Segunda-feira, 11 de janeiro de 2021 - 14h07
Faz poucos dias recebi da autora cópia do artigo que segue abaixo.
Trata-se de publicação feita na Revista Eletrônica Inmediaciones (http://inmediaciones.org/la-combinacion-perfecta-pandemia-y-crisis-socio-economica-en-la-amazonia-boliviana/), de Santa Cruz de La Sierra, Bolívia. O artigo, de autoria da ilustre
historiadora boliviana María del Pilar Gamarra Téllez, foi publicado naquela
revista em 27 de dezembro de 2020. Há muito tempo, conheço a importante
contruibuição que por décadas a professora Gamarra tem prestado ao estudo da
Amazônia boliviana. Mais recentemente, estabeleci contato a a pesquisadora
pelos meios digitais. Natural do Norte Amazónico boliviano
(Rurrenabaque-departamento do Beni), a professora Gamarra é licenciada em
História pela Universidade Maior de San Andrés (UMSA - La Paz) e mestre em
História Andina (FLACSO-Sede Equador, 1996)). Exerceu a docência na UMSA, La
Paz de 1996-2008) onde atingiu o nível de Professora Titular. Exerceu diversos
cargos nas áreas de graduação e pós-graduação e pesquisa em instituições de
ensino superior bolivianas. É portadora de diversas dignidades honoríficas como
a Condecoração Bandeira do Beni, concedida pela Assembleia Legislativa
Departamental do Beni (Trinidad, 2020). Recentemente concluiu os siguintes
estudos: Amazonía boliviana Construcción
del espacio-territorio e identidad regional (1440-2000), Colección Amazonía, 140 años de historia (en
preparación de edición), Amazonía boliviana, Región y Estado,
Departamentalización y municipalización
(2017). El último Bosque, Mitos, cuentos
y leyendas para la lectura infantil (2014).
O artigo da professora Gamarra, que traduzi para o português será
publicado abaixo com sua permissão. Fornece uma consistente contribuição para
nossa compreensão de um momento da História da Bolívia, mais precisamente do
Noroeste Boliviano. Explora um lapso cronológico onde um daqueles círculos
viciosos, que de tempos em tempos assolam nossos países, se faz presente. Em
outras palavras um tempo onde a combinação dos efeitos da I Guerra Mundial, a
queda dos preços da borracha em razão da competição dos mercados fornecedores
asiáticos e os efeitos da gripe espanhola causou enormes prejuízos humanos e
materiais. Sempre repito que a História não se repete, mas de tempos em tempos
apresenta elementos de semelhança. Esse é o caso do estudo da professora Maria
del Pilar, onde a crise teve seu momento mais agudo entre 1917 e 1919. Lembra a
professora as semelhanças com as reações ao CORONAVIRUS-19, surgido em plena
recessão econômica da qual tentávamos sair, fragilizou ainda mais os esforços
de recuperação econômica de nossos países, espalhado a doença, a morte e o
medo. Vale a pena ser lido.
Combinação
perfeita: pandemia e crise socioeconômica na Amazônia boliviana.
Repercussões
na cidade de Riberalta (1917-1920)[1]
María del Pilar Gamarra Téllez / (Historiadora, CEPAAA-Portfólio Amazon)
Entre 1917 e
1919 a pandemia de gripe espanhola, também conhecida como febre espanhola,
catarro epidêmico, influenza ou “gripe”, atingiu a Bacia Amazônica. Nos estados
brasileiros de Rondônia e Mato grosso e na Região Amazônica do Noroeste da
Bolívia, adjacente ao Brasil, especialmente na província de Vaca Díez, no
departamento do Beni, a terrível doença se alastrou rapidamente. Em Vaca Díez,
os produtos da exploração da Hevea
brasilienses (seringa) e Castilla
ulei (caucho) ficaram armazenados aos milhares de quilos nos seringais.
Esses estoques de matéria-prima, estavam à espera de que houvesse a alta nos
preços e também a interrupção na difusão da pandemia, para serem
comercializados.
A rápida redução dos embarques de goma elástica, resultava de três eventos simultâneos. O primeiro foi a I Guerra Mundial, 1914-
[1] As
reportagens aqui consultadas provêm inteiramente do Semanário, “El Comercio”,
publicado em Riberalta entre os anos 1917-1919. Neste trabalho acompanhamos as
notícias veiculadas neste órgão de imprensa, portanto, certamente há muito mais
a se explorar sobre o assunto.
1918, que
provocou as restrições às exportações, através de uma Lista Negra de empresas
vinculadas ao comércio com a Alemanha. Os dois outros foram: gripe espanhola e
o influxo da produção das plantações de seringueiras do sudeste Asiático no
mercado internacional. De 1913 a 1914 as exportações, principalmente do
Arquipélago Malaio (Java, Sumatra e Bornéu) e Cochinchina, superaram as
necessidades globais das indústrias consumidoras de “látex”, na Europa e nos
Estados Unidos da América. A oferta de matéria prima aumentou em 1918, em razão
da assinatura do armistício no dia 11 de novembro em Compiègne, França. Contudo,
em 1919 o mercado Sul Americano de goma elástica estava em queda. Nem um único
quilo do produto foi vendido no Noroeste Boliviano. A crise foi generalizada,
de tal forma que a imprensa da época descrevia a situação com estas palavras:
“... A região se encontrava em um período
de pauperismo e muito em breve alcançaria
a miséria [...] Vivemos o pior dos
desastres econômicos.”[1]
[1] “La Gaceta
del Norte”, Riberalta, 5 de outubro de 1922, citado em: TÉLLEZ, María del Pilar
Gamarra. El Desarrollo Autónomo de la
Amazonía boliviana. Procesos socioeconómicos en la Frontera Pionera (1860-2002).
La Paz: Centro de Estudios para a América Andina e Amazônica (CEPAAA), 2012, 81.
Somava-se à situação
econômica a epidemia. As reportagens dos jornais: “El Eco del Beni”, “La Gaceta
del Norte”, “El Comercio”, “El Censor” e “La Unión”, entre outros, transmitiam preocupantes
notícias econômicas, políticas e sociais a seus leitores. Suas edições
acompanhavam as ações militares da I Guerra Mundial e davam conta, por um lado,
das mortes diárias, e por outro das normas de biossegurança a serem seguidas
para enfrentar a epidemia. Uma vez declarada a pandemia, o semanário “El
Comercio”, publicado na cidade de Riberalta (Beni-Bolívia), eixo econômico,
político e social do Noroeste, especificava aquelas medidas que os habitantes
deviam conhecer e cumprir. Como veremos a seguir, a semelhança com os atuais
padrões de biossegurança, devido à pandemia COVID-19, não pode deixar de nos causar
perplexidade.
Mas, como a
população enfrentou as crises simultâneas: sanitária e econômica? Nas páginas seguintes
tentaremos mostrar a urgência das políticas públicas para amenizar a crise
(sustentação econômica, emissão de títulos e acordos com o Brasil).
Exploraremos a posição visionária do empresariado vinculado ao negócio da
borracha diante dela, que se traduziu na busca de outros produtos para exportação,
entre eles a castanha do Pará ou do Brasil (Bertholletia
excelsa). Do mesmo modo, como foi a
resposta disciplinada da população à gripe espanhola, seguindo as instruções da
Junta Municipal para contê-la, no contexto de uma cidade com condições de
serviço, higiene e saneamento muito melhores que as outras da região e,
atrevo-me a dizer, então melhores que as atuais.
A cidade de Riberalta entre 1917-1920
Bela
orquídea das selvas do Noroeste da Bolívia [...] que passa o dia se olhando no espelho
do Manutata e cortejando o Beni [...] acariciada pelo sol, mimada pela lua,
cortejada pelo zéfiro, é a mais galante das cidades do Leste, Norte e Noroeste
do país.[1]
Não podemos
encontrar sobre Riberalta outra descrição, nem melhor e nem mais bela, do que a
de Rogers Becerra (1984). A pequena cidade do Noroeste Amazônico da Bolívia,
localizada em um planalto natural, a 30 metros acima do nível do rio (159
metros acima do nível do mar), está localizada no rio Beni em frente à sua
confluência com o rio Madre de Dios, em 11° graus, 0’00” latitude sul; 66°,
4’00” de longitude a oeste do meridiano de Greenwich. A cidade dinamizava a
economia de exportação regional através de um produto “não tradicional”; ou
seja, não exportava minérios, que era o mais significativo nas exportações da
Bolívia. Trata-se do comércio da goma elástica, sob cuja influência nela ocorreram
os avanços na tecnologia da modernidade europeia em serviços e saúde.[2]
Com uma infraestrutura pequena, mas eficiente, a urbe fornecia aos seus habitantes os serviços de água, iluminação à gás, telégrafo, educação e saúde. O quadro demográfico da cidade era composto por um mosaico de várias nacionalidades: árabes, turcos, alemães, suíços, italianos, espanhóis, franceses, norte-americanos, japoneses, chineses e latino-americanos. É que a economia da borracha, fermentada nas entranhas da Bacia da Amazônia Boliviana, exerceu atração sobre comerciantes, empresários, aventureiros e outros caçadores de fortunas. Adicione-se a esse quadro os grupos humanos originários da Amazônia, que aumentavam a paisagem de etnias e de multiculturalidade, característica única do Noroeste em relação ao restante do país até meados do século XX. Hoje, o fenômeno só é comparável à dinâmica populacional da próspera capital oriental da Bolívia, a cidade de Santa Cruz de la Sierra
[1] CASANOVA,
Rogers Becerra. El imperio del Caucho.
Perfil del Noroeste boliviano. Trinidad (BO): Imprenta y Librería
Renovación, 1984, 85.
[2] Em nota
extraída da correspondência de F. Duerr constante no “Boletín de la Unión Pan
Americana”, declara: “Depois de Manaus, não há lugar em toda a jornada que se
compare a Riberalta. Pela sua posição (refere-se à posição geográfica) e pela
(sic) grande atenção que os seus habitantes dedicam à saúde pública… ”.
Extraído de “El Noroeste de Cobija”, em “El Comercio”, Ano I, Riberalta, Beni
Bolívia, 18 de março de 1917, nº 40, 1 (19).
Trabalhadores indígenas de Cachuela Esperanza[1]
As populações indígenas, principalmente de descendência
Pano, Takana e Arawak, onde destacamos os Ese ejja, Araona, Cavineño, Pacaguara
e Chácobo, imprimiram na cultura ancestral do Noroeste a hoje quase
desaparecida identidade étnica ancestral amazônica. São herdeiras dos complexos
civilizatórios, dos quais pouco ou muito pouco se sabe, cujo habitat se alterou
durante mais de três séculos de colonização. Essas populações reforçavam e
impulsionavam o trabalho de extração do “látex” das seringueiras. Instalavam-se
no meio rural, seja nos espaços-territórios que definem o Noroeste, nos quase
cem centros extrativistas e produtivos, nos seringais ou nas próprias malocas
comunais.[2]
Os meticulosos relatórios da Honorável Junta Municipal de
Riberalta, relativos aos anos 1917, 1918 e 1919, mostram-nos o panorama da vida
quotidiana dos seus habitantes naquele triênio. Neles, consta a relação dos
impostos gerados para a Fazenda Municipal, pagos por botequins, armazéns, casas
comerciais (importadoras e exportadoras), hotéis, cassinos, restaurantes,
drogarias, farmácias, clubes, alfaiatarias, cabeleireiros, fábricas (água,
biscoitos, destilaria de álcool, etc.) e um Estanco de Tabaco. Tal variedade de
locais de comércio e entretenimento[3]
confirmam a dinâmica populacional, comercial, social e política da cidadela do
Noroeste.
Ao comércio e serviços a cargo de japoneses (pelo menos
30 súditos japoneses declaram possuir serviços), somam-se os comerciantes de
diferentes nacionalidades. Poderosos empresários e administradores de firmas
importadoras-exportadoras, com agencias na Europa ou nos Estados Unidos da
América, operavam na área urbana. Destes, os mais prestigiosos eram: a Casa
Braillard, Alfredo W. Barber e Cía., R. Wichtendahl e Cía, Zeller Villinger e
Cía., entre outros. A presença de subsidiárias de empresas de navegação como a Madeira
Mamoré Railway Company e a Amazon River Steam Navigation Company Limited, faziam
da cidade de Riberalta uma das mais cobiçadas, seja para viver no estilo e
costume europeu ou para aumentar fortunas.
A cidade possuía um matadouro público destinado ao abate
de gado, para consumo de carne, denominado "Camal"; um terminal
fluvial ou porto, onde atracavam diariamente mais de 30 barcos a vapor, além de
barcos rudimentares (canoas e balsas de tronco de madeiras); um templo
religioso em construção (hoje a catedral da cidade) e um teatro (instalado no
Hotel Continental), que logo se tornou o espaço do Cinema, oferecendo mais de
40 apresentações por ano (1918).
A administração pública estatal, era encabeçada pela
Delegação Nacional no Território de Colônias do Noroeste. Funcionou em
Riberalta oficialmente até 1915. Embora tivesse sua sede em Cobija-Bahía, atual
departamento de Pando, na realidade continuava a operar em Riberalta, da mesma
forma que o Vicariato Apostólico da Igreja Católica. A presença de uma
Guarnição de Fronteira e de uma Polícia local, bem como de um Tribunal de
Justiça, da Câmara de Freguesia e da Câmara Municipal completavam a gestão
pública nacional e municipal do período. As estâncias aduaneiras, que cobravam
os impostos de importação e exportação, estavam localizadas nas cidades
satélites da capital provincial de Vaca Díez: Villa Bella e na cidade de Cobija
(70% das receitas das exportações de borracha eram recolhida para o Tesouro
Nacional).
[1] BAULER, Emil
Rudolf. Photographs of Cachuela Esperança & Madeira River – 1908 – 1911.
The photographs were taken by the Swiss doctor Emil Rudolf Bauler (1881-1951),
who spent a few years in the Bolivian East 1908 and 1911. (Org) R. Villar,
2019.
[2] Em 1846, a
população indígena no departamento de Beni e Colônias (isto é, o Noroeste) era
estimada em 46.859 habitantes, representando 96,80% de um total de 48.406
habitantes (DALENCE, José María. Bosquejo estadístico de Bolivia. Chuquisaca,
1851, in GRIESHABER, Erwin P. Situations
in the definition of the Indian: Comparison of the Censuses of 1900-1950,
in Historia Boliviana V / I-2,
Cochabamba (1985) 65. Em 1900, totalizou 13.634 habitantes; ou seja, 41,43% do
total de 32.908 habitantes do Departamento e Território das Colônias. Tais
números devem ser observados com muito cuidado, pois, como aponta Grieshaber
(1985), os dados do Censo de 1900 foram baseados na população dos indígenas que
pagavam tributo, isto é, deixou de fora os nativos que viviam ainda nas
florestas (Ob. Cit., 1985: 58) Na Bolívia, a população indígena amazônica (de
Colônias) não era considerada parte constitutiva da sociedade oitocentista,
eram os "selvagens", canibais ou bárbaros, foi deixada de fora do
Censo.
[3] Mais de 30
bares ou botequins, 15 casas comerciais, 15 lojas de varejo, 2 hotéis, 3
cassinos, 8 restaurantes, 4 pensões, 5 sorveterias (de propriedade de
japoneses), 8 alfaiates, empresas de carpintaria (Arnold & Cía.) e
carpinteiros particulares. Além de 2 drogarias, 4 farmácias, 10 bilhares, 3
bares, 2 clubes (entre os mais prestigiados estava o Clube Alemão) e cantinas,
bem como 2 casinos. Junto com esses estabelecimentos registrava-se 8 fábricas
de cigarros (também nas mãos de japoneses), de telhas e tijolos, de gelo, duas
de água gasosa, biscoitos e confeitaria (propriedade de um chinês chamado
Achu), 3 padarias (que produziam produtos da panificação italiana e francesa),
2 fábricas de destilação de álcool, 3 lavanderias, entre outras.
Embarcação no
rio Beni[1]
A única agência bancária que funcionava na cidade pertencia
ao Banco da Nação Boliviana. Contudo, casas comerciais e a poderosa empresa gumífera
/ seringalista, a Casa Suárez, operavam como bancos, financiando atividades
comerciais e empresariais por meio de ordens de pagamento, contas e notas
promissórias contra bancos ingleses, como o Banco de Londres, ou outros, como o
Banco do Rio da Prata, com escritórios em Manaus e Pará (BR).[2]
Os correios, a cargo do Estado, recebiam e despachavam
correspondências locais, nacionais e internacionais, conectando a região com
países como Inglaterra, Espanha, França, Argentina, Brasil, Peru, Chile e
Estados Unidos da América do Norte. Estes países estabeleceram ligações postais
com a região. A exceção foi a Alemanha que, devido ao conflito armado e as
consequentes restrições feitas pelos poderes aliados, somente estabeleceu
comunicações postais após o armistício de 1918. A limpeza dos rios e a presença
de um estaleiro naval (a cargo de Benjamin Bowles), promoviam a atividade de
navegação, a mais significativa na região, que se expandia neste período.
Explica-se tal importância pela ausência de ferrovias e rodovias de longa
distância, exceto uma rodovia que cobre o curto trecho de Riberalta a Guayaramerín
(89 km de terra). As dificuldades de travessia de rios e riachos dificultavam o
escoamento nos precários caminhos rurais do período.[3]
A necessidade de firmar acordos e transações comerciais
com industrias e empresas dos países consumidores de goma elástica, que o
Noroeste amazônico fornecia, tornava necessária a presença de gestões
diplomáticas. Pelo menos sete legações consulares operavam na cidade no período
estudado. Estabelecidas no centro de milhares e milhares de quilômetros de
selva, serpenteados por inúmeros rios, as legações consulares confirmavam a
importância da localização da atividade gumífera no Noroeste. Assim, havia o
consulado do Reino da Espanha a cargo de seu súdito Dom Raimundo de Ávila; legação
diplomática que já existia em 1912 sob a forma de um vice-consulado. Havia
também um vice-consulado inglês, que em 1917 anunciou a chegada do Sr. George
Lyall, o primeiro vice-cônsul nomeado pelo governo inglês, em nome de Sua
Majestade George V, Rei da Grã-Bretanha e Imperador das Índias. A participação
ativa desse vice-cônsul, definiria as restrições para as exportações de goma
elástica para a Europa e os Estados Unidos da América do Norte, causadas pela
Primeira Guerra.
Da mesma forma, havia um agente consular da República
Francesa e o representante da legação diplomática da Alemanha. Com o último
país, as relações com a Bolívia foram rompidas, notícia que foi conhecida em
Riberalta por radiograma, de 21 de abril de 1917. Diferentemente, as repúblicas
vizinhas, como o Peru e a Colômbia, credenciavam suas representações
estrangeiras designando como cônsules ou vice-cônsules intelectuais e
empresários da época. Por exemplo, em 1918, o advogado e jornalista Plácido
Molina M. foi nomeado cônsul da Colômbia com residência na cidade de Riberalta.
A educação escolar era ministrada na “Escola Sucre” e na
“Escola Bolívar”, que contava com oito professores, cujas despesas de salários
e manutenção dos prédios eram custeadas pela Câmara Municipal. A demanda por
ensino superior e universitário era satisfeita apenas por aqueles que possuíam
meios, ou seja, a elite da sociedade do Noroeste, na Inglaterra, França ou
Barbados. Já nas concessões de terras que constituíam os seringais, o ensino era
promovido pelos patrões, ao qual os filhos dos seringueiros e de seus
administradores tinham acesso.
A presença significativa de profissionais, entre estes
ilustres advogados e intelectuais da época[4],
constituía, juntamente com os médicos e o eventual poderoso empresário, os
quadros políticos das candidaturas eletivas nacionais e locais. Com o pleno
domínio do Partido Liberal, no poder do Executivo Nacional desde 1899, a
disputa eleitoral na província estava muito acirrada. Nas eleições a serem realizadas
para a constituição do Executivo Municipal para o período 1917-1921, estimou-se
que a Província de Vaca Díez, com as suas duas secções provinciais
(Guayaramerín e Villa Bella), poderia atingir um mínimo de 1800 votos. O
pequeno número de sufragistas indica que o eleitorado era quase comparável à população
estrangeira. Contribuía também para esse fenômeno o fato que adultos analfabetos
e mulheres não possuíam o acesso ao voto.
Como resultado da força econômica do quinquênio 1910-1914[5],
no triênio 1917-1919 as melhorias urbanas se aceleraram. Foram pavimentadas as
quatro avenidas que contornavam a praça principal, "6 de agosto". A
praça tinha a largura de quatro metros, e foi calçada com tijolos, unidos com
cimento romano. Foi construída uma pérgula na praça principal, que
posteriormente serviria para as tradicionais retretas dominicais, animadas por
um grupo de músicos. Acresça a essas obras, a limpeza das ruas principais.
Vários moradores e empresas comerciais apoiaram a melhoria das instalações públicas.
Como esperado, a poderosa empresa gumífera / seringalista da época, a Casa
Suárez Hermanos, dona de vários imóveis na cidade, pavimentou centenas de
metros de calçadas, na rua principal da praça e outros 70 na praça e na rua
René Moreno, dando uma nova imagem ao bairro central da cidade.
O crescimento populacional da cidade obrigou a Câmara
Municipal a reconfigurar a área urbana em 1917, com base no plano traçado em
1908, bem como a realizar um novo cadastro. As instruções para a apresentação
da documentação dos imóveis urbanos foram tornadas públicas em 28 de maio de
1917. A imprensa registrou que se manteve o maior raio da cidade, durante o
quinquênio 1917 a 1922, na área de seis quilômetros em torno da praça central
"6 de agosto".
Uma população resplandecente, da qual fazia parte a
“cambacracia engalanada e rica”, como a chamou Rogers Becerra (1990)[6],
que alimentava seus bolsos com libras esterlinas provenientes das exportações
de goma elástica, como o látex da seringueira, sofria a perda de membros da
família e amigos para a pandemia.
A crise
sanitária e a pandemia de gripe espanhola
Médicos como os doutores H. Osaki (com especialização em
cirurgias de emergência nas faculdades de Tóquio, Berlim e Kanazawa), Ricardo
Caspery, Gustavo Gonzales, Juan T. Ascher e Federico K. Fernholz; além dos
farmacêuticos Traug, Schelling, Francisco Chagas e Ignacio Coímbra, enfrentavam
a doença com normas sanitárias e de quarentena. As receitas da farmacologia
ortodoxa ocidental foram combinadas com a medicina natural. Os xamãs
contribuíram com suas experiências, esquecidas ou impenetráveis para a
cultura ocidental crioula. A saúde bucal não foi negligenciada. Em 1918, foi
anunciada a chegada do Dr. Jorge Jung, “... cirurgião dentista credenciado e
habilidoso ...”. Mas, além dele, os serviços do Dr. Guillermo Weise (filho),
outro cirurgião-dentista de renome, já estavam disponíveis.
Os óbitos, registrados estatisticamente por trimestres,
incluíam os falecimentos causados por doenças consideradas endêmicas: malária,
tuberculose e febre palustre. Da mesma forma, foram registrados aqueles eventos
mórbidos causados por pneumonia, pneumonia brônquica e até tuberculose. De um
total de 84 mortes em 1917[7], a
maioria foi causada por doenças endêmicas. Em 1918, no primeiro trimestre,
registrou a morte de 34 pessoas, somando-se às causas anteriores, anemia e
meningite. No segundo, chegaram a 28. Ainda não havia registro das mortes
causadas pela gripe espanhola.
Em outubro de 1918, espalhou-se a notícia de que
"... a gripe avança na Espanha e já invadiu a Argentina e o Brasil
...", causando muitas vítimas. No Rio de Janeiro, "vários médicos"
morreram e até o presidente eleito, Dr. Rodríguez Alves, contraiu a doença em
novembro de 1918 e dela morreu em janeiro de 1919. Diante do alerta, no país
vizinho, o cônsul boliviano em Belém do Pará, Dr. Adolfo Días Romero,
telegrafou para a subprefeitura da província de Vaca Díez, informando que a
gripe já havia se manifestado naquela cidade e, portanto, os postos
alfandegários dos municípios de Villa Bella e de Riberalta, deviam se precaver
no que se refere à “... recepção de passageiros e cargas ...”.
A autoridade consular indicou que, com urgência, “... sejam
constituídas comissões de saúde ...”, para a desinfecção ou adoção de
quarentena[8]. A
imprensa local relatou os antecedentes de pandemias, remontando às suas primeiras
notícias ao ano de 412 a.C., conforme descritas pelos historiadores Hipócrates
e Tito Lívio. Embora a sintomatologia da enfermidade fosse já conhecida desde
1510, foi durante o século XIX que se registraram quatro grandes surtos
epidêmicos, a saber: 1830-1832, 1836-1837, 1847-1848 e o último 1899-1900. A
propagação da doença é muito rápida e dura, geralmente, de 6 a 8 semanas.
De acordo com o mesmo semanário, os sintomas se
manifestam com:
O primeiro ataque abrupto com febre e outros sintomas. A pessoa pode
estar se sentindo bem e, logo em seguida, subitamente, podem surgir dores de
cabeça, dores no corpo e mal-estar, sentir tontura repentina e desmaiar.
Soma-se a isso a febre, congestão da garganta e do nariz, além de tosse seca.
No segundo dia ocorre o agravamento da doença, vem a vontade de dormir, o
doente perde o apetite. No terceiro dia [...] continua uma tosse persistente,
com dores nas costas. A convalescença começa no quinto dia e, na maioria dos
casos, o paciente leva uma ou duas semanas para se recuperar[9].
Em finais de 1918 a vacina contra a gripe espanhola foi
oferecida aos donos dos seringais, bastando apenas que eles indicassem o número
de doses que necessitavam[10].
Embora não haja registro na imprensa, é de se supor que a vacinação já tivesse
sido efetivada nas áreas urbanas do Noroeste. Mesmo assim, as recomendações e o
tratamento para a doença foram divulgados, como segue:
Prevenção. Está comprovada a
natureza contagiosa da doença, cuja principal fonte de contágio é a secreção do
aparelho respiratório [...] As crianças acometidas não devem frequentar escolas
ou qualquer outro local de encontro. Qualquer tipo de festa ou reunião deve ser
proibida [...] deve-se fazer com que todos aqueles contaminados entendam que
seu escarro é um perigo para os outros [...] Todo doente deve dormir sozinho. Tratamento. Todos os casos devem ser
considerados graves. Arrume-se na cama, cobertor quente, bolsa de água quente
nos pés [...] administrar limonada quente [...] a dieta deve ser leve e de
fácil digestão [...] purgante leve, como o fosfato de sódio [...] Os
medicamentos têm pouco valor para esta doença. O quinino (usado contra a
malária) tem sido usado na Europa, mas sem resultados favoráveis. A
convalescença requer o maior cuidado, ar fresco, alimentos nutritivos e tônicos
... [11]
É relatado que a origem da enfermidade foi inicialmente
atribuída ao bacilo de Pleiffer, outras ao pneumococo; ou ainda ao bacilo-cataralisis. A critério do autor,
entretanto, o agente infeccioso "... pode ser um micróbio diferente,
ainda não determinado ...". Da mesma forma, menciona-se que a disseminação
é rápida. Alastrou-se pela Europa, na Inglaterra, Suíça e Alemanha; enquanto na
França não foi detectado. Alguns medicamentos foram sugeridos, para o
conhecimento da população, dentre eles:
Quinino e aspirina [...] aliviam a febre e a dor. Gargarejos de água
boricada. Aplicação de pomadas à base de menta e de eucalipto no nariz aceleram
a desinfecção do trato respiratório. Um purgante, um calmante revulsivo, nas
costas e expectorantes tradicionais contribuirão para a cura.[12]
A Junta Municipal de Riberalta, envidando esforços para
conter a doença, encaminhou telegrama ao cônsul da Bolívia em Manaus, Dr.
Roberto Téllez, ao qual solicitou informações para prevenir e combater a
enfermidade. A resposta foi enviada por telégrafo em 12 de novembro de 1918,
dela tendo conhecimento Riberalta no dia 21. O representante consular respondeu
que na cidade de Manaus foram registradas dezesseis mortes e 10 mil doentes.
Informou ainda que naquela capital, as recomendações profiláticas e curativas
eram:
Preventivo: ter sempre a garganta e o nariz desinfetados. Desinfete as
embarcações a vapor e suas cargas, especialmente a correspondência, isole os
pacientes. Curativos: sudoríficos, trinta centímetros de calomelano e uma hora
depois limonada magnésia, repetir até a cura completa. Evite recaídas sempre
fatais.
Mesmo com todos os cuidados dispensados para evitar a
propagação da doença no Brasil, tanto em Porto Velho quanto em Manaus, a saída
do Vapor Inca de Manaus com destino a Porto Velho violou a quarentena no país
vizinho e obrigou as prefeituras bolivianas a decretarem quarentena em Villa
Bella e Guayaramerín. No final de 1918, o fechamento de ambos os portos
impossibilitou o recebimento de correspondências, bem como a entrada de cargas
e passageiros de Villa Murtinho (BR), que era a estação da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré a partir da qual fazia-se a comunicação fluvial com Vila Bela
(BO). Era o mês de dezembro e no dia 8 do mesmo mês manifestaram-se os sintomas
da pandemia sobre a saúde dos moradores e sobre o fluxo diário do comércio no
Noroeste. O Conselho Municipal de Riberalta pediu ao governo que alocasse
recursos financeiros para combater a pandemia.
As instruções dadas à população, como conselhos médicos e
higiênicos, foram divulgadas logo a seguir. Assim, “... para a desinfecção
recomendava-se usar lisol e creolina, queimar alfazema e alcatrão nos quartos,
como conservantes, beber café com gotas de limão e ingerir diariamente 5
centigramas de quinino.” Além de: “... evitar frio, umidade e ventos.” Apesar
das instruções e cuidados especiais à população, a Comissão de Saúde da
Província de Vaca Díez instruiu a Ilustre Junta Municipal a expedir portaria,
tendo em vista que se constatara a presença da influenza na província e, já era
conhecido, que: “... o contágio é transmitido diretamente do paciente para
outra pessoa e sua propagação advém da concentração de muitas pessoas no mesmo
local.” A portaria foi publicada em 4 de janeiro de 1919 (oito artigos).
Destacamos seu conteúdo, principalmente por sua semelhança com a pandemia
COVID-19, conforme apontamos no início destas páginas:
“Artigo 1. - Até novo aviso, são proibidos todos os eventos teatrais,
cinemas, concertos, danças, velórios, encontros políticos ou (sic) de qualquer
outro tipo e a participação de ouvintes em (sic) missas ou (sic) festividades
religiosas.
Art. 2.- Muita limpeza de garganta com antissépticos [...] clorato de
potássio, alúmen, ácido bórico, permanganato de potássio [...] resorsina e
linha de base (sic) [...] para uso interno Arrehenal é recomendado como
conservante.
Art. 3º .- ... suspender todas as visitas ao (sic) doente acometido ou
(sic) com suspeita de gripe [...] ter o paciente isolado de outras pessoas
[...].
Art. 5.- Todos os utensílios utilizados por um paciente devem ser
desinfetados [...] em termos de vestimenta [...] espalhando o micróbio, devem
ser queimados ou (sic) desinfetados da mesma forma se o mesmo paciente for
utilizá-los posteriormente.
Art. 6.- Ao disseminar o bacilo do micróbio contagioso diretamente de
pessoa a pessoa, os responsáveis pelos pacientes evitarão abordá-lo [...]
recomendando a desinfecção dos quartos [...] da bacia (sic) de seu uso e
isolamento em sala separada ...
Art. 7º - Os membros da Comissão de Saúde estão autorizados a (sic)
realizar visitas domiciliares para garantir o cumprimento [...] devem ostentar
o distintivo de cruz vermelha [...] sem prejuízo das que a Comissão de Polícia
venha a realizar. ...
Artigo 8º - Compete à Polícia Municipal e de Segurança a execução e
cumprimento da presente Portaria, aplicando-se a multa autorizada pela Lei
Orgânica dos Municípios.
Proferida na Câmara Municipal de Riberalta, aos (sic) quatro dias do mês
de Janeiro de 1919.[13]
Para o pronto atendimento aos enfermos, a Junta de Saúde
decidiu viabilizar o novo pavilhão do Hospital Militar[14].
Vale ressaltar que a Junta instruiu ao seu tesoureiro
(tenente-coronel Arturo Núñez del Prado) a entregar medicamentos gratuitamente
aos pacientes pobres. O procedimento deveria ser realizado mediante a prévia
apresentação, por parte do interessado, de um boleto emitido pelos médicos da
Junta de Saúde e da Comissão de Polícia Municipal.
Aconselhamento e controle médico foram intensificados.
Apesar disso, os doentes aumentavam diariamente. Entre esses, funcionários
estrangeiros e muitos bolivianos[15],
assim como as esposas desses poderosos comerciantes e até mesmo seus filhos. Além
deles, outras pessoas das quais não há registros, senão que eram "... um
grande número de criados, garçons e japoneses ...". Em todo caso, a
imprensa destacou que poucos casos foram fatais. Embora a gripe estivesse
aumentando em proporção, pois "... quase todos os soldados foram contaminados,
incluindo o cirurgião".[16]
No final de janeiro a epidemia atingiu números
extraordinários de infecções. Estimava-se que existiam mais de mil infectados e
havia casas em que todos contraíram a doença, enquanto os mortos já ultrapassavam
cinquenta. Em março de 1919 foram estabelecidas as primeiras estatísticas de
óbitos causados pela epidemia de gripe, atingindo um total de 65 vítimas (24
menores e 41 idosos)[17]. De
um total de 2.500 habitantes, estima-se que 90% contraíram a doença. Se isso
aconteceu nas áreas urbanas, o mesmo deve ter acontecido nas áreas rurais.
Infelizmente, não temos informações sobre os efeitos da crise epidemiológica sobre
os seringueiros e indígenas do meio rural. A exceção é dada pela informação do
seringal “Concepción”, propriedade de Suárez Hermanos, de cujo total de 240 habitantes
morreram 18 pessoas.[18]
O apoio econômico do Estado chegou muito atrasado. Uma
vez declarada a crise, informou-se que a subprefeitura recebeu a “oferta” de
5.000 bolivianos para atender à “gripe” em Riberalta e que o valor seria
remetido em fevereiro. Porém, naquele mês foi divulgado o relatório da Junta de
Saúde (dr. Dagoberto Antelo, dr. Jesús Lijerón, tenente-coronel Arturo Núñez
del Prado e dr. Ricardo Caspary (médico), com notícias animadoras. O próprio
dr. Caspary relatou que até aquele momento a doença havia contagiado várias
pessoas de forma bastante benigna. Ainda, que os pacientes estavam em completa
recuperação. Conclui-se então que o apoio do Estado foi recebido apenas após a
morte de mais de 60 pessoas e quando a onda de doenças praticamente havia
cessado.
A impressão que causou a presença do Estado no cuidado de
seus cidadãos foi objeto de muitas censuras. Restou perceptível que a eficácia
da administração pública federal no Território de Colônias do Noroeste era
apenas fiscal. Atribuir à cidade de Riberalta a soma de 5.000 bolivianos para
enfrentar a crise sanitária foi grotesco. Apenas a alfândega de Villa Bella,
anexada como segundo trecho à província de Vaca Díez, informou as arrecadações
da economia gumífera que se formava no Noroeste, da qual Riberalta era seu eixo
articulador, somas que oscilavam entre quinhentos mil e um milhão de
bolivianos, chegando a um milhão e meio em 1909[19].
De resto, as críticas a este respeito são abundantes.
Ao relacionar a pandemia COVID-19 à gripe espanhola do
século XX, cabe a seguinte pergunta: as autoridades bolivianas do século XXI
estão a seguir o caminho dos seus antecessores? Uma análise contemporânea desta
última pandemia nos dará uma imagem precisa da situação no século XXI.
Crise econômica no
Noroeste, soluções de curto prazo
Dois componentes socioeconômicos são adicionados à crise
de saúde no Noroeste Boliviano na segunda década do século XX. Por um lado, a
lei de terras de 1915, que tratava da consolidação das posses gumíferas, cuja
validade terminaria em 31 de dezembro de 1917. Segundo a Câmara de Comércio, a
caducidade da referida lei perturbaria a "... moribunda indústria
regional, ameaçando [...] as cabeças dos industriais que enfrentam lutas
desesperadas com a crise e as desastrosas consequências da guerra". Tal
perspectiva motivou a apresentação de um Memorial ao Ministério das Colônias[20].
Por outro lado, as restrições do vice-consulado britânico atingiram suas exportações
e importações, notícia que foi divulgada em Riberalta em novembro de 1917, pela
mesma legação diplomática, através do envio de uma circular aos exportadores
indicando que:
[...] Pela Lei do
Governo Britânico, denominada “The Trading with the enemy” (Extension of
Powers, Act, 1915), é necessário que a exportação de borracha para o exterior
tenha um “Certificate of Interest” declarando que nenhuma pessoa inimiga ou com
quem as transações comerciais são proibidas, de acordo com a “Statutory List”
(Lista Negra), tem qualquer interesse na borracha que é exportada [...] este
decreto se refere a todas as exportações de borracha boliviana [...] direto
para o Grã-Bretanha e as colônias inglesas […][21].
Adicionalmente a Lei do Governo dos Estados Unidos de 17
de agosto de 1917, proibia as transações comerciais com casas alemãs e seus
intermediários, sob pena de confiscar a carga no Canal do Panamá. Proibia ainda
as relações comerciais com a Alemanha ou seus aliados. A Lei foi publicada, na
íntegra, na imprensa local de Riberalta em 22 de janeiro de 1918[22].
A pressão dessas determinações deve ter sido tanta que a
imprensa de Riberalta divulgou um comentário intitulado: “A lista negra e
procedimentos de investigação”. Nele, mencionou as consequências do envio de
agentes consulares e diplomáticos da Grã-Bretanha à Bolívia. Tinham como missão
“investigar” o desenvolvimento dos vários negócios e seguir os passos dos
comerciantes. A ação foi vista não apenas como uma medida “... não consultada e
temerária [...] ofensiva à dignidade nacional”. Acarretou também essa medida a
incerteza, mal-estar e danos graves, minando as bases da estabilidade do
comércio[23]. As reclamações e críticas
continuaram. Assim, indica-se que os exportadores bolivianos não tinham
liberdade para despachar suas cargas, pois as restrições foram o pretexto para
rejeitar os embarques. Os mesmos industriais afirmavam que um "monopólio
odioso" foi estabelecido em favor de firmas ou súditos britânicos[24].
As particularidades do mercado mundial de goma elástica,
bem como os preços alcançados pelo produto, foram conhecidas em Riberalta por
meio da divulgação de duas reportagens. A primeira, intitulada "Transcrito
da brochura publicada pelo Swiss Bank Corporation, sobre o movimento financeiro
e comercial de 1917". A outra, transcreve o que foi tratado na
"Assembleia Geral Ordinária da Associação de Plantadores de Goma”
(Incorporated), realizada na sexta-feira, 24 maio de 1918 no Cannon-Street
Hotel, sob a presidência de Sir Edward Gosling.[25]
Até 1917-1918, a crise do mercado de goma elástica não
ocorria exclusivamente por causa dos preços, embora também este componente a
impactasse. Ocorria, primariamente, por causa dos cortes nos volumes comprados
tanto pela Grã-Bretanha quanto pelos Estados Unidos da América. Apesar das
dificuldades da guerra, o mercado apresentou certa estabilidade de preços. O
preço da seringa e do caucho no mercado internacional era conhecido rapidamente
por via telegráfica. Em 1917, o máximo do "Standart Crepe" foi de 3
xelins e 5 pences / libra (433 gramas), alcançado em fevereiro de 1917, e o
mínimo de 2 xelins e 2 pences durante a primeira semana de dezembro. O preço
médio do ano foi apurado em 2 dois xelins e 9 pences, 1 xelin e 2 pences, em
relação a 1916, cujo preço médio foi de 2 xelins e 10 pences, 1 xelin e 4
pences; ou seja, o primeiro foi apenas ligeiramente inferior ao de 1917.[26]
Assim, a crise da goma elástica na Bacia Amazônica se
deve ao aumento da oferta ao mercado consumidor (Grã-Bretanha, França e Estados
Unidos da América) do produto das plantações e a consequente queda no consumo
da borracha silvestre.
Produção de Mundial de goma elástica - 1909-1917
Ano
|
Origem da goma
elástica |
Restante* |
Total |
|
Agrícola |
Silvestre |
|||
1909 |
3.600 |
42.000 |
24.000 |
69.600 |
1915 |
107.867 |
37.220 |
13.615 |
158.702 |
1917 |
216.000 |
37.000 |
13.000 |
266.000 |
*Computada a goma
elástica de origem boliviana, colombiana, peruana e até mesmo algumas áreas
da África.
Fonte: Brochura publicada pela Swiss Bank Corporation
(1917) em “El Comercio”, Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 30 de novembro de
1918, n° 105, página 2. (246)
O principal consumidor em 1917, os Estados Unidos da
América do Norte, absorvia 61% da produção mundial, correspondente a 180 mil
toneladas. Este consumo era motivado pelo boom econômico e pelo desenvolvimento
da indústria automobilística naquele país. A Inglaterra adquiria apenas 10% da
produção mundial. Devido à guerra, a crise no transporte obrigou aos produtores
restringir sua colheita a 80% do que foi coletado em 1917 até 1918. Calculou-se
então que 310 mil toneladas poderiam ser colhidas. Soma-se a isso a redução do
consumo da matéria prima nos Estados Unidos da América, correspondente a 25 mil
toneladas por trimestre, ou 100 mil toneladas anuais. A crise se estendeu aos produtores,
principalmente nas colônias inglesas. No Extremo Oriente, os investimentos de
várias empresas inglesas totalizaram 75 milhões de libras esterlinas e mesmo
antes da crise pagavam dividendos de 20% ao ano[27].
O que estava acontecendo então em Riberalta? Naquela
cidade, a crise econômica mundial era conhecida com precisão, em razão de que
as notícias veiculadas pela imprensa provinham de fontes sérias e confiáveis.
Industriais do Noroeste reclamavam das restrições, agora
porque os embarques de goma elástica só seriam feitos pelo Brasil. Eles denunciavam
que os efeitos da estagnação foram tão perceptíveis, que as condições
econômicas na região pioraram de forma alarmante e, se continuassem a piorar,
os negócios seriam paralisados. Diante da situação, a Câmara de Comércio de
Riberalta pediu ao governo a quantia mensal de 100 mil bolivianos para que o
Estado adquirisse a goma elástica, a fim de proteger a indústria "agonizante".
Em seguida, estimava que seriam exigidos 500 mil bolivianos do Estado para comprar
a produção dos rios Beni e Abunã.[28]
Também propôs a emissão de títulos do governo, no valor
de 500 mil bolivianos, destinados ao pagamento das dívidas da Delegação
Nacional, contraídas nas administrações de 1913 e 1914. As dívidas estavam
relacionadas aos fornecimentos de bens por parte do comércio e de particulares
àquela delegação. Propôs como garantia dos títulos emitidos a receita nacional,
especialmente das alfândegas de Villa Bella, Manoa e Cobija.[29]
Já em 1918, exportadores bolivianos pediam ao governo que
firmasse acordos com o Governo Federal do Brasil, para viabilizar os embarques
de goma elástica da Bolívia. De igual maneira, solicitavam aos Estados Unidos
da América do Norte alvarás de exportação da produção total anual. Esta atingia
o total de 2.500 toneladas, assinaladas nos despachos aduaneiros de
Guayaramerín, Villa Bella, Cobija e Manoa, já que o mercado nova-iorquino era
exclusivo para borracha da América do Sul. Acrescentavam que: "... não
estamos resignados a testemunhar o desamparo da classe industrial a quem o país
e os cofres nacionais tanto devem.” Assinalavam ainda que, ao contrário da
Bolívia, no Brasil: "... o Banco do Brasil votou três milhões de libras
esterlinas, antecipando até 50% das vendas externas ...", uma política
"protetora" que fez com que a goma elástica boliviana do Acre e do
Abunã fugissem da fiscalização e se apresentassem como brasileiras”.[30]
Em outras palavras, os industriais bolivianos foram forçados a contrabandear
sua produção. A imprensa justificava a ação, afirmando ser seu motivo o fato de
o governo brasileiro emitir certificados de exportação.[31]
Apesar disso, já em março de 1919 se sabia que a borracha
nos mercados estrangeiros custava 1 xelim e 10 pences; "Preço nunca visto
tão aviltado".[32] O
governo boliviano foi, então, forçado a isentar os industriais da cobrança de
taxas de exportação.
Os seringalistas do Noroeste logo encontraram outro
produto que compensasse a perda do mercado da goma elástica, a castanha
(castanha do Pará ou castanha do Brasil, Bertholletia
excelsa). Desde 1917 amostras do produto, ainda com casca, já eram
exportadas. A pioneira Casa Suárez havia mobilizado suas conexões comerciais
com a Europa e os Estados Unidos, enviando amostras da castanha para
divulgá-la. A mesma empresa recomendou a outros industriais a exploração da
castanha, como um substituto momentâneo da goma elástica. Com o mesmo objetivo,
uma matéria na imprensa apontou a "... necessidade de desenvolver a
indústria da castanha...", informando que na Amazônia já era uma indústria
de extrema importância. Assim, sua exploração foi vista como um “alívio para a
crise”.[33]
Nesse contexto, novamente os ingleses se envolveram na produção
nascente. Em fevereiro de 1919, o vice-cônsul britânico em Riberalta publicou
um texto contendo informações sobre o estado da produção no departamento do
Beni, (tradução de um artigo publicado em “The board of trade journal, England”
datado de 18 de julho, 1818). Os exportadores viram possibilidades de um novo
negócio com os comerciantes ingleses. Em 1919, a Casa Suárez informava que a
castanha estava sendo recolhida em seu estabelecimento “Yata” e enviaria cerca
de 20 mil kg para a Europa ou para os Estados Unidos.[34]
Os seringalistas se mobilizaram, entrando gradativamente no negócio. Assim, de
1920 a 1930, o país entrou no mercado mundial dessa castanha, abundante nas
florestas tropicais da Amazônia, especialmente na Bolívia.
Atualmente “... a castanha ocupa o segundo lugar em valor
de exportação agroindustrial, atrás da soja”. Em 2001, o valor total das
exportações atingiu 27 milhões de dólares e em 2016 ultrapassou 119 milhões.[35] Desde
aquele período, a Bolívia ocupa o primeiro lugar nas exportações de castanha da
Amazônia. Assim como acontecia com a goma elástica até a década de 1920, desde
2010 a Grã-Bretanha e os Estados Unidos são os principais compradores do
produto (33% e 28% respectivamente).
Entre 1917 e 1920 foram tomadas medidas de curto prazo,
para amenizar a crise econômica local e regional. Á castanha foram somados
outros produtos abundantes na floresta amazônica, como salsaparrilha, balata,
goma elástica, entre outros. Chamando de “... a
ressurreição de uma indústria... ”, houve mesmo quem pensasse na reativação da
exploração da quina para aliviar a crise.
No entanto, os efeitos da Guerra Mundial, aliados à crise
sanitária devido à proliferação de pacientes infectados com a "gripe
espanhola", foram sentidos com rigor. No final de 1918, declarada a
pandemia, os artigos de primeira necessidade começaram a escassear, entre eles
alimentos como farinha de trigo e açúcar, a escassez estava presente tanto em
Manaus (BR), como em Villa Bella e em Riberalta (BO), sem exceção.
RIBERALTA, AMAZÔNIA-MOJOS BENI
DICIEMBRE DE 2020
[1] BAULER, Emil
Rudolf. Op. cit.
[2] TÉLLEZ, María del Pilar Gamarra. Amazonía
Norte de Bolivia Economía Gomera 1870-1940. Las bases económicas de un
poder regional. La Casa Suárez. La Paz: Colegio Nacional de Historiadores de
Bolivia, Producciones CIMA Editores, 2007, 391.
[3] No período, foram renovadas e alargadas as estradas Ixiamas-Heath (225
km), estendendo-se de Heath à Flórida (40 km), além das de San Antonio del Beni
a Carmen del Madre de Dios (153 km, com 20 pontes, Riberalta - Caracoles (21
km, 9 pontes) Caracoles-Fortín Pacahuaras (54 ½ km, 17 pontes). El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 25 de novembro de 1918, n° 184, 3 (243).
[4] Entre estes
encontram-se: Feliciano Antelo (Presidente da Junta Municipal, que faleceu
precisamente devido ao ataque de gripe), Abelardo Zabala, Plácido Molina M.
(Editor do semanário “El Comercio”), Ángel Velarde, Napoleón Rivero, Julio
Salinas M., Medardo Chávez S. (residente em Cobija) e Gregorio Balcázar.
[5] O boom das exportações de
goma elástica na Bolívia ocorreu entre 1890-1910, durante o primeiro ciclo de
exportação dessa matéria-prima, foram comercializadas mais de 5.000 toneladas
por ano. Entre 1906 e 1910, as exportações alfandegárias localizadas no Norte
da Amazônia: Villa Bella e Cobija (Bahia), representaram 70% do total nacional
com 8.900 toneladas (TÉLLEZ, María del Pilar Gamarra. El Desarrollo Autónomo de la Amazonia Boliviana. Procesos socioeconómicos en la Frontera
Pionera (1860-2002). La Paz: CEPAAA / La Pesada Ediciones, 2012, 309-311.
[6] CASANOVAS,
Rogers Becerra, Cambacria endomingada y
Rica, manuscrito, inédito, 1990.
[7] Em 1917, a
idade dos recém-nascidos variava de 2 a 3 meses. Já entre os adultos os
falecidos contavam com 20, 35 e 50 anos. A média de idade variou entre 30 e 60
anos.
[8] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 31 de outubro de 1918, n° 102, 3 (235).
[9] El Comercio, Ano, III Riberalta, Beni-Bolívia, 25 de novembro de 1918,
n° 104, 2 (242).
[10] El Comercio,
Año III, Riberalta, Beni-Bolivia, 31 de outubro de 1918, n°.102, pág. 4, (236).
[11] (Dr. William
Emerich), El Comercio, Ano III Riberalta, Beni-Bolívia, 25 de novembro de 1918,
n° 104, 2, (242), o negrito é nosso).
[12] El Comercio,
Ano III Riberalta, Beni-Bolívia, 25 de novembro de 1918, n° 104, 4, (244).
[13] Portaria.
Honorável Junta Municipal da 1ª Seção da Província de Vaca Díez, in: El
Comercio, Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 5 de janeiro de 1919, Nº 110, 3
(271).
[14] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 31 de dezembro de 1918, n° 109, 3 (267)
[15] Empregados de
casas comerciais como: Francisco Ritz, Federico Hecker (Casa Braillard),
Alberto Rauch (Casa Suárez); além de Germán Bakhausen, G. Herzig e os
bolivianos Abelardo Zabala, Rodolfo Costas, Ignacio Paz, Adolfo Melgar, Manuel
Alpire, Wenceslao Mariaca, Grimaldo Zambrana.
[16] Consta que o
médico J. Ostria R. está doente, assim como o administrador do El Comercio
Weekly e sua família, razão pela qual sua edição provavelmente será suspensa
enquanto se mantiver a intensidade da epidemia. Radiograma, 01/07/1919,
transcrito em El Comercio, Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 12 de janeiro de
1919, n° 111, 2 (274)
[17] El Comercio, Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 2 de março de 1919, n°
117, 4 (315).
[18] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 11 de abril de 1919, n° 123, 4 (350). A
imprensa pede que as informações dos demais estabelecimentos rurais produtores
de borracha lhe sejam encaminhadas. O seringal Concepción, localizado no rio
Beni, é a concessão gomeira que meu avô, Juan Gamarra Ibáñez, comprou da Casa
Súarez, começando como um "inquilino" dela justamente no período
1920-1925, pós-pandemia.
[19] María del
Pilar Gamarra Téllez, op. cit, (2007) 161.
[20] El Comercio,
Ano II, Riberalta, Beni-Bolívia, 27 de julho de 1917, n° 56, 2 (76).
[21] ACS /
Circular de 27 de julho de 1917, in María del Pilar Gamarra Téllez… (2012) 326.
[22] El Comercio,
Ano II, Riberalta, Beni-Bolívia, 22 de janeiro de 1918, n° 79, 3 (141).
[23] El Comercio,
Ano II, Riberalta, Beni-Bolívia, 27 de novembro de 1917, n° 72, 1 (111).
[24] El Comercio,
Ano II, Riberalta, Beni-Bolívia, 16 de dezembro de 1917, n° 75, 4 (126).
[25] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 30 de novembro de 1918, n° 105, 1-3
(245-247).
[26] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 30 de novembro de 1918, n° 105, 1 (245).
[27] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 25 de novembro de 1918, n° 104, 1 (241).
[28] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 23 de agosto de 1918, n° 86, 1 (205); 3 de
setembro de 1918, n° 97, 3 (211); 19 de setembro de 1918, n° 98, 3 (215).
[29] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 5 de outubro de 1918, n° 99, 1 (221).
[30] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 13 de outubro de 1918, n° 100, 1 (225).
[31] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 24 de outubro de 1918, n° 101, 1-2 (229-230).
[32] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 2 de março de 1919, n° 117, 4 (319).
[33] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 18 de fevereiro de 1919 n° 110, 2 (301).
[34] El Comercio,
Ano III, Riberalta, Beni-Bolívia, 2 de março de 1919 n° 117, pág. 2 (313).
[35] Gregorio
Quiroz Claros e Vincent Vos, com o apoio de Luis Moreno Arza e Edwin Cárdenas
Benítez. Castaña, condiciones laborales y
medio ambiente. Propuesta de Incidencia Pública desde el Sector Zafrero de la
Castaña de la Amazonía Boliviana. Santa Cruz de la Sierra: CIPCA, 2017, 36.
O ensaio que segue foi elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado de Ensino e Pesquisa e a Semana de História –
Nota introdutória: Catalina o pássaro de aço nos céus da Amazônia
Nesses tempos, quando a população de Rondônia se vê ameaçada pela suspensão de alguns voos e mudanças de rota das companhias aéreas que nos servem,
Todo boato tem um fundo de verdade: o Ponto Velho, o Porto do Velho e Porto Velho
O último artigo que publiquei aqui tratou da figura do “velho Pimentel”, um personagem que, apesar de seu caráter até agora mítico, parece estar ind
A origem da cidade de Porto Velho e o velho Pimentel
Todos sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao