Quarta-feira, 27 de novembro de 2024 - 14h07
O ensaio que segue foi
elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado
de Ensino e Pesquisa e a Semana de História – 2024, promovido pelo Departamento
de História da Fundação Universidade Federal de Rondônia cujo tema é “Histórias
Amazônicas: práticas sociais, culturas e memórias”.
Devo primeiramente agradecer
aos coordenadores deste seminário pelo honroso convite, mormente envaidecedor
neste momento em que encerro minha carreira de professor universitário, pois creio
ser esta minha última intervenção como participante da mesa de abertura de
evento presencial neste tipo de encontro.
Assim, em razão das
considerações acima exposta, ocorreu-me propor um painel sobre os estudos
realizados acerca da História da Amazônia nos últimos 40 anos, que é o período
de tempo em que resido neste estado. Acompanhei em minha vida profissional,
iniciada quando aqui cheguei recém-formado em 17 de fevereiro de 1984, toda
essa evolução em razão de minha atividade profissional de professor de História
e, muito modestamente, de historiador. Coincidente no tempo com essa razão
pessoal há também a razão histórica, pois foi nesse mesmo período, em 08 de
julho de 1982, que por lei federal foi inaugurado o ensino universitário
permanente em Rondônia, com a criação da UNIR. Antecipadamente, porém, devo
alertar ao leitor que: a) a proposta de ensaio ora realizada, não poderá evitar
a tentativa de construção de um painel mais amplo, na medida em que será
necessário situá-la no contexto mais geral da História do Brasil e b) não será
possível mencionar senão uma pequena parte, a título de exemplo apenas, dos
autores que deveriam compor um estudo mais aprofundado do assunto. Feitas as
ressalvas, comecemos então.
Nos idos dos anos de 1980 a
História no Brasil se encontrava em um daqueles raros momentos de efervescência,
tanto na sociedade como no ambiente acadêmico. Em razão do sopro de liberdade
ocasionado pela redemocratização, naquele momento a discussão sobre o nosso
passado recente impunha-se, embora ainda com o ranço de velhas teorias que a
dinâmica da pesquisa e as transformações sociais ocorridas no Brasil nas
décadas posteriores voltaria a examinar a partir de novos pressupostos. Sim,
porque a História, embora ciência, não é exata, e a dinâmica social imprime-lhe
influência. 1964 foi um golpe de estado ou um contragolpe preventivo para
manter a Democracia? Essa é a questão mais radical, cujo debate espinhoso fere
a consciência nacional até hoje. Para as finalidades aqui propostas, não
importa a resposta, mas ressaltar que, por mais dolorido que seja não podemos fugir
à questão tão intensamente sentida por nós, examinar os argumentos e sua
veracidade ou incompletude, que nesse caso pode conduzir qualquer um deles à
sua falseabilidade. É que, sem ofensa, o revisionismo é essência na profissão
do historiador, não podemos abandoná-lo senão sob a condição de aceitarmos
incondicionalmente tudo o que já foi escrito sobre o passado. Concedo que para
as gerações mais novas esta palavra é forte, assumindo um significado quase
acusatório, então pode ser hoje substituída pela palavra crítica. Seja como for,
para nós historiadores de Rondônia a dinâmica da abordagem histórica estava em
situação diferente daquela percebida no contexto nacional. A nossa percepção
era a urgência que se impunha da regionalização das pesquisas, dar conta do
processo histórico em Rondônia, conhecer melhor a nossa então pouco conhecida
História. Para nós restava a tarefa de dar conta da História da Amazônia e da
História de Rondônia juntas. Em outras palavras, como poderíamos analisar
aquele momento histórico e suas repercussões se não sabíamos como chegamos ali?
É importante lembrar aqui nossa ignorância a respeito desse processo, pois a
quase totalidade de nós havíamos estudado em cursos superiores que não
comtemplavam a História da Amazônia, menos ainda Rondônia, rincão desconhecido
pela maioria dos nossos conterrâneos. O que conhecíamos sobre a História da
Amazônia compunha-se de um montante de fatos cuja paisagem apresentava um
conjunto de informações de caráter episódico, sem maior densidade analítica ou
factual.
Além disso, naquele momento
inicial estávamos aqui em Rondônia imersos em um ambiente de otimismo
ilimitado, apesar das ainda precárias estruturas que ambientavam a criação do
Estado. Predominava o triunfalismo quanto ao nosso futuro também, pois éramos a
mais nova estrela no azul da União. Ora, historiadores também são homens de seu
tempo, e não conseguem escapar, apesar do estudo sistemático, das influências
cujas forças o momento histórico mais ou menos lhe fazem aceitar. Não éramos
espectadores inertes ou desinteressados dos episódios de impacto nacional
transcorridos naqueles anos. A causa do nosso aparente desinteresse pelas
questões mais urgentes da pauta política nacional era outra, e tinha raiz na
própria História de Rondônia. É indispensável notar que a História de Rondônia,
em seu âmbito institucional ou político-administrativo, é marcada por dois
momentos importantes, a criação do Território Federal do Guaporé (1943) e do
Estado de Rondônia (1981), os dois eventos em períodos de exceção à democracia.
Ambos os momentos foram precedidos de grande expectativa da população e
reverteram, de um modo ou de outro, em benefício eleitoral aos seus promotores.
No caso do primeiro, o principal beneficiado foi Aluísio Pinheiro Ferreira. Nomeado
governador do Território em 1943 foi eleito deputado federal em 1947 e por mais
duas legislaturas. No caso da criação do Estado de Rondônia, a evidência maior
desse ambiente foram as eleições de 1982, quando a Arena, partido que dava
suporte ás forças políticas do regime inaugurado em 1964, venceu de maneira
incontestável, vitória cuja criação do estado de Rondônia carrega a maior
responsabilidade.
No caso de 1964, penso que os
historiadores regionais pouco se debruçaram sobre esse período, ao menos de
forma aprofundada, e ainda se pouco se debruçam, simplesmente pelo fato de que
1964, embora tenha representado uma ruptura no jogo de forças políticas em
disputa no território, não representou um rompimento significativo na mínima
esfera do regime representativo disponível ao eleitorado local, a eleição para
deputado federal. Assim, podemos dizer que de 1964 em diante Rondônia viu
crescer, mesmo com as limitações impostas pelo regime vigente, a participação
político-eleitoral, com a criação de novos municípios e a disposição de mais
cargos eletivos no âmbito federal. Podemos dizer então que a percepção de
“abertura democrática” chegou à população de Rondônia, mesmo com as limitações
institucionais do Regime de 1964, antes da “Abertura Política”, que se inaugurou
com os anos de 1980.
Por outro lado, se
considerarmos os estudos relativos à História da Amazônia, creio que a partir
daqueles anos de 1980 sua necessidade começou a se impor com mais intensidade
por várias razões. A dinâmica histórica ocorrida desde o período colonial no
espaço que ocupou a antiga capitania do Grão-Pará (grosso modo a Região Norte
de hoje) promoveu, ao longo do tempo sua divisão, de modo que essa capitania
viria a ser segmentada sucessivamente para dar origem à capitania de São José
do Rio Negro (Amazonas) e depois aos territórios de Roraima, Amapá, Acre e
Guaporé. Ainda, essa grande região e suas subdivisões, apresenta em seu
desenrolar histórico dinâmicas razoavelmente independentes daquelas existentes
nas demais regiões do país. Destarte, para o interessado nesta região, não era
suficiente o estudo da História do Brasil, pois deixava ao estudioso à tarefa
de preencher enormes lacunas que, sempre existentes em estudos gerais, eram
ainda maiores nesse caso.
Normalmente, consideramos a
produção de uma História Regional como necessária para que esta se integre de
forma menos lacunar àquela mais geral. Isto vale principalmente para superar
esta virtual antinomia histórica entre o norte e o sul do Brasil, embora
creiamos sua eficiência estruturalmente limitada. Tal limitação reside parcialmente
no fato de que, na verdade, denominamos História do Brasil à História do
Litoral Brasileiro, à qual se agrega a hinterlândia de Minas Gerais apenas e em
razão principalmente do Ciclo do Ouro, Inconfidência Mineira e depois de seu
papel no jogo político da República Oligárquica. Também, mantêm praticamente
esquecidas as áreas do Mato Grosso, Goiás, Amazônia e as antigas capitanias
mais extremas do Maranhão e Piauí. Ainda, e também, devemos apresentar sérias
ressalvas quanto à larga exclusão dos atuais estados da Região Sul e aos
Estados do Nordeste, estes após a decadência da produção de açúcar como grande geradora
de riqueza. Do exposto, somos levados à conclusão que são necessárias as
Histórias Regionais, mas para que possamos produzir uma História do Brasil essa
mesmo terá que ser refeita, pois o liame comum deve ser mais radical do que
simplesmente a união de territórios sob a mesma bandeira. Em outras palavras,
devemos supor que haja uma historicidade em comum, que nos abriga sob o mesmo guarda-chuva.
Assim, nossa História do
Brasil carrega consigo defeito congênito, é um corpo hipertrofiado, sem o
equilíbrio e a proporção entre suas partes. E transmite geneticamente essa
característica às suas pequenas descendentes, as histórias regionais, que em
tudo lhe seguem o caráter e a disposição. Antes que seja aposta uma objeção,
esclareço de pronto de que não estou falando aqui de qualquer tipo de relação
causa X efeito, porque essa é comum a toda a História. Outro aspecto importante
a ser relevado é que, iniciada a institucionalizar-se em um período onde fazer
a História era fundamentalmente cuidar da dinâmica política-institucional
(geralmente culpabilizamos por isso o Positivismo), essa característica naturalmente
facilitou sua hipertrofia, pois a história principal era aquela dos centros
políticos de decisões. Com o tempo evoluímos, ou mudamos, pois, evoluir ainda é
uma palavra carregada de preconceitos valorativos, para a História Econômica e
para a História Social, com todas as derivações destes dois últimos recortes,
por exemplo: História Agrária, História das Ideias e mais recentemente as Histórias
Étnicas e de Gênero. Enfim uma gama infindável de recortes e abordagens, mantendo,
porém, o foco nas áreas centrais da dinâmica política.
Enfim, no caso da Amazônia, e
creio também no Centro Oeste, particularmente suas áreas mais ao norte, também
assim, os estados já citados que compõem o Nordeste, cremos que dinâmicas
marcantemente diferenciadas ocasionaram também suas lacunas, no contexto do
entendimento de uma História do Brasil. Fiquemos somente com a Região Norte,
que é a principal área a ser observada nesse ensaio. Já em sua origem possui
uma dinâmica político-administrativa distinta. O marco de sua ocupação
definitiva é o ano de 1616 quando Francisco Caldeira Castelo Branco fundou o
Forte do Presépio, origem da cidade de Belém do Pará. Compôs, juntamente com a
capitania do Rio Negro e a do Piauí, o Governo Geral do Estado do Maranhão e
Grão-Pará, cuja administração era separada do Estado do Brasil, mais ao sul.
Eram unidades político-administrativas coloniais com lógicas de governo
distintas no importante aspecto da autonomia. O Maranhão e Grão-Pará, eram
governados por um capitão general subordinado ao governo de Lisboa, o Estado do
Brasil era governado por um vice-rei, com maior autonomia em relação ao governo
metropolitano.
Sob o ponto de vista econômico
as situações também eram distintas: enquanto no litoral do Nordeste se
desenvolvia a cultura do açúcar, produzindo uma enorme quantidade de riqueza, o
Grão-Pará possuía uma economia pobre, baseada no extrativismo vegetal variado,
ora com a predominância de um, ora de outro produto. A larguíssima extensão
territorial combinada com a baixa densidade demográfica, a ausência de núcleos
urbanos significativos, cuja exceção era encontrada em Belém, cidade à qual se
acrescentou como significante apenas no final do século XIX Manaus. O uso
intensivo da mão de obra indígena, escravizada ou produto de relações sociais
de trabalho assemelhadas pelo sistema do aviamento, muito cedo instalado na região
em razão de sua desmonetização, compunham um marcante contraste com o Estado do
Brasil.
Fica então evidente que,
apesar de compor a História de uma mesma colônia o norte e o sul do Brasil
tinham a separá-lo as dinâmicas sociais distintas e o papel periférico
atribuído ao norte. Não por acaso então foi no Sul a origem em terras
brasileiras da primeira teoria que buscava dar conta do processo histórico em
todo o território nacional, a teoria dos ciclos econômicos. Publicada em 1937,
a obra de Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), tem seu
recorte temporal limitado a 1820 ou seja, muito antes da goma elástica surgir
como importante produto de exportação. Contudo, teve seu conceito central
utilizado exaustivamente por décadas, inclusive aplicado ao Surto Gumífero, e
até hoje o termo ciclo econômico é utilizado intuitivamente, sem dar conta a
maior parte dos seus usuários das consequências teóricas de sua utilização. Não
que inexistissem Histórias do Brasil, Robert Southey, inglês aqui residente
publicou a primeira delas em português, no Brasil, em 1862. Antes dele, Francisco
Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, publicou uma História Geral do
Brasil a partir de 1854 por encomenda do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, instituição fundada e sob patrocínio de Dom Pedro II. Os tempos não
são exclusivamente bons, nem maus, embora contenham sempre em si e combinadas
desigualmente essas duas qualidades. Assim, podemos dizer que nesse mister
historiográfico aqueles foram bons tempos, quando o governante se interessava
pessoalmente pela ciência.
Existiram outras no Segundo
Reinado, mas apesar de serem volumosas, poderíamos mesmo dizer enciclopédicas, escritas
em vários volumes e provenientes de ricos acervos, que permitiram aos autores
abordarem fatos históricos relativos todas as regiões do Brasil com uma
exatidão cronológica e rigor factual quase que irreparáveis, não possuíam uma
linha teórica definida, nem um leitmotiv,
senão o fato de terem se passado no mesmo país. Assim, relatavam os fatos das
mais diversas naturezas que caíam em suas mãos, notadamente fatos da História
Política. Nunca é demais repetir: embora seja hoje criticada, a História
Econômica de Roberto Simonsen teve o mérito de distinguir as dinâmicas,
especialmente da História Econômica, singulares em cada região e embora seu
recorte temporal terminasse em 1820, sua teoria dos ciclos serviu a vários
autores nas décadas seguintes.
Embora de inspiração não
marxista, a História Econômica é frequentemente confundida com esse paradigma.
Assim, em que pese inúmeras obras produzidas na Amazônia até os anos de 1930 e
1940, pouco disso tudo foi integrado à História do Brasil. Já Caio Prado Jr., um
autor marxista, em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo [1], destaca as
características da economia amazônica e sua singularidade em relação às outras
regiões:
A
maior importância da indústria extrativa não é o seu valor como riqueza entre
as demais da colônia. Nisto o seu papel é secundário. Mas doutro lado, avulta
como base quase exclusiva da vida humana em uma região que é a maior do país,
determinando nela caracteres tão próprios e exclusivos que não se podem
assimilar a nada que se passa noutras partes. Refiro-me ao vale do Amazonas,
cuja colonização não se compreende sem esta análise da atividade principal e
quase única que nela se pratica: a colheita natural dos frutos da floresta e
dos rios. [...] Daí a originalidade amazonense, que fará da região um exemplo
singular na colônia; um outro Brasil. (Prado Junior, 1961, pp. 208-209)
“Um outro Brasil”, Prado
Junior sintetiza com essa pequena frase a antinomia extrativismo X agricultura,
que tão sobejamente ajudou a marginalizar a região, principalmente no século
XIX e que hoje corre o risco de engessá-la economicamente, por ter mantido, com
essa atividade, mais de 90% da floresta nativa. Apesar desse importante relevo,
o mesmo autor construiu uma visão aventureira de colonização da Amazônia, onde
os frutos fáceis da natureza não exigiam senão sua fácil coleta. Nada mais
diferente da realidade histórica.
Embora a Amazônia tenha
produzido notáveis autores nos quais a temática regional tenha sido explorada,
tanto na História como na Literatura, foi Arthur Cézar Ferreira Reis o
responsável pela projeção da História da Amazônia no âmbito da Historiografia Nacional,
iniciando sua divulgação já a partir dos anos de 1930. Interessante inquirir a
razão pela qual não foi uma figura do Pará, com maior projeção intelectual até
aquele momento, e sim do Amazonas, a responsável por esse feito. Não é possível
responder de todo e satisfatoriamente a tal questão senão com uma pesquisa mais
cuidadosa, podemos apenas especular. Nascido no auge do Surto Gumífero (1906),
Reis veio a luz em uma cidade (Manaus) que já não era mais uma “tapera de
índios”, no dizer de Euclides da Cunha, mas presenciou em sua juventude a
decadência da economia da borracha e daquela urbe que o vira nascer. É,
possivelmente, de uma sociedade em crise, uma sociedade que já foi rica, mas
inicia a empobrecer, que brota o ímpeto de conhecer seu passado. Essa é a fonte
de inúmeras obras cujos títulos compõem-se de palavras semelhantes a: ascensão
e queda. No mais das vezes o que conduz à busca da ascensão é a queda, o
presente buscando o passado, como no competente livro de Barbara Weinstein
intitulado A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920[2].
Ferreira Reis publicou sua
primeira obra, História do Amazonas (1931), aos vinte e cinco anos. Ainda
naquele ano preparava as obras intituladas: O povoamento do Amazonas e
Diccionario Geographico e Historico do Amazonas, anunciando a temática na qual
se especializou, a História da Amazônia. Nessa obra inaugural, declara: “A
história do Amazonas não está escripta. O que se vae ler não passa de um ensaio,
de um quadro da evolução amazonense até os primeiros dias da Republica.” (Reis,
1931), evidenciando o estado ainda embrionário e lacunar dos estudos sobre tal
temática. No transcurso de 68 anos, de 1931 até 1999, quando publicou sua
última obra, intitulada Manaus e outras Vilas, Ferreira Reis trouxe à luz
dezenas de pesquisas, quase que totalmente dedicadas a temática da Amazônia. Se
não foi o primeiro, e por sorte não será
o último especialista no tema, certamente foi o mais aplicado deles.
Todo esse afã, teve o condão
de apresentar ao Brasil uma região que possuía mais história do que as parcas e
incipientes informações, quando não falsas, interpretações transmitidas aos
brasileiros. Apesar disso, manteve-se a História da Amazônia como um interesse menor
na historiografia nacional, quase periférico. Mas a História, entenda-se aqui a
extensão do interesse por esta História, deve ser explicada por si própria.
Penso que foi a partir dos anos de 1960 que o interesse pela região foi
definitivamente alavancado, e vários eventos podem explicar essa ascensão. O conhecimento
das riquezas minerais e oriundas da biodiversidade, acumulado desde o período
colonial, a imensidão das terras ainda não exploradas, a abertura das estradas
de rodagem, os projetos de integração nacional, particularmente visíveis sob a
face dos projetos de colonização, a emergência da questão ambiental na qual a
Amazônia é apresentada como problema fulcral, a criação de novos estados e o
grande processo migratório para a região, ocasionaram que entre 1960 até meados
dos anos de 1980 as bases nas quais foi assentado o interesse nacional
permanente pela Amazônia. Podemos ainda agregar que, a par das dificuldades de
comunicação, nesse período ainda existentes com o restante do país, a Amazônia se
via cada vez menos isolada do contexto nacional e internacional.
Outro dado, esse de caráter
institucional, deve ser aqui mencionado, a criação e o crescimento dos
institutos de pesquisa e educação superior em todos os estados da Amazônia
nesse período, fizeram com que a pesquisa se profissionalizasse, provendo a
região de pessoal com qualificação acadêmica nas mais diversas áreas de
pesquisa, inclusive na História. Esse binômio quantidade/qualificação
impulsionou definitivamente os estudos em História Regional em todos os estados
que compõem a região norte ou, mais amplamente, a Amazônia Legal.
Nesses quarenta anos muita
coisa mudou na História do Brasil ... e muita coisa está para mudar, como é de
se esperar. Interpretações de fatos do passado foram demolidas para, com base
em sólida pesquisa empírica e documental, dar origem a novas interpretações, ou
ao menos a discussões mais bem informadas. Por exemplo, tomemos a Guerra do
Paraguai (1864-1870), proposta por Júlio Chiavenato como um Genocídio Americano
(1979). Nela encontramos uma série de afirmações que hoje estão a caminho do
esquecimento: não, à Inglaterra não interessava aquela guerra; não, o Paraguai
não estava em vias de industrialização; não, a população não tinha
majoritariamente acesso à educação formal; sim, Solano Lopez era um ditador que
não hesitou em armar crianças para cobrir sua retaguarda na batalha de Acosta
Anu. Bem, isso é o que diz Francisco Doradioto em Maldita Guerra (2002),
contestando fortemente a narrativa de Chiavenato. John Manuel Monteiro, em
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (1994), desfaz
o mito do bandeirante paulista como simples caçador e comerciante de escravos
indígenas, revelando-nos uma dinâmica econômica e social na São Paulo do século
XVII que, sob o ponto de vista da escravidão indígena mais nos lembra a
Amazônia. Esses dois trabalhos, apenas exemplos pinçados de uma cópia deles
para ilustrar o assunto, são exemplos do revisionismo histórico pois, como
afirmava Karl Popper, uma verdade é sempre provisória, até que seja contestada
e substituída por outra, também provisória. É de se observar, contudo, que
parece ser a inércia uma das características de sua divulgação. Enquanto nos
meios acadêmicos são intensamente discutidas, demoram décadas até chegarem aos
livros didáticos, de divulgação científica e, assim, à população. Vou finalizar
esses exemplos com mais um trabalho revisionista de pesquisa. A diferença é que
esse não foi levado em consideração pela própria academia, até onde eu saiba. Também
não sei como o assunto é tratado nos países da lusofonia. Trata-se de uma obra
de Victorino Magalhães Godinho (1944), que no presente ano completa oitenta e
quatro anos de sua publicação[3]. A expansão quatrocentista
portuguesa: problemas das origens e da linha de evolução, contesta desde o
início que a Expansão Marítima e Comercial portuguesa tenha sido motivada pela
Tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Afinal de contas, a Tomada de
Ceuta, no Norte da África é de 1415, que inicia o périplo africano feito pelos
portugueses trinta e oito anos antes da Tomada de Constantinopla. Godinho
declara já no início do livro:
Ora, a
intervenção do Infante segundo tais directrizes, requere indispensavelmente que
se aceite a existência do plano henriquino das Índias, quere dizer, é
necessário supor que D. Henrique pretendia alcançar o Oriente para manter a
idéia de que a invasão turca provocou as navegações. (Godinho, 1944).
Ingressei no Curso de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1980 e desde então nunca
encontrei essa contestação em qualquer obra, acadêmica ou didática. Continuamos
a ensinar que a Expansão Marítima foi causada pela Queda de Constantinopla,
apesar dos bons e extensivos argumentos do prof. Godinho.
Finalmente devo tornar a
Rondônia sobre cuja história devo dizer, pela imbricação mútua, mais ajudam as
pesquisas realizadas no Amazonas e no Mato Grosso. Já a partir dos anos de 1940
temos notícias de trabalhos relativos à História Local, é de Bohemundo Álvarez
Afonso, prefeito de Porto Velho nomeado pelo interventor federal do Amazonas
Álvaro Botelho Maia, que governou o município entre 1938 e 1943, a Monografia
Histórica – Geográfica de Porto Velho, escrita em 1940 para o Serviço Nacional
de Recenseamento, infelizmente perdida. No ano de 1950 foi publicada a obra do
odontólogo Antônio Cantanhede, Achegas para a história de Porto Velho[4]. Com um vácuo de 30 anos,
são publicadas nos anos de 1980 as obras dos professores Amizael Gomes da
Silva, No Rastro dos Pioneiros: um pouco da história rondoniana (1984)[5] e Esron Penha de Menezes,
Retalhos para a história de Rondônia (1980)[6], sendo que este último
concentrava-se na História de Porto Velho, enquanto que o primeiro tinha um
escopo mais amplo, procurando entender a história dessa área desde o período
colonial até a criação do Estado.
No âmbito externo ao estado
duas obras fundamentais foram publicadas também nessa década, basilares porque
impactam o entendimento do nosso processo histórico. A obra da acadêmica, Luíza
Volpato, A conquista da terra no
universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil, 1719-1819 (1987)[7] e Guardiães da fronteira:
rio Guaporé século XVIII (1989), de Denise Meireles, ambas de caráter
monográfico elaboradas no curso de mestrado da UFMT.[8]
Dos anos de 1990 em diante a
contribuição da produção historiográfica realizada na Região Amazônica
intensificou-se. É impossível no curto espaço disposto por este trabalho falar
detalhadamente sobre todos eles, prefiro então detalhar algumas das principais
questões abordadas, não sem antes prometer retornar oportunamente, revisando
mais detalhadamente o assunto. Em alguns desses trabalhos procurou-se
aprofundar os estudos de Volpato e Meireles sobre as relações nas fronteiras
coloniais. Outro aspecto de interesse para essa historiografia foi sobre o
papel dos bandeirantes do Norte na Expansão para o Oeste promovida pelos
colonizadores portugueses. Estudos que contestam a exclusividade do interesse
agrícola no estabelecimento dos portugueses no Amazonas, demonstrado
brilhantemente por um interrogatório às fontes que revelam profundo interesse
na exploração extrativista da sua biodiversidade. Mas a área que mais deverá merecer atenção dos
pesquisadores nos próximos anos será o aprofundamento dos estudos sobre o
período da borracha. Novamente aqui a contraposição entre uma História
Nacional, genérica e superficial, e uma História Regional, que aprofunda o
entendimento do fenômeno. Parece que aqui confirma-se aquele ditado: quando
queremos ver a floresta não vemos as árvores. A sugestão de pesquisa, entre
outras, é que nem mesmo no auge do surto gumífero a Amazônia foi “terra dos
seringais”, de fato, uma estatística de 1893 demonstra que a maioria das
unidades produtoras de borracha no Pará possuíam uma produção variada,
agrícola, pecuária e extrativista, o que contraria a ideia de especialização
produtiva do seringal. E assim, diversas pesquisas contrariam pressupostos já
firmados por nossa história, confirmando os pesquisadores do norte do Brasil a
essência da prática da boa História, o revisionismo.
Bem, devo terminar aqui esse
pequeno ensaio, porque não passa disso ... um ensaio. Creio que exagerei e
voltei muito no tempo, fui enfeitiçado por aquela entidade que March Bloch
denominou o Demônio das Origens. Acredito, contudo, que essas origens
historiográficas ditam parcialmente o presente de nossa produção
historiográfica, com suas lacunas e omissões. Embora não seja o determinante em
última instância para nossa escolha da problemática da pesquisa, o presente
também se impõe. Creio também que deixei de citar mais amiudadamente pesquisas
e autores mais contemporâneos, defeito sobre o qual atribuo a culpa ao tempo,
não aquele tempo social dos Analles,
mas ao tempo do relógio, que limita essa apresentação. Agradecendo a todos pela
paciência com a qual me acompanharam até aqui, finalizo, dispondo-me a
responder questionamentos que queriam manifestar-me.
Porto Velho, 25/11/2024.
[1]
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo. 6.ª edição 1961.
[2] WEINSTEIN,
Barbara A borracha na Amazônia: expansão
e decadência (1850-1920). 1ª edição. São Paulo: Hucitec/USP, 1993.
[3]
GODINHO, Vitorino. Magalhães. A expansão
quatrocentista portuguesa. Lisboa: Empresa Contemporânea de Edições Ltda.
1944
[4] CANTANHEDE,
Antônio. Achegas para a história de
Porto Velho. Manaus: Seção de Artes Gráficas da Escola Técnica de Manaus,
1950.
[5] SILVA,
Amizael Gomes. No Rastro dos Pioneiros:
um pouco da história rondoniana. Porto Velho (RO): SEDUC, 1984.
[6] MENEZES,
Esron Penha de. Retalhos para a história
de Rondônia. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1980.
[7] VOLPATO,
Luíza Rios Ricci. A conquista da terra
no universo da pobreza: formação da fronteira oeste do Brasil,1719-1819.
São Paulo (SP): Hucitec; Brasília (DF): INL / Minc-Pró Memória, 1987.
[8] MEIRELES,
Denise Maldi. Guardiães da fronteira:
rio Guaporé século XVIII. Petrópolis (RJ): Vozes, 1989.
Nota introdutória: Catalina o pássaro de aço nos céus da Amazônia
Nesses tempos, quando a população de Rondônia se vê ameaçada pela suspensão de alguns voos e mudanças de rota das companhias aéreas que nos servem,
Todo boato tem um fundo de verdade: o Ponto Velho, o Porto do Velho e Porto Velho
O último artigo que publiquei aqui tratou da figura do “velho Pimentel”, um personagem que, apesar de seu caráter até agora mítico, parece estar ind
A origem da cidade de Porto Velho e o velho Pimentel
Todos sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao
Ciclos econômicos e migração marcaram a história de Porto Velho desde a sua criação
Há mais de 100 anos um trecho do alto Madeira presenciava o surgimento de uma nova povoação, em razão do início da construção da Estrada de Ferro Ma