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Vinício Carrilho

Alice no país da política


Alice no país da política - Gente de Opinião

Alice é uma menina de 15 anos, esperta, inteligente, criativa, curiosa, como a maioria dos jovens de sua idade. Alice não perde aula, tem as lições em dia, com muito capricho.

Sendo como é, Alice, belo dia perguntou ao professor de história ou de sociologia, ou de ciências, não nos lembramos bem, o que é Ciência.

­­– E o que é Ciência, pra você? – perguntou de volta o professor.

Alice disse-lhe que era algo como o que fazem médicos, engenheiros, cientistas de laboratório, ou até alguns professores. O professor respondeu que estava meio certo.

Alice ficou um pouco incomodada. Meio certo era uma nota 5. Não, o diálogo não valia uma nota. Mas para ela, estar meio certo era insuficiente, mesmo sem nota do professor. A nota ela estava atribuindo a ela mesma.

– E por que está meio errado? – retrucou Alice

O professor lhe disse que todos os médicos, engenheiros, outros professores são formados, ensinados, com base em suas ciências específicas: o professor de sociologia, por exemplo, tem a sua formação, e as formas de promover suas investigações por meio das Ciências Sociais e, ao mesmo tempo, das Ciências da Educação. O médico tem muitas ciências em suas aulas, principalmente as ciências da natureza.

Mas, concluiu o professor da Alice: “nem todos fazem Ciência em seu trabalho. O que eles têm é uma racionalidade desenvolvida em suas áreas. Por muitas razões, até mesmo pela sobrecarga de trabalho e a baixa remuneração, a maioria desenvolve muito mais um lado, um perfil técnico, em seu dia a dia de trabalho.

Para fazer Ciência, é preciso mais atenção a uma metodologia (ou várias), investigação, pesquisa, e isso demanda muito tempo. O que muitos não têm. Podem ser ótimos profissionais, “pensar cientificamente”, mas nem sempre conseguem se dedicar às pesquisas originais – e Ciência requer duas questões essenciais: originalidade na forma de ver um problema ou encontrar um “tema, problema, original”. E pensamento crítico, não apenas reativo diante do que se está investigando”.

O professor, com uma certa empolgação que aparecia sempre quando encontrava interlocutores como Alice, continuou: “Faz Ciência quem vai além do óbvio, daquilo que se percebe mais facilmente. Há fatos da realidade e interpretações dos fatos da realidade. Há alguns que, não pensando de forma científica, se apegam a interpretações superficiais. Não ouvimos da boca de médicos, há pouco tempo, que um remédio para protozoários funcionava para um vírus porque seus pacientes usaram e não faleceram? Não havia método! não havia um olhar científico! Em alguns casos, a Ciência era até mesmo deixada de lado em detrimento de uma ideologia...”.

Já pensativo e percebendo que precisava concluir, o professor de Alice disse: “Olha, Alice. Bom seria se todos que se formaram pela Ciência, mesmo não atuando como cientistas, mantivessem uma curiosidade e cautela científica. O mundo não precisa ser feito somente de cientistas, mas o mundo seria melhor se todos tivessem uma forma de pensar mais científica”.

Alice ficou interessada. Ainda que para uma ou outra palavra, os significados ainda estivessem incompletos para uma menina de 15 anos, ela parecia acompanhar bem a explicação. Mas sua mente ia além: a vivência dela, nos tempos e espaços pelos quais passava, inevitavelmente, a levaram a novas inquietações.

Ela emendou, então, outra pergunta: “Então, político não faz do seu trabalho uma Ciência? Aliás, muitas vezes eles não têm crítica nenhuma e a originalidade também é bem precária. Isso está certo assim? Alguns dizem que são políticos profissionais ou corruptos ...”. lamentou Alice, por fim.

Nesse ponto o professor é que ficou curioso ao perceber que Alice havia ido muito longe, e lhe perguntou: “Você pensou isso agora ou ouviu falarem?”. Alice lhe disse que ouviu um pouco aqui, outro pouco ali, e que foi juntando tudo.

Então, o professor aproveitou a deixa e foi dividindo o problema da política em partes menores para facilitar a compreensão da menina. E lhe disse, resumidamente: “Bom Alice, em primeiro lugar, política não é profissão. Todo ser humano é político por definição – a política faz de nós o que somos. Em segundo lugar, nem todos são corruptos – alguns são e muito, outros procuram ser honestos. Aliás, corrupção e política não combinam, porque corrupção é crime e política é a essência do ser humano. Será que todo ser humano é corrupto, Alice? Não né! Em terceiro lugar, há pesquisadores, professores e cientistas que se dedicam a estudar a política de uma maneira científica. São chamados de Cientistas Políticos.

Curiosamente, alguns desses vão parar na atividade política, ocupam algum cargo ou até são eleitos para funções tipicamente políticas, como vereadores. Aí, neste caso, vão descobrir tudo o que você me perguntou: há corrupção, como eles lidam com isso? Quais são as ideias que irão encontrar lá na Câmara de Vereadores, por exemplo? Todos os vereadores têm profissão definida ou alguns dos vereadores vivem fazendo esse tipo de política? Se são (ou eram) cientistas e agora mergulharam nessa situação de coisas, será que ainda conseguem fazer alguma investigação, pesquisa, com critérios e métodos mais claros ou apenas vão se reduzir às atividades da luta que a política exige?

Viu Alice, tem uma porção de coisas que se juntam aqui, a formação do Cientista Político que acabou na Câmara de Vereadores, enfrentando pensamentos que muitas vezes negam a própria Ciência – lembra da negação da vacinação? Pois é... – e tendo que se esforçar para conversar com o povo, convencer o povo, de que suas ideias são melhores do que outras. Outro dia Alice, a gente volta a isso, mas entre a Ciência e a negação da Ciência, ainda há muitas coisas”.

Pelo que sabemos, Alice ficou ainda mais encantada, pois, rapidamente, conseguiu separar ideologia de Ciência, senso comum do Bom Senso, panfletagem (dos políticos) de uma militância mais séria. Aqui para nós, que não vimos esse diálogo entre ambos, que só ouvimos dizer, dá para imaginar que Alice viverá esse sonho por muito tempo – e, quem sabe um dia, torne-se ela uma mulher política, empenhada em fazer mais Ciência (defensora que é da vacinação, especialmente infantil) e lutar criticamente contra a corrupção generalizada pelo país.

E não estamos falando dela ser política, no sentido reduzido da palavra como uma profissão ou uma função. Estamos falando de alguém exercer sua cidadania, de forma mais plena, tendo a política (e a Ciência), como um dos alicerces. Seja o que for, futuramente, é válido pensar que Alice será ótima profissional, mesmo se quiser um dia ser assessora de políticos, vereadora. Ou mesmo sendo física ou bióloga, Alice já sabe que terá o seu agir político. Quem sabe até se torne uma advogada de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores.

Aliás, hoje (06/10/2024: eleições municipais), Alice fez questão de acompanhar seu pai até à votação. Alice só poderá votar em 2026, porém, carregando um livro do nosso Patrono da Educação, Paulo Freire (“Política e Educação”), Alice demonstra que política e Ciência são feitas desde cedo, quase desde o berço – como diziam os antigos apaixonados pela lógica, pelo conhecimento, pela vida com um pouco menos de doidices.

Neste momento, Alice não tem um partido político – apesar de tomar partido toda hora, em casa, na escola – e talvez escolha uma tese, um programa político muito em breve. O que já sabemos, sempre foi precoce, é que é uma jovem apaixonada pelo meio ambiente, é contra as guerras, vive indignada com a fome e a miséria, detesta populistas hipócritas e corruptos, machistas, abomina racistas.

Podemos imaginar que, em 2026, Alice votará em campanhas ligadas com isso que atrai sua atenção desde criança. E nós podemos supor, também, que Alice é um aceno para o futuro, para uma vida coletiva muito melhor, banhada de Processo Civilizatório, pautado por pessoas igualmente melhores.

Esse é o sonho de Alice – neste “Pais da Política” – e é a nossa Utopia. Sem esperança, sem Utopia, e sem sabedoria (Bom Senso) que nos guie, nada é possível. Alice sabe disso, discorre todos os dias sobre tais questões – a diferença é que a linguagem dela é muito mais inflamada, “cheia de vida” e de coragem – como é natural nos jovens bem educados e conscientes do seu papel social, no Brasil e no Planeta.

Por fim, de nossa parte, concluímos com a simples observação de que, para Alice, trata-se de uma “lógica política” – até a lógica pode e deve ser politizada, afinal, a mudança (dialética do enfrentamento) vem daí – da insatisfação com a realidade atormentada (a tese dominante).

A falta de lógica, nem é preciso dizer, é um desafio não só político, mas para um conhecer e um agir que vá além do senso comum, e que, apesar de advir da percepção da própria realidade, a nega. A lógica política é, assim, um caminho para uma leitura mais crítica da realidade e para uma ação que vá além das percepções mais imediatas.

Alice, sempre atenta ao mundo e consigo mesma, já projeta seu aprendizado – o que chamamos de Autoeducação política. Conhece perfeitamente suas limitações, da idade, do que já compreende do mundo, e, exatamente por isso, investe com curiosidade no aprendizado paulatino e rotineiro (dia após dia, sempre que tem um tempo livre).

Um dia, leu uma citação no computador do professor de sociologia e disse pra ele: “– Entendi partes disso, mas prometo que muito em breve vou compreender totalmente”. A citação era essa aqui:

Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionantes (Freire, 2021, p. 27)[1].

       

Essa é a Alice!

Alice também nos contou que, até meados do ano que vem terá lido alguns livros iniciantes que comprou em sebo. Na sua maioria, os livros de Alice são comprados em sebo, usados, pois ela acredita na circulação das obras, no seu segundo significado, quando a posse troca de mãos. Alice nos contou, compartilhou, parte das suas novas aquisições – e são basicamente esses livros:

                 RIBEIRO, João Ubaldo. Política. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

                 PRELOT, Marcel. A Ciência Política. Difusão Europeia do Livro: São Paulo , 1964.

 

E ainda se colocou o desafio de ler mais um, em espanhol:

                 COLE, G.D.H. La organización política: doctrinas y formas. México, D.F.: Fondo de Cultura Economica, 1987.

 

Alguém duvida?



[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2021. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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