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Vinício Carrilho

Mito do caramelo (1)


Vinício Carrilho Martinez - Gente de Opinião
Vinício Carrilho Martinez

          O mundo inteiro sabe que o caramelo é um bem cultural, uma conquista imaterial e um patrimônio genético da humanidade. O caramelo só ocorre no Brasil, não tem fabricação, nem máquina, nem formação social que o reproduza. Seriam cinco séculos (ou mais) e as mesmas ocorrências históricas, seguidas, repetidas continuamente, para que o caramelo pudesse ser replicado.

          O caramelo é aquele cãozinho sem raça definida, da cor de caramelo, que é sempre companhia fiel de uma família inteira – a maioria é de adotados por famílias pobres. Raramente vê um veterinário, raramente come ração especial, raramente sai das ruas. Seu lar costuma ser as praças públicas. O caramelo é sociável, socializado, praticamente inofensivo. É um animal público. Aliás, é mais público do que muitas autoridades que vagueiam em salas fechadas. O caramelo não tem dono, tem amigos.

          O caramelo não pode ser confundido com um cachorro vira-latas qualquer. O caramelo é a cor do Brasil, que não se confunde com o “amarelo canarinho” (menos ainda se tiver o selo CBF estampado). Não se confunde com um tipo qualquer de vira-latas porque o caramelo não tem a Síndrome do Vira-latas – esses vira-latas são ingratos, revoltados, alienados e sofridos na alma canina por não terem uma raça reconhecida nas organizações culturais internacionais. O vira-latas, bem mais arisco e estranho, vive achando que a ração do vizinho (normalmente um caramelo) é melhor do que a dele. E por isso arruma encrenca toda hora. Essa Síndrome de vira-latas não escolhe casas, famílias de cães, pequenos e grandes, para afetar. É o pior tipo de sarna para se coçar. O caramelo faz o que pode para evitar esse contágio louco, bravio.

          Também não podemos confundir o legítimo caramelo com um tipo qualquer de cachorro louco. Esses podem ser ou não vira-latas. Muitas vezes são adotados pelas famosas elites brasileiras, alguns nem existiriam se os laboratórios não tivessem inventado. Esse cachorro é louco porque insiste em sua “superioridade”, acentuada por uma arrogância bastante tola – então, se negam a tomar vacina. Esse cachorro louco morde até mesmo o dono: a mão que o alimenta.

          O caramelo vem de linhagens muito antigas, do nosso país, algumas trazidas de fora, vindas por vontade própria ou obrigadas. Alguns dos ascendentes do caramelo sofreram muitos maus tratos, outros simplesmente pereceram. Poucos foram os primeiros sobreviventes e para isso muitos tiveram que fugir de seus donos opressores.

          Os que sobreviveram ou que fugiram (e sobreviveram) foram se encontrando, acasalando, casando, se juntando em grupos e bandos e foram produzindo as primeiras linhas e cores do caramelo; esses que têm uma estatura mediana. Os estudiosos dizem que essa miscigenação até chegar no caramelo não foi bem assim, tão tranquila e consentida. Dizem que os avós do caramelo eram muito bravos e que perseguiam as fêmeas. Não duvido.

          Em todo caso, foi essa miscigenação que nos trouxe o caramelo, esse adorável ser socializado, um verdadeiro “animal político”, público, adorador das praças públicas. O caramelo é fiel às boas causas, tem gratidão e educação. Recebe sua educação ainda no berço, sem coices ou mordidas. Ninguém em sã consciência é capaz de xingar ou bater num caramelo legítimo – não tem como, é um cãozinho de moral superior.

          O caramelo deixou aquela história de transgressão, violação, perturbação para trás; é seguidor da maioridade social, política, moral. Ao longo da vida já teve que morder e se defender, mas cresceu numa cor firme e constante. O caramelo legítimo não é um cão caramelizado qualquer, sua coloração é uniforme, assim como sua lealdade à praça pública. Esse caramelizado, dizem os sociólogos das “raças brasileiras” (geneticamente não existe raça nenhuma), é um cão de cara lisa e más intenções – até criaram o Mito da cordialidade caramelizada para esse cão ardiloso, bastante traíra. Porém, essa é outra história.

          No começo de sua vida, o caramelo vivia correndo da carrocinha, levava no lombo todos os dias, eram os tempos em que o caramelo não sabia de nada. Mas, em algum momento, provavelmente depois de muita lombada, “o caramelo ousou saber”. E vivia latindo em todo lugar que fosse (e por essa causa ele brigava), muito alto, quanto mais arrumada a praça pública, mais alto ele latia: “Ouse saber!”.

          Os primeiros contadores de histórias dizem que o caramelo sobreviveu graças a um povo que viveu no Brasil: os pardos. Esse povo, chamado de pardo, também era resultado de muita miscigenação, não se reconhecia nesse negócio de “sangue azul”, “raça pura”, branquela, sem vida e nem cor. De fato, pode-se dizer que o caramelo e o povo pardo são sobreviventes e são a cara do povo brasileiro. Sem eira, bem beira, mas seguros de si, sabedores que ousam saber.

          O caramelo não é nenhum cão santo, que ninguém imagine que possa fazê-lo de bobo; apenas não é agressivo, até que precise se defender. Na sua longevidade, no meio da miscigenação e das contradições que o formaram, o caramelo não se esgueira, é um cão astuto, mas não é metido a esperto. Não dá golpes no seu grupo. É amigo de quem lhe é amigo. O que mais gosto é ouvir ele latindo: “Ouse saber! - Ouse saber””.

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[1] Ao contrário de antigamente, nos primórdios da humanidade, quando escreviam mitos para explicar algo que não compreendiam muito bem (como tentativa de racionalizar o desconhecido), hoje em dia as pessoas escrevem mitos para falar de algo que conhecem, mas preferem contar uma história com metáforas.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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