Terça-feira, 8 de outubro de 2024 - 11h42
Os
tempos atuais, que também podem revitalizar lemas sobre o período histórico do
nazismo alemão, como “Tempos sombrios”, trazem complexidades, contradições,
negações, antagonismos tanto antigos quanto os chamados pós-modernos. Há
problemas tão antigos quanto a história do capital permite encontrar, outros
são resquícios do “pensamento escravista” no Brasil – trabalho escravo e
racismo – e muitos já acenam para o que talvez seja o cerne do século XXI – diferenciando-o
de tudo o que já vimos: a extrema fragmentação social, o nonsense programado
para “normalizar” comportamentos antissociais e uma mudança no eixo econômico
da expropriação humana, algo que o capitalismo digital reinventou do passado
renascentista, os denominados “servos voluntários” (La Boetie, 1986).
Outras
palavras
A
economia (como condições objetivas) está para a política (conjuntura,
superestrutura, institucionalidades ou o nome que se dê), assim como a
linguagem está para o Humano.
No
Brasil, vigem em pleno vigor “formações econômicas pré-capitalistas” (Marx, 1991),
como a exploração do trabalho análogo à escravidão, reverberando-se em
senhorios, patriarcados provincianos, coronelismos de todos os matizes
políticos, e tudo isso segue em comunhão com o capitalismo digital – com a
exponenciação das redes antissociais, vícios sociais em jogos de apostas
configurados para a derrota, monetização do nonsense pelas mesmas redes
antissociais.
A
economia digital (Marçal, gabinete do ódio) está para a digitalização da vida
social (milhões de influencers só no Brasil), assim como a vida pública está
para a digitalização da política.
Temos
que entender esses códigos, para dominá-los, colocá-los a nosso
favor. Esse domínio tanto precisa ser técnico, teórico, quanto prático,
pragmático, como militância política digital. Está mais do que evidente o
fato de que a arena política é digital. Não está mais nas ruas. É por
esse caminho que transitam a individualidade (x o individualismo), a luta
política (X o escapismo), a consciência (X a mansidão). E é por isso que vemos
uma autonomia (consumismo) descolada da emancipação (consciência social, de
classe, práxis).
O
efeito Marçal nas eleições de 2024 foi apenas um sinal do que virá pela
frente. Por isso, ou aprendemos isso rapidamente ou seremos derrotados,
como fomos no século XX – frente à Sociedade do espetáculo (Collor e que tais).
Uma
teoria do século XXI
A
digitalização da sociedade trouxe transformações profundas tanto no campo
econômico quanto nas dinâmicas políticas. A análise do historiador João Cezar
de Castro Rocha destaca a institucionalização da extrema-direita no Brasil,
agora menos dependente da figura de Jair Bolsonaro. Esse movimento, segundo
Rocha, implica uma estratégia mais ampla e duradoura (CartaCapital, 2024). Tal
cenário ecoa a análise de Shoshana Zuboff sobre o capitalismo de vigilância, um
modelo que transforma dados e vigilância em ferramentas de controle social
invisível (Zuboff, 2021). Neste sentido, segue a linha da Sociedade de Controle
(Deleuze, 1992) que, na lógica da digitalização, suplantou os sistemas
tradicionais de controle social, como o panóptico substituído pelo banótico
(Bauman, 2013).
Zuboff
descreve como o capitalismo de vigilância captura dados para moldar comportamentos
e consolidar um poder silencioso e invasivo (Zuboff, 2021). Rocha, por sua vez,
aponta que a extrema-direita está utilizando esse aparato digital para expandir
sua influência, tornando-se uma força presente nas instituições brasileiras (CartaCapital,
2024). O Partido Liberal (PL), de Bolsonaro, exemplifica essa dinâmica ao
aumentar seu número de prefeituras, sinalizando um novo capítulo para essa
corrente política.
Nesse
contexto, Paulo Marçal surge como uma figura representativa dessa transição.
Conhecido por seu estilo provocador, Marçal explora as redes sociais para
ampliar o alcance de sua mensagem extremista, servindo como uma ponte entre o
ativismo digital e a institucionalização do poder. Marçal evidencia como a
extrema-direita usa o ambiente digital para amplificar discursos e mobilizar
apoio, manipulando a estrutura de vigilância que Zuboff critica. Apesar de ter
ficado fora do segundo turno em São Paulo, Marçal teve uma votação expressiva,
pois, o atual prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes (MDB), foi o mais
votado, obtendo 29,48% dos votos, o que representa um total de 1.801.139, com
todas as urnas apuradas. Em segundo lugar, ficou Guilherme Boulos, candidato do
PSOL, com 29,07% dos votos, somando 1.776.127. Pablo Marçal teve 28,14% dos
votos, totalizando 1.719.274, uma diferença de 56,8 mil votos em relação a
Boulos.
Da
mesma forma que o capitalismo de vigilância reconfigura o espaço público para
atender a interesses privados, impactando-se a liberdade e a autonomia dos indivíduos
(Zuboff, 2021), a extrema-direita busca colonizar as estruturas do Estado para
garantir sua influência no longo prazo, seguindo um modelo próximo ao de Viktor
Orbán, na Hungria (CartaCapital, 2024).
Marçal,
com sua popularidade digital, contribui para essa ocupação, legitimando
discursos de intolerância e normalizando ideias autoritárias. Ele atua como um
vetor da extrema-direita para que suas ideias se infiltrem nas instituições, o
que permite aos extremistas moldar a estrutura política e limitar o pluralismo
democrático. Rocha alerta que esse processo, se bem-sucedido, pode levar a
alterações no Supremo Tribunal Federal, tornando-o uma ferramenta de controle,
tal como aconteceu com a independência judicial na Hungria sob Orbán
(CartaCapital, 2024).
Zuboff,
nesse sentido, discute uma falsa autonomia no ambiente digital, onde os
usuários são manipulados pelas plataformas sob a promessa de liberdade e
conveniência (Zuboff, 2021). Essa ideia pode ser transferida para o Brasil,
onde a extrema-direita descolou a autonomia individual da emancipação coletiva,
criando um controle disfarçado de liberdade, pois, no entanto, o que está em
jogo é que essa liberdade aparente pode ser moldada e manipulada para servir a
uma agenda específica. Assim, enquanto as pessoas acreditam estar agindo
livremente, elas podem, na verdade, estar reforçando sistemas que limitam a
liberdade coletiva. Ou seja, as escolhas são livres apenas dentro de limites
estabelecidos que beneficiam uma estrutura de poder autocrático e expansinoista.
Marçal
exemplifica esse modelo ao incentivar seus seguidores a exercerem uma
“autonomia” ilusória, enquanto reforça a influência de uma agenda política
restritiva e autoritária. Essa falsa autonomia, como Zuboff adverte, pode levar
à complacência e à aceitação de formas sutis de controle autoritário e abusivo (Zuboff,
2021).
Zuboff
destaca a importância de desenvolver uma consciência digital que permita aos
cidadãos resistir às ameaças à democracia e ao espaço público e, desse modo,
compreender os códigos da economia digital é essencial para enfrentar o
autoritarismo institucionalizado. Posto que, a única maneira de combater o
capitalismo de vigilância é por meio de uma resistência fundamentada em uma
consciência crítica (Zuboff, 2021).
Marçal ilustra como a extrema-direita está ciente desse poder da cultura digital (subcultura, muitas vezes iletrada), e utiliza essa percepção para criar uma base de apoio sólida e mobilizada. A militância digital, para além das redes antissociais, torna-se necessária para enfrentar essa nova face do autoritarismo, que explora o capitalismo de vigilância para expandir seu alcance e consolidar seu controle.
Um
verde-amarelismo funesto
Desse
modo, compreende-se que o ecossistema digital é a intersecção que mediatiza as
estratégias de subversão das multidões confusas. Aquelas mesmas que confundem
liberdade com ignorância e racismo, agora, propensas ao discurso manipulador,
tendem a subverter as subjetividades que florescem nessa época, criando
narrativas de uma espécie de família patriarcal que representa valores
obsoletos de outro momento da história humana e notoriamente brasileira.
Então,
como compreender essas duas décadas de século XXI?
Aqui,
pode-se visualizar como um “vácuo na história”. Um momento caracterizado por
uma balança que tende a pender a partir das batalhas traçadas no mundo físico e
on-line. As compreensões de gênero e de orientação sexual, da emancipação da
mulher, sobretudo da descentralização da formação social a partir da
perspectiva do homem branco e dominante, das lutas antirracistas e das lutas
operárias e camponesas, têm sido motivo de disputa entre a ascensão da extrema
direita, com aqueles que lutam por um mundo democrático, livre e prospero.
Como
resistir os mecanismos que tendem a objetivar os processos de emancipação do
sujeito?
Sobretudo
quando essas estruturas (algoritmos digitais) são concebidas para prever o
comportamento humano agora ou mais tarde, e se, concomitantemente, seu
exercício é desconhecido por aqueles que utilizam?
É
preciso estar presente no século XXI de modo circunspecto, utilizando uma
cosmovisão que permita o situar-se na história como sujeito de direitos, sujeito
do conhecimento e, portanto, como sujeito histórico, que seja capaz de
compreender o que acontece no cenário político, social, real e digital.
Até
quando essa balança irá pender é desconhecido. Talvez essa binariedade continue,
marcando-se o desenrolar da história humana por muito tempo e constituindo
oposições e negações reinantes entre um Brasil moderno e o pior do arcaísmo
senhorial (escravismo reincidente, racismo).
Porém,
como elaborar a si mesmo diante dessas batalhas externas?
A
cosmovisão é importante neste momento: compreender a natureza da própria
realidade, compreendendo-se como sujeito de direitos, desenvolvendo-se
tecnologias, ou manejando-se as já existentes, que permitam cuidado de si, dos
demais, da sociedade como um todo, sobretudo aquelas questões intrínsecas que
tendem a ser manipuladas e sujeitadas pelas relações de poder que movem e são
alimentadas pela atual Sociedade de Controle – em sua face de Capitalismo de
dados e digitalização da política.
Portanto, o fortalecimento da extrema-direita institucionalizada no Brasil representa um desafio iminente à democracia. Combinando-se a economia digital e a política, a extrema-direita utiliza o capitalismo de vigilância para ampliar seu poder e moldar a sociedade. Zuboff alerta que resistir a essas forças exige uma compreensão profunda das novas dinâmicas digitais, ou seja, é imperativo dominar esses códigos antes que eles se tornem ferramentas definitivas de controle, como alertado por Rocha. O combate à institucionalização desse autoritarismo demanda uma militância digital ativa e consciente, pois, ou aprendemos a dominar esses códigos, ou seremos dominados por eles.
Breves
instigações finais
Economia
digital e suas máximas, é essa a lição de ontem – que não fizemos.
A
Política está em regime de urgência. A polis está virando (já virou) lugar da
irracionalidade, insanidade social.
São
tempos sombrios do barbarismo digital.
E, então, qual é a lição de hoje?
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida.
Rio de Janeiro : Zahar, 2013.
CartaCapital.
De tuiteira a institucional: como 2026 pode consagrar a extrema-direita sem
Bolsonaro. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/de-tuiteira-a-institucional-como-2026-pode-consagrar-a-extrema-direita-sem-bolsonaro/.
Acesso em 7 de outubro de 2024.
DELEUZE,
Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1992.
LA
BOETIE. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Edições Antígona,
1986.
MARX,
Karl. Formações Econômicas
Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
Zuboff,
Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. São Paulo: Intrínseca.
2021.
O que o terrorista faz, primordialmente?Provoca terror - que se manifesta nos sentimentos primordiais, os mais antigos e soterrados da humanidade q
Os direitos fundamentais têm esse título porque são a base de outros direitos e das garantias necessárias (também fundamentais) à sua ocorrência, fr
Ensaio ideológico da burocracia
Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de
O Fascismo despolitiza - o Fascismo não politiza as massas
A Política somente se efetiva na “Festa da Democracia”, na Ágora, na Polis, na praça pública ocupada e lotada pelo povo – especialmente o povo pobre