Quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018 - 22h20
TRANSMUTAÇÃO CONSTITUCIONAL NA CARTA POLÍTICA
A Natureza Jurídica do Antidireito
RESUMO: Se, com todos os resíduos autoritários resilientes, a Constituição Federal de 1988 representou uma mutação constitucional – frente ao ordenamento e ao entendimento jurídico que ainda vigoravam como recolhos do regime militar –, a partir de 2016 observamos um fenômeno em retrocesso: decresce a democracia e é superveniente o fascismo. A Transmutação Constitucional institui novo degrau de injustiça social ao que já se apelidou de antidireito (Filho, 2002).
Palavras-chave: Constituição; Transmutação Constitucional; Política; Espaço Público; democracia; fascismo.
Problematização e metodologia: O objetivo principal está na reflexão sobre a Constituição como caminho para a formação crítica do cidadão, nos moldes em que se garantia a Constituição Federal de 1988.Trata-se de uma pesquisa prospectiva; por isso, utilizamos uma metodologia de abordagem indutiva – partindo-se de uma problemática específica – concepção desconstrutivista do processo civilizatório – para se inferir um debate político e jurídico (constitucional). Como técnica de pesquisa utilizamos revisão bibliográfica, orientada por amostras da realidade nacional, pós-2016, que se encontram facilmente designadas na Internet e demais meios de comunicação.
Diante dos golpes institucionais, no mínimo desde o final do século XX (Bonavides, 2004), o Estado de Direito no Brasil é que se converte em espécie ameaçada de extinção, como “ato de ofício indefinido”[1].
Introdução
Como objeto central do cesarismo regressivo e repressivo (Gramsci, 2000), em processo de deslegitimação progressiva e resistente, a CF/88 passou a ser interpretada não mais como salvaguarda dos direitos humanos e da cidadania, mas sim do capital (mercado nacional e internacional) e dos assim denominados Grupos Hegemônicos de Poder. A esta articulação de poderes e de interesses chamaremos de Transmutação Constitucional.
Ocorre, porém, que – além da judicialização da política ter-se tornado politização do Judiciário – a Política (Arendt, 1991), como manifestação do “animal político”, ou seja, princípio e fim da sociabilidade (Aristóteles, 2001), foi aprisionada por forças estranhas à emancipação da cidadania e em desvio a valores e princípios consagrados constitucionalmente, a exemplo dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, da preservação dos recursos e das riquezas naturais e da própria pluralidade no espectro político – hoje dominado por discursos de ódio e de desqualificação dos adversários políticos à situação de inimigos de Estado.
Sob esse condado, pessoas e direitos que são abatidos pelo Estado Penal (Wacquant, 2003) em livre manuseio de um direito penal do inimigo: o animal político é transmutado em “homem, lobo do homem” (Jahobs, 2005)[2]. Assim, jovens dotados do direito de questionamento da ordem repressiva e do status quo se encontram subvertidos na condição de verdadeiros “presos políticos”: chancelados judicialmente pela tipologia da “associação criminosa”.
Mas, o que entendemos por Transmutação Constitucional? Para avançarmos, primeiro é preciso decodificar o termo simplificado de transmutação.
Apresentação do conceito
1. Transmutação: significa, em síntese, mudança de um determinado estado de coisas, seja objeto, elemento da natureza ou pessoa. Um exemplo natural da transmutação está presente na natureza, de forma química: elementos químicos instáveis que podem originar outras composições, como na fusão nucelar. Portanto, alteram-se as estruturas moleculares iniciais – e é este o sentido que guardaremos. Se para a ciência, a transmutação equivale ao novo, à descoberta, à inovação ou fabricação do inusitado, para o direito, em revés, importa na manipulação, mutilação ou perda do sentido originário e que lhe conferia substancialidade.
2. Não se trata de um empréstimo de categorias das ciências naturais, como suporte epistemológico às ciências sociais. Empregamos aqui como analogia. Aliás, um dos recursos previamente definidos no ordenamento jurídico nacional, quando em face da lacuna da lei. Neste intento, não construiremos Leis Sociais (Durkheim, 1999), a exemplo do funcionalismo e sua proposição inicial derivada de uma Física Social (Comte, 1990).
3. Para dar continuidade, vejamos o que entendemos, de acordo com a natureza política, por Transmutação Constitucional: Sumariamente, implica no retraimento da democratização constitucional em virtude do aprofundamento do fascismo político. O marco decisivo de sua entrada no cenário nacional é o impeachment de 2016. A terceirização das relações de trabalho (uberização) nas atividades-fim, a reforma (anti)capitalista de direitos (reforma trabalhista), as investidas para se aniquilar a previdência pública, o descompromisso com as contas públicas (anulação das reservas cambiais), o descaso frente aos crimes ambientais, a criação de dificuldades no combate ao trabalho escravo, a desnacionalização do Pré-sal, o agravamento da insegurança pública – em todo o país – e a insofismável degradação da condição prisional (quando os presos demonstram ter mais consciência institucional do que os poderes investidos)[3], a tolerância frente aos crimes de ódio racial e social, são apenas alguns dos fatores que atormentam e abolem o Espírito da Lei Constitucional erigido em 1988. As ações nos três poderes, se e quando ocorrem, não sinalizam para a diminuição das agruras da miséria social (acachapante), pois, ao contrário, apontam para uma irrefreável concentração de renda e para a pobreza como forma de dominação[4].
4. Desde o Preâmbulo da CF/88 é notável o conteúdo libertário, de emancipação e de aprofundamento da democracia no livre trânsito das divergências ideológicas compatíveis com a Política: o espaço público em que reina o animal político. Com o retrocesso político-jurídico, vale dizer de toda a condição humana, perde-se do prisma constitucional a referência de que a democracia obedece à crença na perfectibilidade. Com o que igualmente reflui o amplo e complexo processo civilizatório: diante do fascínio pelo fascismo, nas ruas, nas mídias e nos poderes, o aprofundamento democrático não é mais viável, nem requerido.
Assim, entendemos que não há Política – que não se confunde com Maquiavel (1979) – sem que haja a prospecção da luta política resultando na Luta pelo Direito (Ihering, 2002) e que, portanto, a Transmutação Constitucional serve a outros fins que não os da emancipação, democratização e alargamento da cidadania.Não há democracia ativa (Benevides, 1991) sem proposição e aferimento de demandas políticas e sem a propositura legítima pela participação em proveito de direitos, liberdade e garantias. A natureza jurídica da Transmutação Constitucional a que estamos submetidos, portanto, não é sinalizada pela dominação racional-legal (Weber, 1979), não é pressuposto de que o Estado de Direito é preferível – mesmo com falhas estruturais – à violência desorganizada. Mas sim, a institucionalização de domínio marcado pelo martírio individual e social: domínio, não dominação.
DA NATUREZA JURÍDICA
A natureza jurídica da Transmutação Constitucional é a do criacionismo constitucional – ou involução político-jurídica. Equipara-se o direito ao uso/excessivo da coerção e dos meios de exceção. O primeiro aspecto a se ressaltar é que se trata de um momento político-jurídico regressivo em termos de direitos e de garantias constitucionais; o segundo elemento, já apontado, é que se caracteriza pelo uso crescente da força (policial, de forma geral) e da criminalização das relações sociais – daí o sentido de ser repressivo. A referência ao cesarismo compacta com a definição de Antonio Gramsci (2000), quanto ao uso/excessivo dos meios de coerção e de exceção, a fim de se assegurar (ou expandir) o capital conquistado e o meios de poder necessários para este controle. O mais claro emprego dos meios de exceção está na mitigação dos obstáculos constitucionais oferecidos, por exemplo, ao ativismo judicial. Especialmente em matéria penal. Portanto, este criacionismo constitucional é de natureza involutiva, retroativa à própria Constituição Federal de 1988. Também se entende por criacionismo constitucional a ousadia – em descarte ao Poder Constituinte Originário – de se interpretar os preceitos constitucionais (adotados a partir de 1988) de modo contrário, antagônico, contraditório e excludente. Esta tipologia de Transmutação é oposta, contrária (em função do quadro ideológico que representa a partir de 2016), ao sentido evolucionista, como se tem presente no caso das gerações de direitos humanos[5]. Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância (violência política que acarreta convulsão social), antecipando-se à negação presente da dignidade humana, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os polos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) – a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro: não estamos mais em um jogo político, deixamos o campo democrático, nem as contendas originadas da luta de classes podem ser absorvidas pelo Judiciário na aplicação do direito. A natureza jurídica se completa – ainda mais se vista como ato de mero criacionismo – com a excludente de direitos e de garantias constitucionais resguardadas por meio de cláusulas pétreas. Como analogia jurídica (ou antinomia) pode-se alegar, por fim, que a ironia política foi substituída pelo cinismo jurídico: a analogia que se empobrece como paródia de si mesma[6].
Considerações finais (inconclusivas, porque é um processo inicial)
É inconcluso o pensamento, uma vez que, a trajetória da reversão constitucional – em que pesem os abalos acometidos – está apenas em sua fase inicial. Portanto, tanto pode avançar quanto refluir. A cidadania que se operou, ainda que incerta e imprecisa em 1988, transitava pelo ideário de que o direito e, especialmente, a Constituição – como Carta Política que serve ao direito que emancipa do jugo do poder e do capital – tinham uma rota identificada.
Um típico caminho que poderia ser muito bem alinhado ao pluralismo em construção na hermenêutica constitucional em que o povo é o legítimo intérprete dos preceitos legais e éticos (Häberle, 2008). Porém, a partir de 2016, o barco tomou outra deriva e o povo deixou de ser o timoneiro – efetivamente, substancialmente – da navegação no mapa do direito civilizatório que se procurava implementar no país.
Por fim, como espécie de heresia institucional, a Transmutação Constitucional, a partir do próprio nome, configura-se como a alteração da Carta Magna, que mesmo pelas vias regulares, chamadas legais, incide de encontro à ideia e aos valores pregados pela própria Constituição (incluso União), no caput de seu Artigo 1o: "[...] constitui-se em um Estado democrático de direito [...]". Não mais. E com o retraimento da Política se esvai também o húmus vital da Carta Política[7].
Este fenômeno se caracteriza, ainda e principalmente, pelos (re)cortes de direitos que deveriam ser inatingíveis e irrevogáveis, pois são aqueles fundamentais, que podem sim ser modificados, mas, neste caso, ampliados, nunca simplesmente reduzidos ou aniquilados.
Um dos exemplos apontados é o da Reforma da Previdência, ou mesmo as “Novas” Leis Trabalhistas[8], que escusando uma ou outra mudança, "é a mera revogação de direitos a cada artigo": a serem pagos pelos assalariados. Neste viés, talvez em simples e claro resumo deste fenômeno, cabe dizer apenas: a Transmutação Constitucional é mera remoção oligárquica de direitos fundamentais.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo : Martins Fontes, 2001.
BENEVIDES, M. V. de M. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo : Ática, 1991.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
COMTE, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. São Paulo : Martins Fontes, 1990.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1999b.
FILHO, Roberto Lyra. O que é direito. 17ª edição, 7ª reimpressão. São Paulo : Brasiliense, 2002.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
HABERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Madrid : Tecnos, 2008.
IHERING, Von Rudolf. A luta pelo direito. São Paulo : Martin Claret, 2002.
JAHOBS, Günther& MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe - Maquiavel: curso de introdução à ciência política. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 1979.
WACQUANT, Loïc.Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
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Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política)
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Vinícius Alves Scherch
Mestrando em Ciências Jurídicas - UENP
Universidade Estadual do Norte do Paraná
Jacarezinho - PR
Jéssica Maria Frocel Holanda Sales
Acadêmica do 3° período do Curso de Direito - UNIRON –
União das Escolas Superiores de Rondônia.
Porto Velho RO
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[1]http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2018/01/1952105-moro-condenou-lula-por-ato-de-oficio-indeterminado-ou-seja-nao-existente.shtml.
[2]http://www.gentedeopiniao.com.br/noticia/direito-penal-do-inimigo-por-vinicio-carrilho-martinez/177217.
[3]http://paranaportal.uol.com.br/cidades/presos-do-pr-enviam-carta-denuncia-para-carmen-lucia-padroes-medievais-da-ditadura/.
[5]Veja-se que, em alguns pontos, o evolucionismo jurídico ainda se manifesta de forma dialética, isto é, como superação e não superposição ou simples aniquilação de direitos. É o que verificamos na ultrapassagem do próprio modelo privatista presente na origem do Estado de Direito. Antes limitado aos direitos fundamentais individuais (século XIX), já em meados do século XX, o Estado de Direito teve de se descortinar aos direitos individuais homogêneos, que, obviamente, não se limitam aos domínios do indivíduo isolado em domínio de suas propriedades.
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de