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Dante Fonseca

A História da Amazônia e de Rondônia, uma reflexão sobre sua dinâmica nos últimos 40 anos – 1984 – 2004


A História da Amazônia e de Rondônia, uma reflexão sobre sua dinâmica nos últimos 40 anos – 1984 – 2004 - Gente de Opinião

O ensaio que segue foi elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado de Ensino e Pesquisa e a Semana de História – 2024, promovido pelo Departamento de História da Fundação Universidade Federal de Rondônia cujo tema é “Histórias Amazônicas: práticas sociais, culturas e memórias”.

Devo primeiramente agradecer aos coordenadores deste seminário pelo honroso convite, mormente envaidecedor neste momento em que encerro minha carreira de professor universitário, pois creio ser esta minha última intervenção como participante da mesa de abertura de evento presencial neste tipo de encontro.

Assim, em razão das considerações acima exposta, ocorreu-me propor um painel sobre os estudos realizados acerca da História da Amazônia nos últimos 40 anos, que é o período de tempo em que resido neste estado. Acompanhei em minha vida profissional, iniciada quando aqui cheguei recém-formado em 17 de fevereiro de 1984, toda essa evolução em razão de minha atividade profissional de professor de História e, muito modestamente, de historiador. Coincidente no tempo com essa razão pessoal há também a razão histórica, pois foi nesse mesmo período, em 08 de julho de 1982, que por lei federal foi inaugurado o ensino universitário permanente em Rondônia, com a criação da UNIR. Antecipadamente, porém, devo alertar ao leitor que: a) a proposta de ensaio ora realizada, não poderá evitar a tentativa de construção de um painel mais amplo, na medida em que será necessário situá-la no contexto mais geral da História do Brasil e b) não será possível mencionar senão uma pequena parte, a título de exemplo apenas, dos autores que deveriam compor um estudo mais aprofundado do assunto. Feitas as ressalvas, comecemos então.

Nos idos dos anos de 1980 a História no Brasil se encontrava em um daqueles raros momentos de efervescência, tanto na sociedade como no ambiente acadêmico. Em razão do sopro de liberdade ocasionado pela redemocratização, naquele momento a discussão sobre o nosso passado recente impunha-se, embora ainda com o ranço de velhas teorias que a dinâmica da pesquisa e as transformações sociais ocorridas no Brasil nas décadas posteriores voltaria a examinar a partir de novos pressupostos. Sim, porque a História, embora ciência, não é exata, e a dinâmica social imprime-lhe influência. 1964 foi um golpe de estado ou um contragolpe preventivo para manter a Democracia? Essa é a questão mais radical, cujo debate espinhoso fere a consciência nacional até hoje. Para as finalidades aqui propostas, não importa a resposta, mas ressaltar que, por mais dolorido que seja não podemos fugir à questão tão intensamente sentida por nós, examinar os argumentos e sua veracidade ou incompletude, que nesse caso pode conduzir qualquer um deles à sua falseabilidade. É que, sem ofensa, o revisionismo é essência na profissão do historiador, não podemos abandoná-lo senão sob a condição de aceitarmos incondicionalmente tudo o que já foi escrito sobre o passado. Concedo que para as gerações mais novas esta palavra é forte, assumindo um significado quase acusatório, então pode ser hoje substituída pela palavra crítica. Seja como for, para nós historiadores de Rondônia a dinâmica da abordagem histórica estava em situação diferente daquela percebida no contexto nacional. A nossa percepção era a urgência que se impunha da regionalização das pesquisas, dar conta do processo histórico em Rondônia, conhecer melhor a nossa então pouco conhecida História. Para nós restava a tarefa de dar conta da História da Amazônia e da História de Rondônia juntas. Em outras palavras, como poderíamos analisar aquele momento histórico e suas repercussões se não sabíamos como chegamos ali? É importante lembrar aqui nossa ignorância a respeito desse processo, pois a quase totalidade de nós havíamos estudado em cursos superiores que não comtemplavam a História da Amazônia, menos ainda Rondônia, rincão desconhecido pela maioria dos nossos conterrâneos. O que conhecíamos sobre a História da Amazônia compunha-se de um montante de fatos cuja paisagem apresentava um conjunto de informações de caráter episódico, sem maior densidade analítica ou factual.

Além disso, naquele momento inicial estávamos aqui em Rondônia imersos em um ambiente de otimismo ilimitado, apesar das ainda precárias estruturas que ambientavam a criação do Estado. Predominava o triunfalismo quanto ao nosso futuro também, pois éramos a mais nova estrela no azul da União. Ora, historiadores também são homens de seu tempo, e não conseguem escapar, apesar do estudo sistemático, das influências cujas forças o momento histórico mais ou menos lhe fazem aceitar. Não éramos espectadores inertes ou desinteressados dos episódios de impacto nacional transcorridos naqueles anos. A causa do nosso aparente desinteresse pelas questões mais urgentes da pauta política nacional era outra, e tinha raiz na própria História de Rondônia. É indispensável notar que a História de Rondônia, em seu âmbito institucional ou político-administrativo, é marcada por dois momentos importantes, a criação do Território Federal do Guaporé (1943) e do Estado de Rondônia (1981), os dois eventos em períodos de exceção à democracia. Ambos os momentos foram precedidos de grande expectativa da população e reverteram, de um modo ou de outro, em benefício eleitoral aos seus promotores. No caso do primeiro, o principal beneficiado foi Aluísio Pinheiro Ferreira. Nomeado governador do Território em 1943 foi eleito deputado federal em 1947 e por mais duas legislaturas. No caso da criação do Estado de Rondônia, a evidência maior desse ambiente foram as eleições de 1982, quando a Arena, partido que dava suporte ás forças políticas do regime inaugurado em 1964, venceu de maneira incontestável, vitória cuja criação do estado de Rondônia carrega a maior responsabilidade.

No caso de 1964, penso que os historiadores regionais pouco se debruçaram sobre esse período, ao menos de forma aprofundada, e ainda se pouco se debruçam, simplesmente pelo fato de que 1964, embora tenha representado uma ruptura no jogo de forças políticas em disputa no território, não representou um rompimento significativo na mínima esfera do regime representativo disponível ao eleitorado local, a eleição para deputado federal. Assim, podemos dizer que de 1964 em diante Rondônia viu crescer, mesmo com as limitações impostas pelo regime vigente, a participação político-eleitoral, com a criação de novos municípios e a disposição de mais cargos eletivos no âmbito federal. Podemos dizer então que a percepção de “abertura democrática” chegou à população de Rondônia, mesmo com as limitações institucionais do Regime de 1964, antes da “Abertura Política”, que se inaugurou com os anos de 1980.

Por outro lado, se considerarmos os estudos relativos à História da Amazônia, creio que a partir daqueles anos de 1980 sua necessidade começou a se impor com mais intensidade por várias razões. A dinâmica histórica ocorrida desde o período colonial no espaço que ocupou a antiga capitania do Grão-Pará (grosso modo a Região Norte de hoje) promoveu, ao longo do tempo sua divisão, de modo que essa capitania viria a ser segmentada sucessivamente para dar origem à capitania de São José do Rio Negro (Amazonas) e depois aos territórios de Roraima, Amapá, Acre e Guaporé. Ainda, essa grande região e suas subdivisões, apresenta em seu desenrolar histórico dinâmicas razoavelmente independentes daquelas existentes nas demais regiões do país. Destarte, para o interessado nesta região, não era suficiente o estudo da História do Brasil, pois deixava ao estudioso à tarefa de preencher enormes lacunas que, sempre existentes em estudos gerais, eram ainda maiores nesse caso.

Normalmente, consideramos a produção de uma História Regional como necessária para que esta se integre de forma menos lacunar àquela mais geral. Isto vale principalmente para superar esta virtual antinomia histórica entre o norte e o sul do Brasil, embora creiamos sua eficiência estruturalmente limitada. Tal limitação reside parcialmente no fato de que, na verdade, denominamos História do Brasil à História do Litoral Brasileiro, à qual se agrega a hinterlândia de Minas Gerais apenas e em razão principalmente do Ciclo do Ouro, Inconfidência Mineira e depois de seu papel no jogo político da República Oligárquica. Também, mantêm praticamente esquecidas as áreas do Mato Grosso, Goiás, Amazônia e as antigas capitanias mais extremas do Maranhão e Piauí. Ainda, e também, devemos apresentar sérias ressalvas quanto à larga exclusão dos atuais estados da Região Sul e aos Estados do Nordeste, estes após a decadência da produção de açúcar como grande geradora de riqueza. Do exposto, somos levados à conclusão que são necessárias as Histórias Regionais, mas para que possamos produzir uma História do Brasil essa mesmo terá que ser refeita, pois o liame comum deve ser mais radical do que simplesmente a união de territórios sob a mesma bandeira. Em outras palavras, devemos supor que haja uma historicidade em comum, que nos abriga sob o mesmo guarda-chuva.

Assim, nossa História do Brasil carrega consigo defeito congênito, é um corpo hipertrofiado, sem o equilíbrio e a proporção entre suas partes. E transmite geneticamente essa característica às suas pequenas descendentes, as histórias regionais, que em tudo lhe seguem o caráter e a disposição. Antes que seja aposta uma objeção, esclareço de pronto de que não estou falando aqui de qualquer tipo de relação causa X efeito, porque essa é comum a toda a História. Outro aspecto importante a ser relevado é que, iniciada a institucionalizar-se em um período onde fazer a História era fundamentalmente cuidar da dinâmica política-institucional (geralmente culpabilizamos por isso o Positivismo), essa característica naturalmente facilitou sua hipertrofia, pois a história principal era aquela dos centros políticos de decisões. Com o tempo evoluímos, ou mudamos, pois, evoluir ainda é uma palavra carregada de preconceitos valorativos, para a História Econômica e para a História Social, com todas as derivações destes dois últimos recortes, por exemplo: História Agrária, História das Ideias e mais recentemente as Histórias Étnicas e de Gênero. Enfim uma gama infindável de recortes e abordagens, mantendo, porém, o foco nas áreas centrais da dinâmica política.

Enfim, no caso da Amazônia, e creio também no Centro Oeste, particularmente suas áreas mais ao norte, também assim, os estados já citados que compõem o Nordeste, cremos que dinâmicas marcantemente diferenciadas ocasionaram também suas lacunas, no contexto do entendimento de uma História do Brasil. Fiquemos somente com a Região Norte, que é a principal área a ser observada nesse ensaio. Já em sua origem possui uma dinâmica político-administrativa distinta. O marco de sua ocupação definitiva é o ano de 1616 quando Francisco Caldeira Castelo Branco fundou o Forte do Presépio, origem da cidade de Belém do Pará. Compôs, juntamente com a capitania do Rio Negro e a do Piauí, o Governo Geral do Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja administração era separada do Estado do Brasil, mais ao sul. Eram unidades político-administrativas coloniais com lógicas de governo distintas no importante aspecto da autonomia. O Maranhão e Grão-Pará, eram governados por um capitão general subordinado ao governo de Lisboa, o Estado do Brasil era governado por um vice-rei, com maior autonomia em relação ao governo metropolitano.

Sob o ponto de vista econômico as situações também eram distintas: enquanto no litoral do Nordeste se desenvolvia a cultura do açúcar, produzindo uma enorme quantidade de riqueza, o Grão-Pará possuía uma economia pobre, baseada no extrativismo vegetal variado, ora com a predominância de um, ora de outro produto. A larguíssima extensão territorial combinada com a baixa densidade demográfica, a ausência de núcleos urbanos significativos, cuja exceção era encontrada em Belém, cidade à qual se acrescentou como significante apenas no final do século XIX Manaus. O uso intensivo da mão de obra indígena, escravizada ou produto de relações sociais de trabalho assemelhadas pelo sistema do aviamento, muito cedo instalado na região em razão de sua desmonetização, compunham um marcante contraste com o Estado do Brasil.

Fica então evidente que, apesar de compor a História de uma mesma colônia o norte e o sul do Brasil tinham a separá-lo as dinâmicas sociais distintas e o papel periférico atribuído ao norte. Não por acaso então foi no Sul a origem em terras brasileiras da primeira teoria que buscava dar conta do processo histórico em todo o território nacional, a teoria dos ciclos econômicos. Publicada em 1937, a obra de Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), tem seu recorte temporal limitado a 1820 ou seja, muito antes da goma elástica surgir como importante produto de exportação. Contudo, teve seu conceito central utilizado exaustivamente por décadas, inclusive aplicado ao Surto Gumífero, e até hoje o termo ciclo econômico é utilizado intuitivamente, sem dar conta a maior parte dos seus usuários das consequências teóricas de sua utilização. Não que inexistissem Histórias do Brasil, Robert Southey, inglês aqui residente publicou a primeira delas em português, no Brasil, em 1862. Antes dele, Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, publicou uma História Geral do Brasil a partir de 1854 por encomenda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição fundada e sob patrocínio de Dom Pedro II. Os tempos não são exclusivamente bons, nem maus, embora contenham sempre em si e combinadas desigualmente essas duas qualidades. Assim, podemos dizer que nesse mister historiográfico aqueles foram bons tempos, quando o governante se interessava pessoalmente pela ciência.

Existiram outras no Segundo Reinado, mas apesar de serem volumosas, poderíamos mesmo dizer enciclopédicas, escritas em vários volumes e provenientes de ricos acervos, que permitiram aos autores abordarem fatos históricos relativos todas as regiões do Brasil com uma exatidão cronológica e rigor factual quase que irreparáveis, não possuíam uma linha teórica definida, nem um leitmotiv, senão o fato de terem se passado no mesmo país. Assim, relatavam os fatos das mais diversas naturezas que caíam em suas mãos, notadamente fatos da História Política. Nunca é demais repetir: embora seja hoje criticada, a História Econômica de Roberto Simonsen teve o mérito de distinguir as dinâmicas, especialmente da História Econômica, singulares em cada região e embora seu recorte temporal terminasse em 1820, sua teoria dos ciclos serviu a vários autores nas décadas seguintes.

Embora de inspiração não marxista, a História Econômica é frequentemente confundida com esse paradigma. Assim, em que pese inúmeras obras produzidas na Amazônia até os anos de 1930 e 1940, pouco disso tudo foi integrado à História do Brasil. Já Caio Prado Jr., um autor marxista, em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo [1], destaca as características da economia amazônica e sua singularidade em relação às outras regiões:

 

A maior importância da indústria extrativa não é o seu valor como riqueza entre as demais da colônia. Nisto o seu papel é secundário. Mas doutro lado, avulta como base quase exclusiva da vida humana em uma região que é a maior do país, determinando nela caracteres tão próprios e exclusivos que não se podem assimilar a nada que se passa noutras partes. Refiro-me ao vale do Amazonas, cuja colonização não se compreende sem esta análise da atividade principal e quase única que nela se pratica: a colheita natural dos frutos da floresta e dos rios. [...] Daí a originalidade amazonense, que fará da região um exemplo singular na colônia; um outro Brasil. (Prado Junior, 1961, pp. 208-209)

 

“Um outro Brasil”, Prado Junior sintetiza com essa pequena frase a antinomia extrativismo X agricultura, que tão sobejamente ajudou a marginalizar a região, principalmente no século XIX e que hoje corre o risco de engessá-la economicamente, por ter mantido, com essa atividade, mais de 90% da floresta nativa. Apesar desse importante relevo, o mesmo autor construiu uma visão aventureira de colonização da Amazônia, onde os frutos fáceis da natureza não exigiam senão sua fácil coleta. Nada mais diferente da realidade histórica.

Embora a Amazônia tenha produzido notáveis autores nos quais a temática regional tenha sido explorada, tanto na História como na Literatura, foi Arthur Cézar Ferreira Reis o responsável pela projeção da História da Amazônia no âmbito da Historiografia Nacional, iniciando sua divulgação já a partir dos anos de 1930. Interessante inquirir a razão pela qual não foi uma figura do Pará, com maior projeção intelectual até aquele momento, e sim do Amazonas, a responsável por esse feito. Não é possível responder de todo e satisfatoriamente a tal questão senão com uma pesquisa mais cuidadosa, podemos apenas especular. Nascido no auge do Surto Gumífero (1906), Reis veio a luz em uma cidade (Manaus) que já não era mais uma “tapera de índios”, no dizer de Euclides da Cunha, mas presenciou em sua juventude a decadência da economia da borracha e daquela urbe que o vira nascer. É, possivelmente, de uma sociedade em crise, uma sociedade que já foi rica, mas inicia a empobrecer, que brota o ímpeto de conhecer seu passado. Essa é a fonte de inúmeras obras cujos títulos compõem-se de palavras semelhantes a: ascensão e queda. No mais das vezes o que conduz à busca da ascensão é a queda, o presente buscando o passado, como no competente livro de Barbara Weinstein intitulado A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920[2].

Ferreira Reis publicou sua primeira obra, História do Amazonas (1931), aos vinte e cinco anos. Ainda naquele ano preparava as obras intituladas: O povoamento do Amazonas e Diccionario Geographico e Historico do Amazonas, anunciando a temática na qual se especializou, a História da Amazônia. Nessa obra inaugural, declara: “A história do Amazonas não está escripta. O que se vae ler não passa de um ensaio, de um quadro da evolução amazonense até os primeiros dias da Republica.” (Reis, 1931), evidenciando o estado ainda embrionário e lacunar dos estudos sobre tal temática. No transcurso de 68 anos, de 1931 até 1999, quando publicou sua última obra, intitulada Manaus e outras Vilas, Ferreira Reis trouxe à luz dezenas de pesquisas, quase que totalmente dedicadas a temática da Amazônia. Se não foi o primeiro, e  por sorte não será o último especialista no tema, certamente foi o mais aplicado deles.

Todo esse afã, teve o condão de apresentar ao Brasil uma região que possuía mais história do que as parcas e incipientes informações, quando não falsas, interpretações transmitidas aos brasileiros. Apesar disso, manteve-se a História da Amazônia como um interesse menor na historiografia nacional, quase periférico. Mas a História, entenda-se aqui a extensão do interesse por esta História, deve ser explicada por si própria. Penso que foi a partir dos anos de 1960 que o interesse pela região foi definitivamente alavancado, e vários eventos podem explicar essa ascensão. O conhecimento das riquezas minerais e oriundas da biodiversidade, acumulado desde o período colonial, a imensidão das terras ainda não exploradas, a abertura das estradas de rodagem, os projetos de integração nacional, particularmente visíveis sob a face dos projetos de colonização, a emergência da questão ambiental na qual a Amazônia é apresentada como problema fulcral, a criação de novos estados e o grande processo migratório para a região, ocasionaram que entre 1960 até meados dos anos de 1980 as bases nas quais foi assentado o interesse nacional permanente pela Amazônia. Podemos ainda agregar que, a par das dificuldades de comunicação, nesse período ainda existentes com o restante do país, a Amazônia se via cada vez menos isolada do contexto nacional e internacional.

Outro dado, esse de caráter institucional, deve ser aqui mencionado, a criação e o crescimento dos institutos de pesquisa e educação superior em todos os estados da Amazônia nesse período, fizeram com que a pesquisa se profissionalizasse, provendo a região de pessoal com qualificação acadêmica nas mais diversas áreas de pesquisa, inclusive na História. Esse binômio quantidade/qualificação impulsionou definitivamente os estudos em História Regional em todos os estados que compõem a região norte ou, mais amplamente, a Amazônia Legal.

Nesses quarenta anos muita coisa mudou na História do Brasil ... e muita coisa está para mudar, como é de se esperar. Interpretações de fatos do passado foram demolidas para, com base em sólida pesquisa empírica e documental, dar origem a novas interpretações, ou ao menos a discussões mais bem informadas. Por exemplo, tomemos a Guerra do Paraguai (1864-1870), proposta por Júlio Chiavenato como um Genocídio Americano (1979). Nela encontramos uma série de afirmações que hoje estão a caminho do esquecimento: não, à Inglaterra não interessava aquela guerra; não, o Paraguai não estava em vias de industrialização; não, a população não tinha majoritariamente acesso à educação formal; sim, Solano Lopez era um ditador que não hesitou em armar crianças para cobrir sua retaguarda na batalha de Acosta Anu. Bem, isso é o que diz Francisco Doradioto em Maldita Guerra (2002), contestando fortemente a narrativa de Chiavenato. John Manuel Monteiro, em Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (1994), desfaz o mito do bandeirante paulista como simples caçador e comerciante de escravos indígenas, revelando-nos uma dinâmica econômica e social na São Paulo do século XVII que, sob o ponto de vista da escravidão indígena mais nos lembra a Amazônia. Esses dois trabalhos, apenas exemplos pinçados de uma cópia deles para ilustrar o assunto, são exemplos do revisionismo histórico pois, como afirmava Karl Popper, uma verdade é sempre provisória, até que seja contestada e substituída por outra, também provisória. É de se observar, contudo, que parece ser a inércia uma das características de sua divulgação. Enquanto nos meios acadêmicos são intensamente discutidas, demoram décadas até chegarem aos livros didáticos, de divulgação científica e, assim, à população. Vou finalizar esses exemplos com mais um trabalho revisionista de pesquisa. A diferença é que esse não foi levado em consideração pela própria academia, até onde eu saiba. Também não sei como o assunto é tratado nos países da lusofonia. Trata-se de uma obra de Victorino Magalhães Godinho (1944), que no presente ano completa oitenta e quatro anos de sua publicação[3]. A expansão quatrocentista portuguesa: problemas das origens e da linha de evolução, contesta desde o início que a Expansão Marítima e Comercial portuguesa tenha sido motivada pela Tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Afinal de contas, a Tomada de Ceuta, no Norte da África é de 1415, que inicia o périplo africano feito pelos portugueses trinta e oito anos antes da Tomada de Constantinopla. Godinho declara já no início do livro:

Ora, a intervenção do Infante segundo tais directrizes, requere indispensavelmente que se aceite a existência do plano henriquino das Índias, quere dizer, é necessário supor que D. Henrique pretendia alcançar o Oriente para manter a idéia de que a invasão turca provocou as navegações. (Godinho, 1944).

Ingressei no Curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1980 e desde então nunca encontrei essa contestação em qualquer obra, acadêmica ou didática. Continuamos a ensinar que a Expansão Marítima foi causada pela Queda de Constantinopla, apesar dos bons e extensivos argumentos do prof. Godinho.

Finalmente devo tornar a Rondônia sobre cuja história devo dizer, pela imbricação mútua, mais ajudam as pesquisas realizadas no Amazonas e no Mato Grosso. Já a partir dos anos de 1940 temos notícias de trabalhos relativos à História Local, é de Bohemundo Álvarez Afonso, prefeito de Porto Velho nomeado pelo interventor federal do Amazonas Álvaro Botelho Maia, que governou o município entre 1938 e 1943, a Monografia Histórica – Geográfica de Porto Velho, escrita em 1940 para o Serviço Nacional de Recenseamento, infelizmente perdida. No ano de 1950 foi publicada a obra do odontólogo Antônio Cantanhede, Achegas para a história de Porto Velho[4]. Com um vácuo de 30 anos, são publicadas nos anos de 1980 as obras dos professores Amizael Gomes da Silva, No Rastro dos Pioneiros: um pouco da história rondoniana (1984)[5] e Esron Penha de Menezes, Retalhos para a história de Rondônia (1980)[6], sendo que este último concentrava-se na História de Porto Velho, enquanto que o primeiro tinha um escopo mais amplo, procurando entender a história dessa área desde o período colonial até a criação do Estado.

No âmbito externo ao estado duas obras fundamentais foram publicadas também nessa década, basilares porque impactam o entendimento do nosso processo histórico. A obra da acadêmica, Luíza Volpato,  A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819 (1987)[7] e Guardiães da fronteira: rio Guaporé século XVIII (1989), de Denise Meireles, ambas de caráter monográfico elaboradas no curso de mestrado da UFMT.[8]

Dos anos de 1990 em diante a contribuição da produção historiográfica realizada na Região Amazônica intensificou-se. É impossível no curto espaço disposto por este trabalho falar detalhadamente sobre todos eles, prefiro então detalhar algumas das principais questões abordadas, não sem antes prometer retornar oportunamente, revisando mais detalhadamente o assunto. Em alguns desses trabalhos procurou-se aprofundar os estudos de Volpato e Meireles sobre as relações nas fronteiras coloniais. Outro aspecto de interesse para essa historiografia foi sobre o papel dos bandeirantes do Norte na Expansão para o Oeste promovida pelos colonizadores portugueses. Estudos que contestam a exclusividade do interesse agrícola no estabelecimento dos portugueses no Amazonas, demonstrado brilhantemente por um interrogatório às fontes que revelam profundo interesse na exploração extrativista da sua biodiversidade.  Mas a área que mais deverá merecer atenção dos pesquisadores nos próximos anos será o aprofundamento dos estudos sobre o período da borracha. Novamente aqui a contraposição entre uma História Nacional, genérica e superficial, e uma História Regional, que aprofunda o entendimento do fenômeno. Parece que aqui confirma-se aquele ditado: quando queremos ver a floresta não vemos as árvores. A sugestão de pesquisa, entre outras, é que nem mesmo no auge do surto gumífero a Amazônia foi “terra dos seringais”, de fato, uma estatística de 1893 demonstra que a maioria das unidades produtoras de borracha no Pará possuíam uma produção variada, agrícola, pecuária e extrativista, o que contraria a ideia de especialização produtiva do seringal. E assim, diversas pesquisas contrariam pressupostos já firmados por nossa história, confirmando os pesquisadores do norte do Brasil a essência da prática da boa História, o revisionismo.

Bem, devo terminar aqui esse pequeno ensaio, porque não passa disso ... um ensaio. Creio que exagerei e voltei muito no tempo, fui enfeitiçado por aquela entidade que March Bloch denominou o Demônio das Origens. Acredito, contudo, que essas origens historiográficas ditam parcialmente o presente de nossa produção historiográfica, com suas lacunas e omissões. Embora não seja o determinante em última instância para nossa escolha da problemática da pesquisa, o presente também se impõe. Creio também que deixei de citar mais amiudadamente pesquisas e autores mais contemporâneos, defeito sobre o qual atribuo a culpa ao tempo, não aquele tempo social dos Analles, mas ao tempo do relógio, que limita essa apresentação. Agradecendo a todos pela paciência com a qual me acompanharam até aqui, finalizo, dispondo-me a responder questionamentos que queriam manifestar-me.

Porto Velho, 25/11/2024.



[1] PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 6.ª edição 1961.

[2] WEINSTEIN, Barbara A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). 1ª edição. São Paulo: Hucitec/USP, 1993.

[3] GODINHO, Vitorino. Magalhães. A expansão quatrocentista portuguesa. Lisboa: Empresa Contemporânea de Edições Ltda. 1944

[4] CANTANHEDE, Antônio. Achegas para a história de Porto Velho. Manaus: Seção de Artes Gráficas da Escola Técnica de Manaus, 1950.

[5] SILVA, Amizael Gomes. No Rastro dos Pioneiros: um pouco da história rondoniana. Porto Velho (RO): SEDUC, 1984.

[6] MENEZES, Esron Penha de. Retalhos para a história de Rondônia. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1980.

[7] VOLPATO, Luíza Rios Ricci. A conquista da terra no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil,1719-1819. São Paulo (SP): Hucitec; Brasília (DF): INL / Minc-Pró Memória, 1987.

[8] MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: rio Guaporé século XVIII. Petrópolis (RJ): Vozes, 1989.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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