Sexta-feira, 23 de abril de 2021 - 08h49
Contar
história é também uma arte e um ofício. E cada pessoa, depois de alguns
“janeiros” nas costas, vai olhando pra trás e vê pelo retrovisor – a sua bela
história de vida, sempre recheada de acrescentos, de raios, de tempestades, de
encontros com onças, com cobras que engolem boi inteiro. E vê, afinal, que nada
de fenomenal o impediu de chegar com vida aonde chegou.
Dona Dova era moradora de lá do Rio Jamari, logo abaixo,
numa grota, onde atracava a balsa que, nos tempos de chuvas intensas, perdia a
serventia, pela cheia do rio. Dona Dova foi pegando fama por, ali mesmo, na sua
sala, ou em qualquer ponto da sua casa de madeira, atender a doentes que vinham
nas redes, dos garimpos e dos seringais.
Partos ela perdeu a conta. Querendo ou não, era com ela
que tudo se resolvia. Tinha, sempre em mente, um lampejo de fé, de azeites e de
chás, e assim conduzia as mais dificultosas situações. É como se diz -“o Deus
dos desvalidos é mais poderoso”.
Sargento Brasil era o chefe do destacamento da PM da Vila
de Ariquemes, lá pelos anos setenta e poucos. Só que ele não era somente
sargento. Era tudo: delegado, juiz, promotor – ele era a primeira instância e,
ao mesmo tempo, o supremo. Ai de quem o desobedecesse. Ai, Ai. A Vila foi
inchando de gente. Os colonos do INCRA, gaúchos, baianos, paranaenses,
catarinenses, gente de todo lado do país. O sargento e mais dois soldados davam
conta do recado e iam enquadrando os forasteiros no ritmo da sua lei.
Eu, como médico novo, também recém-chegado, dentro de um
improviso extraterreno, era requisitado por ele para fazer exames de corpo de
delito e necropsia, e ponto final. Mesmo não sendo servidor público, era tudo
na base da “ordem – são ordens” e obedece quem tem juízo. Coitado de mim. Nesse
entrevero, surgiu uma amizade perenizada até a sua morte. E uma enorme
consideração, dos dois lados.
Belchor era dentista prático. Junto comigo pegava a
estrada de chão, com chuva ou sol, todo sábado, para atendermos no Garimpo de
Massangana. Um trecho de 50 quilômetros, que se gastava até duas horas para
percorrer. Lá se ia para as casas dos primeiros colonos às margens da BR 421, e
para as dos seringueiros e garimpeiros entreverados nas capoeiras e pequenas
clareiras. Ele fazia o serviço por etapas. Primeiro a extração de todos os
dentes dos fregueses.
Ali mesmo, nos casebres. Metia o boticão.
Dava um tempo para cicatrizar as gengivas. Para a pessoa se acostumar a
mastigar sem dentes. Depois ele vinha com a “chapa”. A gente parava o carro,
Belchor gritava de longe: – “dona fulana!!!” Repetia duas a três, e lá vinha
ela correndo pelo carreador. “Bom dia, Seu Belchor”. Ele pedia – “abre a boca”.
Ela abria. Ele tirava do bolso a dentadura, dava uma limpava na camisa e
encaixava a “perereca”, como era chamada, na boca da freguesa e ia logo dizendo
– “tenha paciência, dói um pouco, mas a senhora vai se acostumar”.
Vou inventar um nome aqui. Aliás, nomes. Porque falar em manter reserva de índio, florestas nacionais ou parques é motivo para ser assassinado. O no
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