Quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016 - 19h06
A navegação a vapor no rio Amazonas: a New York South American Steam Boat Association (1826) e alguns equívocos históricos.
Excerto do Capítulo II: A Madeira-Mamoré e o imperialismo na Amazônia (Versão revisitada) da obra “Estudos de História da Amazônia, volume II”, a ser lançada brevemente.
Por Dante Ribeiro da Fonseca.
Já na terceira década do século XIX Europa e Estados Unidos demonstravam interesse em abrir a Amazônia aos investimentos de seus capitais. Particularmente empresários norte-americanos iniciaram a promover iniciativas com essa finalidade. Essas iniciativas envolveriam crescentemente ao longo das décadas posteriores políticos, militares, publicistas e próprio governo daquele país, culminando no início da década seguinte com a “doutrina do dólar” onde o próprio presidente da república do norte agia como “caixeiro viajante” dos grandes grupos empresariais daquele país no mundo.
Como exemplo dessas atividades, no campo militar, Natalia Bas cita a criação de um “Brazilian Squadron” na marinha norte americana já em 1826. Tinha essa unidade o objetivo de: [...] proteger o comércio incipiente na região do Atlântico Sul e de desenvolver missões diplomáticas e exploratórias [...], além de combater o tráfico de escravos. O que é curioso, pois a escravidão negra era praticada ainda naquele momento nos E.U.A. Informa ainda que, naquele mesmo ano a representação dos E.U.A. no Brasil pediu autorização para que uma empresa de seu país navegasse as águas do rio Amazonas[1]. Tratava-se da New York South American Steam Boat Association.
A navegação era setor especialmente cobiçado para esses investimentos. Contudo, encontrava obstáculo na proibição de navegação por navios de bandeira estrangeira na bacia daquele rio. O episódio do vapor Amazon em 1826 é o primeiro registro que tivemos acesso de investida norte americana para constituir uma companhia de navegação na Amazônia brasileira. Na documentação deixada por Henry Clay, que foi secretário de Estado dos Estados Unidos durante o governo de John Quincy Adams (1825-1829), podemos extrair algumas informações a respeito desse episódio. A documentação foi organizada e publicada pela Universidade do Kenttucky em vários volumes. Dentre eles encontramos no volume 6, relativo ao ano de 1827, o registro de correspondência vinculada a esse evento. Trata-se de carta datada de 14 de junho de 1827 endereçada àquele secretário de Estado e subscrita por Rogers e Van Winkle (CLAY, v. 6, 1981, p. 685-686).
O brigue USS Bainbridge (na ativa de 1826 a 1905).
Serviu no Brazilian Squadron da Marinha dos Estados Unidos
Em 1845 capturou o navio negreiro Albert no litoral da Bahia.
Desenho: R.G. Skerrett.
Em 14 de abril daquele ano fora aprovado o Ato de Incorporação da New York South American Steam Boat Association pelo poder legislativo do Estado de New York a partir de uma petição assinada pelos senhores Benjamin Woosley Rogers, Duncan P. Campbell, Israel G. Collins, Willian Whitlock Junior, John Bolton e outros (Laws of the State of New York, 1827. p. 308). Conforme podemos constatar em um folheto intitulado “The New-York South American Steam-Boat Association” publicado em Albany ainda naquele ano, constavam entre os acionistas da referida empresa, além dos subscritores petição de incorporação: Charles H. Hall, Charles Hall, David Austin, Elisha Riggs, Francis Barrete Jr., Jacob Van Winkle, John Cazeaux, John F. Delaplaine, John Haggerty, John I. Boyd, John Low Jr., John Q. Aymar, John S. Crary, John S. Van Winkle, Moses Q. Ward, P. R. Starr, Peter Crary, Peter L. Vandervoort, Richard M. Lawrence, Robert Le Roy, Sydney B. Whitlock, William Bayard Jr., William L. Vandervoort. Assim, os peticionários da incorporação da companhia de navegação New York South American Steam Boat Association: Benjamin Woosley Rogers e John S. Van Winkle eram também seus acionistas e não meros prepostos.
Voltando aos documentos do Secretário de Estado Henry Clay, informam nele os missivistas que em 1825 a New York South American Steam Boat Association havia planejado explorar o transporte a vapor no rio Amazonas e seus tributários. Com essa finalidade, quando ainda dirigia a empresa William Bayard Jr. (também listado acima como acionista), providenciou naquele ano a autorização do governo brasileiro para cumprir seus desígnios através da sua representação diplomática brasileira nos Estados Unidos. Com o falecimento de Bayard em 1826 substituiu-o na direção do empreendimento Benjamin Woosley Rogers. Ambos realizaram contatos com José Silvestre Rebello, representante diplomático do Brasil nos Estados Unidos que repetidamente estimulou o projeto. Rebello julgava-se autorizado a incentivar essas pretensões baseado nas instruções que Luís José de Carvalho e Melo, ministro dos negócios estrangeiros do Brasil, escrevera-lhe em 31 de janeiro de 1824, onde constava: 16º Animará, mas sem comprometer este governo, os capitalistas, fabricantes, empreendedores, sobretudo de barcos de vapor, para os trazerem, porém à sua custa, contentando-se com a proteção do governo. (Brasil – Estados Unidos, volume 1, 2009, p. 22).
Informada dessa disposição, bastante divulgada pelo diplomata brasileiro nos E.U.A., a empresa construiu um navio e o batizou com o sugestivo nome de Amazon. Enviou então pessoa de sua confiança para o Rio de Janeiro com a finalidade de obter do governo brasileiro a desejada concessão dos privilégios. Tratava-se de Fulgence Chegaray, cidadão francês que morava há longo tempo em Nova York. No ano da missiva de Rogers a Clay (1827) estava ele em visita a Washington para tratar dos negócios ligados à New York South American Steam Boat Association. Continuando, relata Rogers que a embarcação partiu dos Estados Unidos em 29 de março e chegou ao Pará em maio de 1826.
Nesse porto estacionou a embarcação por nove meses sem obter a desejada autorização para subir o rio Amazonas. Chegaray chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1825, entrevistou-se com um ministro do Império e após sete meses percebeu que não seria possível obter a concessão. Finalmente, solicitaram os missivistas o interesse de Clay para que promovesse a intervenção do governo americano no sentido de obter do Brasil a reparação das perdas ocasionadas pelo empreendimento (CLAY, 1981, p. 685). A base para o pedido de reparação era, evidentemente, as esperanças dadas por Rabello à New York South American Steam Boat Association.
Possivelmente era o sr. Chegaray o portador dessa missiva, desse pedido de socorro endereçado a Clay por Roger e Winkle. Chegaray era agente da New York South American Steam Boat Association. Anteriormente à sua estada em Washington, partiu para o Rio de Janeiro com uma carta de apresentação do chefe da legação brasileira nos Estados Unidos, Sr. José Silvestre Rebellodatada de 17 de setembro de 1825. A carta era endereçada a Luís José de Carvalho e Melo, Nela, Rabello recomendava o atendimento ao emissário e informava: Eu tenho, por escrito, prometido à companhia a mais ampla proteção do governo e estou convencido de que enquanto a liberdade e franqueza em comércio, o governo de S. M. I. dará provas evidentes do quanto deseja concorrer para a felicidade do gênero humano. (Brasil – Estados Unidos, volume 1, 2009, p. 276)
Quando de sua estada no Rio de Janeiro em 1826 Chegaray protocolou na Câmara dos Deputados uma exposição de motivos em nome da empresa. O documento visava justificar a pretensão de: [...] contratar a exploração e navegação do Rio Amazonas, e seos ramos, por via dos barcos a vapor. (DCD, 1826, p. 1194). Naquele mesmo ano foi apresentado à Câmara dos Deputados o parecer da Commissão de Commercio, Indústria e Artes sobre o pedido de uma empresa estabelecida em Nova York para explorar a navegação do Amazonas por barcos de vapor, evidentemente a New York South American Steam Boat Association (APBCD, 1874, tomo primeiro, p. IV). Ainda, na sessão de 12 de junho de 1826 foi colocado em pauta o projeto do Sr. Seixas[2] autorizando ao Governo Imperial permitir a formação de companhias privilegiadas para a navegação a vapor dos rios do Império. Segundo o projeto, essas empresas poderiam ser compostas por sócios brasileiros ou estrangeiros (APBCD, 1874, tomo segundo, p. 102). Nenhuma dessas iniciativas obteve bom resultado.
Navegação antiga no rio Amazonas
Fonte: Ilustração Brasileira, n.02, maio de 1877. Biblioteca Nacional.
Também no Pará, após a chegada do navio Amazon, pertencente à companhia nova-iorquina foi reunido o conselho presidencial da província no dia 14 de julho de 1826. Decidiu esse conselho obstar as pretensões da empresa de navegação norte americana sob o argumento de que a concorrência do vapor teria desastrosos efeitos sobre a atividade de construção naval da província: seja da construção de ubás, seja da construção de igarités. Ainda, opinava que para que a navegação a vapor fosse admitida no rio Amazonas, sob o pretexto de celeridade das comunicações, que fosse realizada pelo Estado ou concedida a brasileiros. Finalmente, alegou a proibição imperial de navegação de navio de bandeira estrangeira pelo Amazonas. (ALBUQUERQUE, 1894, pp. 5 a 9).
Uma observação importante a ser feita sobre esse episódio diz respeito à obra de Fernando Sabóia de Medeiros “A liberdade de navegação do Amazonas (relações entre o Império e os Estados Unidos da América)” (1ª. ed., 1938). Nela, escreve Medeiros que a empresa fundada por Bayard em New York em 1826, e que enviou o navio Amazon ao Brasil foi a Amazon Steam Navigation Company (p. 36). Trata-se de um erro, como vimos acima através de bem fundamentada documentação, pois essa empresa foi denominada New York South American Steam Boat Association. A possibilidade de que existisse na época uma empresa norte americana denominada Amazon Steam Navigation Company, que também na mesma época aspirasse a navegação do rio Amazonas, não foi confirmada por nenhuma das fontes consultadas.
Ocorre, porém, que no opúsculo já acima citado intitulado “The New-York South American Steam-Boat Association” (Albany, 1827), onde a South American informa ao público sobre o problema enfrentado na tentativa de navegação do rio Amazonas é declarado que: [...] as reivindicações de preferência até agora feitas ao governo brasileiro para navegar no Amazonas, serão perdidas e esta empresa será afastada do empreendimento em favor uma sociedade constituída na Inglaterra, com os mesmos objetivos. É bem possível que essa empresa inglesa que competia com a South American fosse produto de boato destinado a acirrar os ânimos do publico norte americano em favor de sua causa. Mas, por outro lado, essa informação cria a possibilidade de outra empresa de nacionalidade inglesa estar competindo com a New York South American Steam Boat Association pela navegação do rio Amazonas.
A princípio poderíamos pensar que se tratava da mesma empresa que em 1872 assumiu as operações de navegação no rio Amazonas em substituição à Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, pertencente ao barão de Mauá, que tinha a denominação de Amazon Steam Navigation Company Ltd.. Mas a possibilidade é fraca porque mais de quarenta anos separa um evento de outro. Além disso, segundo informações dadas pela própria Amazon Steam, a empresa foi incorporada em 1872 quando assumiu a Companhia de Navegação e Comercio do Amazonas e a Companhia Fluvial do Alto Amazonas (The great river, 1904, pp. 30-31). Embora valha o registro, nenhuma informação foi encontrada nas fontes consultadas a respeito dessa alegada concorrente inglesa da New York South American Steam Boat Association.
Finalmente, a afirmação de que a recusa do governo imperial ao pedido da Amazon Steam Navigation Company Ltd. pudesse operar no vale do Amazonas tenha intensificado a campanha do oficial de marinha norte americano Matthew Fontaine Maury pela abertura do rio Amazonas à navegação dos navios de bandeira estrangeira, não encontra respaldo histórico. Primeiramente porque, como vimos, em 1826 a companhia norte americana que pretendia operar na Amazônia era a New York South American Steam Boat Association. Em segundo lugar porque a ação de Maury atinge sua maior virulência no início da década de 1850 e, como vimos, a Amazon Steam Navigation Company Ltd. somente foi constituída em 1872. Depois de muito investigar, não encontramos nenhum registro da existência de companhia homônima à inglesa nos anos de 1820 e 1850.
Fontes Consultadas
ALBUQUERQUE, Luiz R. Cavalcante de. A Amazônia em 1893. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894.
AMAZON STEAM NAVIGATION COMPANY LIMITED (compiled by). The great river. Notes on the Amazon and its tributaries and the steamer services. London: Simpkin, Marshall, Hamilton, Kent & co., ltd., 1904.
An Act to Incorporate New York South American Steam Boat Association. In: Laws of the State of New York. Fifthieth session of the legislature begun and held at the city of Albany. The second day of January, 1827. Albany: E. Croswell, 1827.
APBCD - Annaes do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Srs. Deputados. Primeiro Anno da Primeira Legislatura. Sessão de 1826. Tomos Primeiro e Segundo. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artistístico, 1874.
BAS, Natalia. Brazilian images of the United States, 1861-1898: A working version of modernity? PhD thesis. London: University College London, 2011.
Brasil – Estados Unidos, 1824-1829. Volume 1. Rio de Janeiro: Centro de História e Documentação Diplomática; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
CLAY, Henry. The Papers of Henry Clay (Secretary of State E.U.A). Volume 6, 1827. The University Press of Kentucky, Hardcover, December 31, 1981.
DCD - Diário da Câmara dos Deputados e Assemblea geral Legislativa do Imperio do Brasil de 1826. Rio de Janeiro: Imprensa Imperial e Nacional, 1827.
MEDEIROS, Fernando Sabóia de. A liberdade de navegação do Amazonas (relações entre o Império e os Estados Unidos da América). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938.
The New-York South American Steam-Boat Association. Library of Congress, Rare Book and Special Collections Division, The Printed Ephemera Collection, portfolio 117, folder 3, Albany, 1827.
[1]In 1826, in the context of the Monroe Doctrine, the U.S. Navy formed a ‘Brazilian squadron’ both to protect the incipient commerce in the southern Atlantic region and to develop diplomatic and exploratory missions. In the same year the U.S. Legation to Brazil asked for official permission to sail along the Amazon waters on behalf of a newly formed U.S. navigation company. (BAS, 2011, p. 260).
[2]Annaes do Parlamento Brasileiro Deputados a Assemblea Geral, Primeira Legislatura, 1826-1829. Provincia do Pará D. Romualdo Antonio de Seixas, depois arcebispo da Bahia, e Marques de Santa Cruz. p. III
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