formalizada pela rotinização burocrática do patrimonialismo[2]. Em Weber (1999) é clara a transformação da racionalidade – que deveria dar suporte ao Estado de Direito – em uma burocracia aprisionada por interesses parciais: patrimonialismo.
No Brasil, para que tivéssemos um Estado de Direito não reduzido ao antidireito, obrigatoriamente, teríamos de promover uma judicialização do Poder Judiciário (bem ao estilo do que se faz com a política). Em outras palavras, de modo semelhante ao que se praticou em boa parte da Europa, o país teria de se submeter primeiro a uma Revolução Burguesa. Depois, já conhecedores das principais instituições burguesas do direito (Justiça Formal), aplicar-se-ia na construção do Estado de Direito (Princípio da Isonomia e da interdependência dos poderes). Por ora, nossa maior ameaça institucional, moral e democrática pode ser resumida a anulação do Princípio da Autolimitação do Poder Político(Jellinek, 2000). Como veremos no texto, o maior risco não é moral, principiológico, mas sim político e pragmático.
O antidireito
Ao contrário do que queria Kelsen (1998), o Estado não é o direito; mas sim o seu exato oposto, visto que o direito revela o poder constituído. A diferença está em que o direito pode/deve expressar a moral pública, a ética, o bom senso; ao passo que a política instaura tão-somente a vontade expressa do poder, na maioria das vezes um poder limitado ao senso comum da opressão do Princípio do Contraditório. Não se contradita a vontade do Poder Moderador.
Em suma, Karl Schmitt colocou Kelsen em seu devido lugar jurídico, no plano formal nada ou quase-nada realista. O que Kelsen também não vislumbrou é a diferença entre o bom senso (direito) e o senso comum (política). Sem a moderação da ética e da moral pública, o bom senso (direito) não tem força para emergir e, por isso, corrompe-se como ideologia do antidireito (Filho, 2002).
Na lição de Shakespeare (2004), sempre há algo de podre no reino do poder descontrolado. Nesta luta intestina pelo poder, o iminente jurista alemão, Konrad Hesse (1991), que buscou conter o realismo jurídico retratado por Lassale, ao menos no Brasil, faria como a Justitia tupiniquim, da ilustração, teria vergonha de encarar o homem médio em sua vida comum. Não há nada mais ferino do que o desenlace do direito (moral, bom senso, lei) com a Justiça (prática social e institucional).
O supremo erro jurídico
Esta matriz realista do direito público, desde os primórdios do pensamento liberal, tem embalado a composição do Supremo Tribunal Federal (STF). Nas últimas décadas da República, em nome do realismo político – “quem pode, manda; quem tem juízo obedece” –, o direito tem sido vitimado pelos partidos que exercem monopólio junto à chefia do Executivo.
A absolvição do crime de formação de quadrilha no julgamento do Mensalão (Ação Penal 470), pelo STF, em 2014, trouxe à tona a realidade do direito no Brasil. Em nosso caso, assim como em boa parte do Ocidente, o direito nasce no Legislativo (formado por políticos profissionais) e morre no Judiciário, no STF (com “operadores do direito” altamente partidarizados, a favor ou contra o governo de plantão).
Na verdade, o Judiciário estereotipado pelo STF tem uma conformação político-partidária muito pior, no sentido de menos democrática, do que o Legislativo. Basta-nos pensar que na elaboração da lei, no Legislativo, a motivação política ou pessoal do autor do projeto de lei sofre da subsunção para se converter em lei – é certo que, em muitos casos, o que vale é a vontade hegemônica que se vê no Legislativo. Porém, o próprio entrechoque dos partidos e das forças políticas ali representadas promove um mínimo processo de decantação/depuração dos erros e/ou equívocos presentes no projeto inicial. No legislativo, bem ou mal, o senso comum (política) pode ser convertido em bom senso (direito). Se pode, não quer dizer que sempre seja, mas pode, além de que deveria.
Há um embate político-ideológico no plenário e nas galerias (ou nas ruas), em torno de temas que poderiam revestir-se como lei e este processo auxilia na apuração do que é essencial e do que pode/deve ser convertido em matéria jurídica. Certamente, há muitos lobbies atuando no Legislativo, contudo, nenhuma vitória é antecipada ou assegurada, haja vista a dificuldade dos setores mais conservadores em aprovar, por exemplo, uma legislação a serviço do Estado Penal – como na imposição de penas severas e desumanas ou na redução da maioridade penal.
No STF, ao pleno sabor das forças políticas de quem nomeia os ministros integrantes do poder, os votos refletem os interesses da Presidência da República – seja a favor ou contra. Ou seja, se a maioria dos membros da Corte Política foi nomeada pelo poder de plantão, a votação tende a espelhar resultados como o do Mensalão: absolvendo-se a tese da formação de quadrilha, reduziu-se em muitos casos a pena de regime fechado para o semiaberto. As manobras e as jabuticabas jurídicas manejadas para inclinar os votos, deste ou daquele modo, pouco importa, servem unicamente ao poder, uma vez que a vontade política reinante é a que se manifesta com vigor.
A Corte Política
Aliás, não é à toa que se apelidou de Corte Política, porque o STF se manifesta muito mais pela política partidária do que pelo direito. Este problema está na origem da formação do STF, pois a Presidência da República tem a previsão constitucional de indicar os futuros membros da Corte Política. O(a) presidente indica e o Congresso sabatina, mas na história da República nenhum indicado foi recusado, isto é, a indicação tem força de nomeação. Assim, na prática, as qualidades do indicado são, essencialmente, sua subserviência ao poder central; caso contrário, se faltar a docilidade partidária, pouco importa sua capacidade intelectual, não haverá sequer indicação.
Não há critérios objetivos na nomeação do ministro do STF, basta ser bacharel em direito. O problema está na forma e, como se sabe, não é difícil de ser resolvido. Também é de conhecimento comum no mundo jurídico que o erro primário na forma traz graves transtornos no conteúdo, com a nulidade dos atos e dos resultados jurídicos. O erro de origem, redibitório, anula os efeitos jurídicos.
Nova regra de seleção para o STF
No caso do STF, nova regra de composição, por exemplo, revelaria que – em sistema de rodízio – os ministros seriam indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Ministério Público Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. Sem a ingerência do Executivo, os critérios de nomeação – ainda que políticos – seriam de foro interno às instituições participantes e raramente partidários. Para exercer a força do monopólio, o Executivo teria de controlar todos os órgãos fiscalizadores da Justiça – o que seria muito difícil.
Segunda fórmula
Em outra fórmula objetiva, a formação do Supremo seria limitada a uma escolha inter pares, de tal modo que a Corte Suprema fosse formada unicamente por juízes de carreira, com a observação dos critérios políticos inerentes ao Poder Judiciário. Nesta fórmula – ainda que procuremos os (d)efeitos de inclinação política – o Judiciário seria formado exclusivamente por membros do Judiciário. Mesmo sofrendo da nota de corte da política, os juízes são obrigados a entrar no sistema por meio do concurso público. A política pode ser decorrente, mas no ingresso da carreira são evidentes os efeitos da meritocracia.
O Absolutismo Jurídico
Comparemos com a realidade presente-futura: a presidente Dilma, se reeleita, deverá nomear mais cinco membros ao STF, além dos seis votos que já controla hoje em dia. Com a totalidade dos 11 (onze) votos políticos do STF a seu favor, no futuro próximo, deverá envergar totalmente o direito para se render à política. É o mesmo que decretar o fim da democracia formal. Equivale a abolir o sistema de freios e contrapesos. Por mais que se queira, será inegável a dominação do Judiciário pelo Executivo – e aí se esvai o Princípio da Imparcialidade do juiz. Simplesmente, não haverá Estado de Direito.
Na relação reguladora necessária ao debate político-partidário, após esta nomeação de mais cinco integrantes do Poder Político, efetivamente, o Judiciário não será um fiscal e julgador do Executivo. Pragmaticamente, a função precípua do Supremo, definida na CF/88, será abolida pela própria regra constitucional. O que confirma a excrescência do Estado de Exceção Permanente e Global, porque é evidente que se inseriu uma regra de exceção na regra democrática. O sistema de freios e contrapesos, no Brasil, será anulado pelo próprio poder fiscalizador. É um pesadelo constitucional, um desastre moral de mais de três séculos.
Estado de não-Direito
Em nível insuportável, acima do que se tem hodiernamente, tratar-se-á da absolvição antecipada aos atos do Executivo; indiferentes aos apelos da moral pública, do bom senso, do Princípio da Regra da Bilateralidade da Norma Jurídica, os ministros serão curvos ao partidarismo. O Judiciário será uma vítima fatal do hiper-presidencialismo: o direito, no Brasil, já não-é válido para todos, mas será constitucionalmente inaplicável aos detentores do poder central. É um absolutismo institucional, mas será um absolutismo jurídico com efeitos anti-jurídicos e anti-democráticos.
Com o monopólio do STF, após o controle dos 11 votos, veremos um Poder Moderador. Teremos a total customização da Justiça, manipulada por uma regra de poder que se impõe pela exceção (nomear o próprio juiz) e que se verticaliza socialmente pelo antidireito: por força do racismo, já prevalece, juridicamente, apenas a formação de quadrilha para negros e bandidos comuns, mas prevalecerá uma injustiça para os inimigos e adversários do poder: aos amigos tudo, menos a lei. Nesta nefasta prática política, absolve-se a negação do direito: não há formação de quadrilha para brancos.
Na atualidade, o due process law não subsiste no Estado de Direito brasileiro, simplesmente porque o poder doutrinador/domador de seus juízes, obviamente, não será julgado por eles ou, caso venha a ser, será absolvido previamente. Já há, mas será inevitável observar-se o habeas corpus político preventivo.
O que copiamos dos EUA, como check and balances, é uma réplica pífia de auto regulação do Poder Político. Nosso presidencialismo – que é coronelismo – não tem base moral e jurídica para se autolimitar. Nossa República é bestializada, dominada por “bilontras”, espertalhões, como se dizia nas críticas dos pasquins da década de 1900 (Carvalho, 1987). Todavia, nos dias atuais (e bem próximos), com efeito partidário e jurídico, retroagiremos aos primórdios do Constitucionalismo Inglês, quando ainda se debatia a necessária limitação dos meios de poder.
O que ainda nos compete raciocinar juridicamente é nos perguntarmos o porquê temos de copiarmos o que há de pior no exemplo institucional – por que não importamos o melhor espírito republicano e constitucional?
O julgamento do Mensalão, no STF, aniquilou totalmente a pretensão de Justiça Política (Höffe, 2006). Quando antepomos a lei ao bom senso e ficamos com a lei, é sinal de que já perdemos a noção escolar de que “o direito é uma reta”. Hoje, o Brasil não-adormecido está com vergonha do antidireito praticado pelos mecanismos absolutistas da injustiça pública. Da forma como está constituído, o Supremo Tribunal Federal aplica-se em prol de um supremo e imoral antidireito e ao desserviço da República.
Bibliografia
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
FILHO, Roberto Lyra. O que é direito. 17ª edição, 7ª reimpressão. São Paulo : Brasiliense, 2002.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
HOFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México : Fondo de Cultura Económica, 2000.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998.
LASSALLE, F. Que é uma Constituição. 2. ed. São Paulo: Kairós, 1985.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte : Del Rey, 2006.
SHAKESPEARE, William. Hamlet – Príncipe da Dinamarca. Rio de Janeiro : Objetiva, 2004.
WEBER, MAX. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília-DF : Editora Universidade de Brasília : São Paulo : Imprensa Oficial do Estado, 1999.
[1]Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo.
[2] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de (não)Direito: quando há negação da Justiça Social, da Democracia Popular, dos Direitos Humanos. Mestrado em Ciências Jurídicas. Paraná : Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – FUNDINOPI, 2005.
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