Domingo, 13 de novembro de 2016 - 08h55
Por Dante Ribeiro da Fonseca.
"This company will return one day
Though we feel your tears it's the price we pay
For there's prizes to be taken and glory to be found
Cut free the chains make fast your souls
We are Eldorado bound...
I will take you always forever together
Until hell call our names...[1]"
Pirates. Emerson, Lake and Palmer
Antes de iniciar, quero dedicar esse pequeno artigo ao autor de “Capitão Alípio: um pouco do verdadeiro e outro tanto do folclórico” do confrade da Academia de Letras de Rondônia - ACLER, amigo e escritor Hugo Evangelista da Silva, pelo tanto que compartilhamos de interesse pela Amazônia.
A segunda tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré, realizada em 1878 pela empreiteira P. & T. Collins, iniciou já sobre os escombros e fantasmas produzidos pelo fracasso da empreiteira Public Work Construction Co., em 1872. Os escombros consistiam nas poucas (e precárias na maioria) edificações erguidas por aquela empreiteira, que se arruinavam desde então em Santo Antonio do Rio Madeira. Em meio à luxuriante, úmida e destrutiva floresta tropical, provisões de todo o tipo apodreciam e enferrujavam outros artefatos. Os espólios da Public Work degradavam-se, clamando, à espera daqueles que viriam redimi-los ... por breve tempo, embora. Já os fantasmas compunham-se daquelas manifestações que provocavam duas qualidades de arrepios: as revelações do sobrenatural e aquelas provenientes do mundo real. Muito mais do que aquelas inacreditáveis almas penadas dos mortos, trabalhadores sacrificados no altar da modernidade, em honra à divindade do capital (Mamom), em uma aloprada tentativa de obra pública, era mais temível, mais aterrorizante do ponto de vista da elite empresarial, a perspectiva de fracasso. Era mesmo dolorosamente perceptível ao bolso, órgão mais sensível do corpo dos investidores, dotado, como vimos, de religião própria e de apropriada espiritualidade. Assim, a experiência de 1872, com os prejuízos e processos legais que provocou, assombrava mais efetivamente tanto ao concessionário da ferrovia, George Earl Church e aos seus empreiteiros os irmãos Peter e Thomas Collins, quanto àqueles que investiram seus capitais no empreendimento.
É, portanto, sob esse prenúncio da fatalidade que a expedição Collins parte da Filadélfia no dia 2 de janeiro de 1878 e chega a Santo Antonio no dia 19 de fevereiro do mesmo ano. Disse Karl Marx que “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.” Nesse caso, como que desmentindo a assertiva, a história repetirá a tragédia. Desabastecimento, escassez de recursos, doenças e mortes, adicionadas a rebelião de trabalhadores, pintarão em fortes cores a paisagem desse drama.
Contudo, apesar dos prognósticos nebulosos que o tentame de 1872 poderia sugerir, a tentativa seguinte iniciou em meio a um orgulhoso otimismo nos Estados Unidos. Já vimos, no artigo antecedente (“Os jornais, a Madeira-Mamoré, a P. & T. Collins e o orgulho norte-americano”, Gente de Opinião de 03/11/2016), que o fato da construção da Madeira-Mamoré ser realizada totalmente com equipamentos, capitais e técnicos norte-americanos, foi motivo de altivas manifestações da imprensa daquele país. Além disso, parecia que a capacidade norte-americana de superar quaisquer obstáculos era invencível, a se acreditar em um dos artigos publicados na época. Não tinham eles estendido ferrovias por distâncias enormes? Não haviam eles ligado a costa Leste à costa Oeste, o Atlântico ao Pacífico, por ferrovia em 1869? Não venceram florestas, pântanos e montanhas? Contudo, cedo ainda esse otimismo vai dar lugar às perspectivas pessimistas. Entre janeiro de 1878 e fevereiro de 1879, muita coisa no estado de espírito dos empreendedores da Madeira & Mamoré mudou. Mas, e essa é a questão aqui, como refletirão os jornais da época essa mudança?
Nesse ponto, já percebeu o leitor que necessariamente dois temas serão enfocados nesse pequeno estudo: o fato jornalístico e o fato histórico, ambos dotados de dinâmica e natureza próprias, que em algum momento se encontram, aliam ou duelam. O jornalismo pode informar ou desinformar. Desinforma quando distorce, omite, não revela, atrofia ou hipertrofia a realidade da notícia, tal como se apresentam as possibilidades de percepção no momento em que ela é registrada. Como todos os fenômenos sociais, existe sob uma perspectiva de classe, mas o fato jornalístico que queremos discutir aqui não se inclui nessa dimensão. Mais para além dos limites dificilmente transponíveis da ideologia, podemos discutir também o jornalismo como um fenômeno de mercado e as páginas do jornal como espaços indispensáveis à realização do lucro. Parece ser essa última característica que nos conduzirá a um ensaio de hipótese explicativa da própria notícia que é central aqui. O jornalismo como fenômeno social que demonstrou toda sua competência em formar opiniões no século XIX, muitas vezes ao informar deforma em razão de desinformar. Evidentemente essa deformação da opinião pública pode ser não proposital, por incapacidade ou impossibilidade de informar corretamente. Pode ser também proposital, quando atende com parcialidade, ou desonesto espírito de partido, ou ainda visando algum ganho material, aos interesses de determinados grupos ou pessoas. Antes que os jornais, e os jornalistas, se voltem contra esse que vos escreve adianto que a História também sofre o mesmo perigo e digo que ambos, História e Jornalismo, apenas o evitam com o remédio da liberdade. É a liberdade e a multiplicidade de manifestações que permitem ao consumidor, tanto da História quanto do Jornalismo, suspeitar de manipulações.
Em 26 de fevereiro de 1879, mais de um ano após a partida do primeiro navio transportando equipamentos e pessoal para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, circulou na cidade de Nova York o número 1.849 do jornal vespertino ilustrado "The Daily Graphic”. Nessa edição apresentava um bucólico conjunto paisagístico do pátio inicial da ferrovia, através dos desenhos de Santo Antonio do Rio Madeira. O texto que acompanhava os desenhos expressava um otimismo que o conhecimento de outras fontes jornalísticas daqueles meses tornava pouco convincente. Para o leitor norte-americano poderia resultar a visão daquelas imagens em uma impressão quase que paradisíaca do evento. Contudo, o texto e as imagens ocultavam a realidade do fracasso econômico e da tragédia humana que ocorria naquele local.
O texto que acompanha as imagens tem como título: “Construção de ferrovia no Brasil: Supervisionados pelos contratantes americanos, prosseguem os trabalhos”. Inicia mencionando os preparativos para o reinício das obras e o trágico acidente do navio “Metropolis” em 31 de janeiro de 1878. Esse acidente ocorreu no litoral norte americano e vitimou trabalhadores que vinham ocupar-se na Madeira & Mamoré. Informa ainda ao leitor que a construção da Madeira & Mamoré estava sendo executada sob os auspícios da National Bolivian Navigation Company. Como a ferrovia passaria toda em território brasileiro, foi necessário obter a autorização do governo desse país.
De fato, a autorização já havia sido emitida através do decreto 4.509 de 20 de abril de 1870, que concedeu a George Church, privilegio para a construção de uma estrada de ferro entre as cachoeiras dos rios Madeira e Mamoré. Esse decreto foi alterado pelo de número 5.085, de 11 de setembro de 1872, que modificou as cláusulas do anterior nos aspectos relativos às concessões de terrenos e percentuais de tarifas a serem pagas pelo governo quando do uso da ferrovia. Outro decreto atinente á ferrovia, quando ainda sob a concessão de George Church, foi o de número 6.357, de 18 de outubro de 1876, que prorrogou para 20 de abril de 1884, o prazo para conclusão de todas as obras da estrada. O desastre dessa tentativa de 1878, anunciado no título do livro de Craig, ocasionou que o governo brasileiro nem mesmo esperasse pelo final desse prazo, declarando caduca a concessão em 10 de setembro de 1881 (Decreto nº 8.255).
Voltando à reportagem, de fato ela pode ser dividida em duas partes: a primeira trata das edificações de Santo Antonio, através de imagens e de parte do artigo que as acompanha, e a segunda compõe-se do restante do artigo, que trata da situação do empreendimento em Santo Antonio. Na parte do jornal intitulada “Imagens do dia”, onde se chama à atenção do leitor para as reportagens ilustradas, já podemos perceber a mensagem que o articulista quer transmitir:
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O interessante conjunto de cenas da ferrovia Madeira e Mamoré, no Brasil, são esclarecedores. Demostram as características peculiares e interessantes do cenário sul-americano. Os aspectos maravilhosos e luxuriantes que a natureza apresenta demandam para essa rica região muito mais atenção e estudo do que tem recebido de nossos povos. Nenhuma parte do mundo oferece maiores incentivos para o exercício da energia e habilidade superiores, característica das pessoas do norte do continente, que a América do Sul. A ferrovia agora em construção, que é descrita na página seguinte, vai facilitar muito o comércio e a indústria nas vizinhanças do rio Madeira.
Os aspectos colocados em destaque são: a) a natureza soberba e rica e seu desconhecimento, b) a riqueza da região e c) a disponibilidade da região para a exploração de povos hábeis e enérgicos. A reportagem constitui um conjunto, mas, como tratamos da parte das imagens em outro texto (veja em: “Railway construction in Brazil The Daily Graphic e as primeiras imagens da povoação de Santo Antonio do Rio Madeira (Rondônia)”, Gente de Opinião de 17/10/2016), ocuparei nesse pequeno trabalho apenas de parte do texto, o qual será reproduzido abaixo:
Apesar dos relatórios sensacionais divulgados ao longo do tempo pelos jornais que informam sobre a mortalidade alarmante entre os operários, afirma-se que a saúde dos trabalhadores é extraordinariamente boa, em se tratando de um país tropical. A principal doença, de acordo com um dos médicos que acompanharam a expedição, é um tipo brando de febre intermitente, que responde prontamente ao tratamento médico e não oferece perigo para a vida. O Sr. Jameson, um componente da equipe de engenheiros que voltou recentemente à Filadélfia, afirma que quando partiu de Santo Antonio não havia, do total de 750 homens, mais de dez homens incapacitados para o trabalho. A experiência ensinou aos contratantes que o mesmo tipo de alimento que os homens ingerem nos Estados Unidos não é aconselhável no clima tropical. Em consequência, eles têm sido muito cuidadosos na seleção dos artigos de alimentação utilizados. As provisões são enviadas a partir da Filadélfia para diferentes pontos do rio Madeira e depois distribuídas pelos índios. Dois índios para transportar um barril de carne ou farinha prendem-no a uma vara, que depois é erguida sobre seus ombros, transportam assim pesados fardos por quinze ou vinte milhas por dia. O primeiro grupo de engenheiros e operários chegou em Santo Antonio no dia 19 de fevereiro passado e começou a trabalhar no dia seguinte. Até o dia 1º de julho, os levantamentos preliminares atingiram Caldeirão do Inferno, a uma distância de setenta milhas e foram instaladas dez milhas de trilhos. O trabalho de abertura da mata por várias milhas, para a colocação dos dormentes, é executado tão rapidamente quanto as circunstâncias permitem. Após deixar Santo Antonio a linha afasta-se da margem do rio e corre sobre um platô, onde alcança a altitude média de 150 pés acima das cheias mais conhecidas, de modo que não há nenhum perigo de ser inundada pelo rio. Os srs. Collins estão confiantes de que podem cumprir o contrato dentro do tempo estabelecido de dois anos e meio. Contudo, eles se queixam de que são prejudicados pelo preconceito dos acionistas ingleses contra os empreiteiros americanos. Até o presente momento eles não receberam um único dólar em conta, apesar de terem gasto uma grande quantidade de dinheiro. Alegam que se tivessem recebido o pagamento de acordo com o contrato, teriam instalado cinquenta milhas da estrada a esta altura. Como estão progredindo de forma satisfatória, esperamos ter a Madeira & Mamoré concluída no devido tempo e pronta para explorar os ricos tesouros do continente Sul-Americano.
Basicamente esse trecho da reportagem trata de quatro temas: 1) doenças e mortandade dos trabalhadores; 2) alimentação; 3) extensão dos trilhos instalados e 4) acionistas ingleses e repasse dos recursos. Minimiza ao máximo os três principais problemas: o sanitário, a alimentação e o repasse de recursos, tratando-os como secundários e dando ao leitor uma impressão de normalidade no prosseguimento da obra.
Informa a matéria jornalística que muitos nativos bolivianos foram contratados pela Collins para complementar o pessoal braçal. Sabemos por Craig que mesmo um seringalista foi contratado para derrubar e limpar a mata no curso dos trilhos. Era Ignacio Arauz, boliviano que já trabalhara para a Public Works, em 1872. Ocorre que a contratação desses nativos e de algumas centenas de trabalhadores cearenses, se deu por várias razões: o naufrágio do “Metropolis”, que traria mais operários para Santo Antonio, a rebelião dos operários italianos que desfalcou o primeiro grupo de trabalhadores, as doenças que mataram ou retiraram da ativa inúmeros contratados. A contratação de Arauz mesmo teve como motivo também a morte, o falecimento do sr. Huff, contratado pelos Collins para abrir a mata por onde passariam os trilhos. Quanto à questão da salubridade da região, o artigo a reduz a um produto de “[...] relatórios sensacionais divulgados ao longo do tempo pelos jornais que informam sobre a mortalidade alarmante entre os operários [...]” Sobre esse tema, concluiu que a situação de saúde dos trabalhadores era extraordinariamente boa. Segundo o jornal, havia apenas a incidência de uma moléstia não determinada que causava leve febre intermitente inofensiva, e que do total dos 750 homens em serviço não havia mais que dez na enfermaria. É uma maneira bastante sedutora de descrever as febres tropicais. Segundo o periódico essa última informação foi dada pelo cel. John J. Jameson, que foi o administrador geral da P. & T. Collins em Santo Antonio, antes da chegada de Thomas Collins.
O que ocorrera até aquele momento é que a mortalidade e doenças abateram e retiraram do serviço inúmeros trabalhadores durante o ano de 1878. Os alimentos foram mal calculados, tanto em suas embalagens, grandes, o que dificultava sua remessa para os acampamentos, quanto inadequadas e em muitas ocasiões escassas. Em diversos momentos houve a insuficiência de víveres, sendo este um dos motivos que provocou a rebelião dos italianos. O título da reportagem é totalmente irreal, pois naquele momento naufragavam totalmente os planos da empresa Collins e do Cel. Church.
De uma maneira geral, o artigo induz ao leitor uma visão bastante otimista dos eventos ocorridos até aquele 26 de fevereiro de 1879, visão absolutamente antagônica aos desastrosos fatos que vinham ocorrendo em Santo Antônio quase que desde a chegada do grupo de pessoal da P. & T. Collins em 19 de fevereiro de 1878, ou seja, mais de um ano antes da notícia do Daily Telegraph. Não foi o único, o “New York Herald” de 10 de novembro de 1878, apresenta um histórico da construção da Madeira-Mamoré desde 1872 até aquele momento. A notícia estampada naquele número diz o seguinte: “Uma empresa no Brasil”, a qual seguem os seguintes subtítulos: “A Ferrovia Madeira & Mamoré contorna as quedas do rio Madeira”; “Como o projeto foi desenvolvido”; “A luta entre os empreiteiros e os acionistas Ingleses”; “Provável sucesso do último”; História do trabalho realizado e as causas do seu abandono” e “As perdas e os perdedores”. Enfim, faz um resumo do desastre que foi a tentativa de 1872, embora, ao contrário do “Daily Telegraph” publicado em fevereiro do ano seguinte, abordasse já alguns problemas enfrentados pela P. & T. Collins, mas apresentava-os de forma bastante atenuada.
Segundo o “Daily Telegraph” de 26 de fevereiro de 1879 declarou,até o dia 1º de julho de 1878 foram realizados 65 milhas (104.61 km) de levantamentos preliminares e instaladas dez milhas (16.09 km) de trilhos. Já o “New York Herald” de 10 de novembro de 1878 informava que em 1 de setembro de 1878 as obras estavam na seguinte situação: 65 milhas de levantamento preliminar e 3 milhas (4.83 km) de trilhos instalados. Na mesma notícia do “Herald” consta uma declaração do engenheiro residente em Santo Antonio. Afirmou o engenheiro que poderia instalar 50 milhas (80.47 km) de trilhos até 1 de fevereiro de 1879. Informa ainda ao jornal a deserção de trabalhadores, assim, essa meta de instalação dos trilhos somente seria efetivada caso fossem disponibilizados para o trabalho 1.000 trabalhadores, mais as provisões e recursos necessários. Nada disso ocorreu, ao final da obra apenas 7 quilômetros (4.35 milhas) de trilhos foram instalados. Vemos aqui que, mais uma vez, o “Telegraph” desinformou as impossíveis 10 milhas de trilhos em julho de 1878, pois os trilhos nunca chegaram tão longe naquela tentativa.
Aqui um parêntese necessário. Poderíamos supor que esse anacronismo entre a notícia e o fato se devesse ao fato de que Santo Antonio estava bastante isolado de Manaus e do resto do Mundo. Na verdade não havia ainda naquela época o telégrafo na Amazônia. Apenas no ano de 1886 foi inaugurado o telégrafo em Belém (SILVA, 2011, p. 59) e Manaus apenas teria contato por telégrafo com Belém dez anos depois (SILVA, 2008, p. 1). A comunicação mais rápida na região era através do navio a vapor, e ainda assim era lenta. Lembramos, a título de ilustração, que o navio “Mercedita”, que saiu do porto de Filadélfia em 2 de janeiro, somente chegou a Santo Antonio no dia 19 de fevereiro de 1878. Mesmo assim, não se explica o tom otimista da reportagem, pois mesmo com a lentidão das informações já se sabia nos Estados Unidos naquele fevereiro de 1879 da situação da empresa em Santo Antonio.
Assim é que o jornal “The Daily Globe” de 8 de agosto de 1878, já informava ao público norte-americano que:
Uma febre virulenta assolou entre os trabalhadores americanos da ferrovia Madeira & Mamoré, no Brasil, e certo número deles está morrendo diariamente, tornado necessária a retirada de serviço desses trabalhadores pela Coliers [sic] & Co. da Filadélfia.
O “New York Herald” de 10 de novembro de 1878 declarou que na construção de ferrovias em zonas tropicais é inevitável a perda de vidas, caso que ocorreu em Santo Antonio. Mas minimiza o fato informando que das centenas de trabalhadores contratados apenas 38 haviam morrido. Segundo o jornal uma ocorrência bastante menor que na construção da ferrovia do Panamá.
Devemos notar ainda que o material publicado no “Daily Graphic” não menciona o lastimável estado em que retornaram alguns desses trabalhadores, inclusive o pessoal qualificado, para os Estados Unidos. Mas na data do editorial esse retorno já era conhecido através de notícias publicadas em vários jornais daquele país. Também as causas e condições desse retorno, que têm relação direta com o desastre do empreendimento em Santo Antonio do Rio Madeira. A falta de recursos a que foram submetidos os Collins. Na medida em que os acionistas ingleses, temerosos de perderem seus capitais, não repassaram os recursos à empreiteira, foram suspensos os pagamentos. Os trabalhadores receberam vales a serem trocados em Belém por aqueles que haviam concluído os seis meses mínimos de contrato e desejavam retornar aos Estados Unidos. A falta de repasse causou ainda a penúria generalizada, na medida em que os víveres escasseavam.
Assim o “New Orleans Daily Democrat” da cidade de Nova Orleans, Luisiana, de 2 fevereiro de 1879 informa sobre o relato que fizeram nos escritórios da Collins os americanos que chegaram à Nova Iorque pelo navio “Cidade do Pará”. Através desses relatos ficamos sabendo do completo desamparo daqueles que ficaram em Belém e Santo Antonio. Sem alimentos e sem recursos para voltar ou manter-se nesses locais, sujeitos à caridade pública, impossibilitados de trocarem seus vales da Collins por dinheiro, que o agente da empresa em Belém não possuía em razão da falta de repasse dos recursos pelos ingleses. O “New York Herald” de 30 de janeiro de 1879 foi pelo mesmo caminho, informado a situação deplorável que desembarcaram no dia 29 de janeiro de 1879 aqueles cem trabalhadores da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré. Doentes e sem dinheiro e com as marcas das dificuldades passadas estampadas no miserável estado em que se encontravam. Segundo declarações do engenheiro O. F. Nichols, contratado para representar a companhia inglesa em Santo Antonio, ao “Herald”:
Não há dúvida de que a exportação de trabalhadores norte-americanos para a América do Sul tem-se revelado um fracasso desta vez, independentemente mesmo da infeliz de circunstância que nos trouxe para casa em tal situação. O clima, a comida e os hábitos de vida na América do Sul são totalmente estranhos para os homens, que não foram capazes de se habituar a eles. Em consequência, muitos adoeceram e alguns morreram. Eles foram pagos pelo seu trabalho em vales, que ainda não foram resgatados pelos Srs. Collins por conta da ação da chancelaria inglesa, que parou a construção da estrada.
O mesmo “New York Herald” na edição de 10 de novembro do ano anterior faz coro com outros jornais a respeito dos repasses de recursos. Fala que a política dos acionistas em não repassarem os recursos para a empresa Collins havia causado problemas de abandono do trabalho, desistências, fugas e deserções, além da penúria em que se encontram tanto aqueles que estavam em Santo Antonio como em Belém. O mesmo jornal, na edição de 16 de dezembro de 1878, adota outra abordagem, que tenta explicar a má situação da P. & T. Collins. Tal abordagem consiste em declarar que o sucesso do empreendimento ferroviário, realizado pelo rival comercial norte-americano, despertou o ciúme e a oposição persistente da Inglaterra, que sabotou o empreendimento. Já o “Daily Graphic” acusava o boicote dos recursos ao “[...] preconceito dos acionistas ingleses contra os empreiteiros americanos”.
Voltando ao “Herald” de 10 de novembro de 1878 observamos que também chegaram aos Estados Unidos informações de que os Collins haviam tratado seus contratados com crueldade e opressão, talvez se referindo ao episódio da Greve dos Italianos. O jornal prontifica-se a desmentir essas informações, argumentando que os Collins são bem conhecidos na Filadélfia, de tal forma que essas notícias não podiam ter fundamento. Ainda, que o sofrimento dos trabalhadores era responsabilidade dos ingleses por não pagarem à empresa Collins, que ficou sem recursos.
A reportagem do “Daily Graphic” culpa todos os retardamentos na obra, que poderia já estar bastante adiantada, pelos atrasos nos pagamentos que deveriam ser feitos pelos acionistas ingleses. Mas, ainda assim, encerra em tom confiante afirmando que:
Os srs. Collins estão confiantes de que podem cumprir o contrato dentro do tempo estabelecido de dois anos e meio. [...] Como estão progredindo de forma satisfatória, esperamos ter a Madeira & Mamoré concluída no devido tempo e pronta para explorar os ricos tesouros do continente Sul-Americano.
Mas a situação em Santo Antonio era desesperadora, conforme descreve Ferreira: “Em fevereiro de 1879, engenheiros e outros funcionários começaram a abandonar a construção, regressando aos Estados Unidos, Collins ainda tentou resistir, permanecendo.” (1959, p. 138).
Apesar de apresentarmos elementos suficientes para afirmar que quase a totalidade da notícia publicada no “Daily Graphic” fosse uma proposital distorção da realidade, na medida em que outros jornais já haviam publicado sobre a real situação em Santo Antonio, não temos elementos para explicar as razões que conduziram a publicação de uma reportagem tão equivocada. Isso exigiria outra pesquisa que não podemos realizar agora.
Contudo temos pelo menos uma pista. Sabemos que o coronel. Church tinha prática e possivelmente trânsito na imprensa, fora correspondente do New York Herald no México e fez parte do corpo de redatores daquele jornal em Nova York (CRAIG, 1947, p. 37). Assim, talvez, a reportagem do “Daily Graphic” tenha sido publicada sob sua influência ou por sua iniciativa para provocar uma mudança nos rumos que as más notícias, vindas de Santo Antonio e publicadas no restante dos órgãos de imprensa dos Estados Unidos, estavam provocando na opinião pública. As questões imediatamente sugeridas para uma futura pesquisa sobre o assunto seriam: o “Daily Graphic” publicou antes ou depois daquela edição de 26 de fevereiro de 1879 alguma matéria sobre a Madeira-Mamoré? Caso tenha publicado houve mudança na abordagem? Ou seja, essa reportagem foi isolada ou foram feitas outras com uma linha sistemática de abordagem semelhante a esta quando o tema era a Madeira-Mamoré? Essa investigação poderia fortalecer ou enfraquecer nossa hipótese, mas é trabalho que dispende um tempo, para consultar inúmeras outras edições do referido jornal que não possuo agora, ocupado com tarefas mais urgentes. Fica para outro momento.
Fontes consultadas
ADAMS, William Lawrence. Pennsylvania's Amazon Princess Railroad. Hardcover: Bloomington: AuthorHouse, 2013.
CRAIG, Neville B. Estrada de Ferro Madeira Mamoré: história trágica de uma expedição. São Paulo: Nacional, 1947.
CRAIG, Neville B. Recollections of an Ill-Fated Expedition to the Headwaters of the Madeira River in Brazil. Philadelphia; London: J. B. Lippincott, 1907.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do diabo: história de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo: Melhoramentos, 1959.
NDNP - National Digital Newspaper Program; NEH - National Endowment for the Humanities. LC - Library of Congress. Chronicling America. Disponível em: http://chroniclingamerica.loc.gov/newspapers/?state=New+Yorkðnicity=&language=eng#tab=tab_advanced_search
The Daily Globe [Periódico], Saint Paul 8 August 1878, vol. I, no. 206.
The Daily Graphic [Periódico], An illustrated evening newspaper. New York, 26 February 1879, no. 1849, diário.
The New Orleans Daily Democrat [Periódico]. Official Journal of the State of Lousiania and de City of New Orleans. New Orleans, 02 February, 1879.
The New York Herald [Periódico]. New York 11 November 1878, no. 15.421, diário.
The New York Herald [Periódico]. New York 16 December 1878, no. 15.456, diário, p. 6.
The New York Herald [Periódico]. New York 30 January 1879, vol, p. 8. diário.
The New York Herald [Periódico]. New York, 03 January 1878, no. 10.159
[1] Esta companhia retornará algum dia/ Apesar de sentirmos que suas lágrimas são o preço que pagamos/ Pois ha prêmios a serem tomados e glória a ser encontrada/ Cortem as correntes, preparem rápido suas almas/ Estamos a caminho do Eldorado.../ Leva-los-ei para sempre juntos/ Até que o inferno clame por nossos nomes...
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