Domingo, 21 de julho de 2019 - 09h03
A tarefa do
historiador conduz a situações surpreendentes. Isso se dá, entre outras causas,
em razão de que pouco pensamos na consequência dela sobre a sociedade e os
indivíduos. Em geral, pensamos na História como a “mestra da vida”, aquela que
nos fornecerá elementos para não “repetir os erros do passado”. Também pensamos
no conhecimento histórico como aquele que fornece elementos para criar em nós o
senso de identidade pela percepção de um passado comum. Assim, a simples
afirmação banal de que somos brasileiros somente é possível porque conduz
embutida em si determinada concepção possível pelo arranjo de diversos episódios
do passado. De outro modo, podemos sugerir também que o interesse pela História
carrega consigo um tanto de ciência e outro de fantasia. A fantasia consiste no
agradável exercício, que para alguns se apresenta, de imaginar o passado.
Voltemos a uma das
utilidades acima mencionadas da História. Surpreende-me que as definições mais
populares da História atribuam a ela uma função pragmática, a saber: conhecer o
passado para não cometer os mesmos erros no presente e no futuro. Espanta-me
porque creio que essa função é muito limitadamente satisfeita pela História. Isso
se dá, entre outros motivos, porque a História não se repete, ou se repete como
farsa, conforme afirmou Karl Marx. Se não se repete, como os fatos do passado
serviriam de experiência para o presente? Mas se assim for absolutamente, a
oportunidade de produzir erros é oferecida quando em cada momento nos deparamos
com situações únicas e singulares. Quando nos referimos à História como ciência
evidentemente não queremos igualá-la às ciências exatas. É a História uma
ciência na medida em que produz um conhecimento sistematizado do passado,
utilizando-se de teoria e métodos apropriados. Não é, contudo, uma ciência
exata. Não pode, por isso, produzir um tal indiscutível conhecimento que evite de
forma perfeita os erros nem no presente nem no futuro.
Há também o fato,
diretamente vinculado à função identitária, de que muitos dos conhecimentos que
nos são transmitidos revelam-se com o tempo produtos de mitificações.
Paradoxalmente essa é talvez a principal tarefa de qualquer ciência, destruir
os mitos. Certa vez, ao demonstrar uma série de inconsistências no atual
conhecimento a História do Brasil um aluno me acusou de revisionista. Devo
dizer que a afirmação foi feita em tom de acusação e de crítica. Respondi ao
rapaz que maior elogio não poderia ser feito à minha atividade profissional.
Vivemos constantemente a revisar nosso passado, perscrutando nele erros que
possam levar às interpretações mistificadoras. Apesar disso, não acredito,
contudo, que a História seja feita de narrativas, não é ela um tipo de ficção,
pois tem que reverenciar a empiria. Pode ela produzir conhecimentos com essa
natureza mitificadora quando submetida a sua produção à interferência opressiva
ou interesseira. Quando produzida em estado de liberdade resulta na árvore do debate,
que somente é viçosa quando tem como órgão nutritivo uma saudável raiz da dúvida.
Afinal de contas, há algo que se impõe ao historiador, que é externo e
independente da sua subjetividade, da sua vontade de dar determinado sentido interpretativo
aos fatos.
Alonguei-me demais
nessa introdução e peço desculpas àqueles que se dispuseram a ler esse texto,
cujo objetivo principal é exercitar uma outra função da História, essa sim
exclusivamente utilitária: ajudar as pessoas a obterem seus direitos. Certa
vez, ao assistir um seminário no Tribunal de Justiça de Rondônia um magistrado
disse-me que havia concedido ganho de causa para uma viúva de soldado da
borracha que já havia perdido seu pleito em primeira instância. O que o
convenceu da justiça do recurso contra a primeira decisão feito por aquela
senhora foi a leitura de um dos meus livros. Fiquei bastante feliz com esse resultado.
Até aquele momento não imaginava essa utilidade do meu trabalho. Agora torna a
pesquisa a versar sobre um soldado da borracha cuja viúva necessita
documentar-se para requerer pensão.
Trata-se da viúva
de Manuel Paschoal Guimarães, que foi Soldado da Borracha em Rondônia durante a
II Guerra Mundial. Os soldados da Borracha foram aqueles brasileiros que ao
invés de seguirem para Itália combater os alemães na Segunda Guerra Mundial,
optaram por vir para Amazônia coletar borracha para o esforço de guerra
norte-americano. É que durante a guerra a nação norte-americana precisou de
suprimentos extras de borracha para abastecer sua indústria bélica. Agravou a
necessidade desses suprimentos o fato de que as fontes tradicionais dessa
matéria prima se tornarem inacessíveis por causa da ocupação japonesa nas
regiões que as produziam. Então o governo norte-americano voltou-se para o
Brasil, instando-o a incrementar sua produção de goma elástica. Essa tarefa exigiu
o recrutamento de mão de obra e, basicamente, esse recrutamento foi realizado no
Nordeste do Brasil. Foi assim que esses nossos conterrâneos vieram para a
Amazônia: para cortar seringa em prol do esforço de guerra. Muitos desses
homens pensavam que aceitando o recrutamento para vir para a Amazônia fugiam
aos perigos da II Grande Guerra. Contudo, a verdade é que morreram mais brasileiros
cortando a seringa na Amazônia durante a II Guerra Mundial do que nossos soldados
na Itália combatendo os alemães. Assim é que, perguntado pelo sr. Manoel sobre
se indo para a Amazônia estava isento de ir para a Itália a resposta do
recrutador foi clara, quase uma advertência, respondeu que não, e logo em
seguida disse: “[...] quem ia para o Amazonas já estava indo para a Guerra.”
A história que
passo a narrar-vos foi transmitida pela senhora Maria do Socorro Guimarães
Petit, residente em Teresina (PI), sobrinha neta do Sr. Manoel. O senhor Manoel
Paschoal Guimarães nasceu em 1918 na localidade de Santana do Matos no Estado
do Rio Grande do Norte. Durante a guerra, já tendo sido chamada a classe de
1917, para seguir para Itália, ele soube que o Ministério do Trabalho estava
recrutando gente para vir trabalhar na Amazônia. Assim ele se dirigiu para uma
repartição daquele ministério, juntamente com seu irmão, Antonio Afonso
Guimarães Filho, e um conhecido, Sebastião Nobre Neto, onde foram recrutados.
Esses eventos
iniciais ocorreram em Natal, no Rio Grande do Norte em 1942. Após o alistamento
foi imediatamente conduzido para uma hospedaria do governo estabelecida com o
fim de abrigar os recrutados que esperavam navio para a Amazônia. Ficou nessa
hospedaria até que foi embarcado em um vapor de nome “Itapé” com destino a
Belém do Pará. No transcurso para Belém tiveram muito medo, porque havia
torpedeamento de navios na costa brasileira pelos alemães. Chegando a Belém
eles ficaram noutra hospedaria já providenciada pelo governo para esse tipo de
trabalhador, como em Natal. Esperaram ali o navio que seguiria para o Porto
Velho, embarcando finalmente no gaiola a vapor “Eduardo Ribeiro”.
No trecho que
descreve sua chegada a Porto Velho encontrei interessante lembrança sobre o
nosso primeiro governador e deputado federal. Diz ele que chegando aqui foi realizada
uma reunião dos recrutados com seringalistas e com o diretor da madeira Mamoré
o então Major Aluízio Ferreira. E declara:
Daí
tivemos uma reunião com patrões e
encarregados dos patrões, tendo feito parte dessa reunião o Major Aluisio
Ferreira o homem que mandava em Porto Velho, a ponto de todo mundo teme-lo.
Enquanto os patrões e encarregados requisitavam o pessoal para os seringais, o
major Aluisio queria nos levar para estrada de ferro Madeira-Mamoré a linha
férrea que ligava Porto Velho a Guajará-Mirim. O Major com autoridade,
colocou-se em lugar de destaque e disse: quem quiser seringal passe para ali e
quem quiser Madeira-Mamoré passe para esse outro lado. Todos ficamos do lado do
seringal. O major ficou um pouco irritado com a opção dos presentes e disse: É tempo
de Murici, cada qual faça por si, que eu olharei a todos.
A partir desse
momento então foi escolhido aquele que seria seu futuro patrão, João Chaves de Melo,
dono do seringal São Sebastião, sendo designado juntamente com seu irmão e
companheiro para seguir para o Rio Preto afluente do Jamari, onde ficaram na
colocação Santa Clara. Embarcaram em Samuel e no Santa Clara trabalharam
durante algum tempo. Lamentavelmente nessa aventura o seu irmão veio a falecer,
ficando enterrado no rio no Rio Preto.
Em 1944 transferiu-se
para um seringal denominado Guarani, no rio Canaã, outro afluente do Jamari,
pertencente ao português Albino Henrique. Ficou nesse seringal até 1947 quando
novamente retornou a Porto Velho de onde embarcou para Belém em um cargueiro de
nome “Maná” e de lá para o Rio Grande do Norte em outro navio, o “Comandante
Ripper”, no qual ele chegou ao seu destino no dia 6 de abril de 1947.
Ao chegar à sua casa
abraçou e entregou à sua mãe, com lágrimas nos olhos, uma maleta com os
pertences do irmão falecido, pedindo aos presentes que nunca o perguntassem
onde esteve e o que passou. Passados os anos, já com mais de noventa anos fez
uma memória dessa viagem, que um parente digitou.
É assim então a
história do sr. Manoel Pascoal Guimarães, uma história comum nessa época. Muitos
nordestinos foram recrutados para cortar borracha na Amazônia e passaram por
peripécias e sofrimentos semelhantes. Finalizando, peço aos leitores que se
alguém tiver alguma informação sobre a atividade desse senhor aqui em Rondônia
por favor entre em contato, dê alguma informação para que possamos ajudar a sua
viúva.
Abaixo seguem
algumas fotografias do sr. Manoel Pascoal:
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