Segunda-feira, 3 de maio de 2021 - 10h17
“Do
Território do Guaporé ao Estado de Rondônia: Geopolítica, eleições e mudança de
elites na Amazônia”, é a mais recente obra de Dante Ribeiro da Fonseca em
parceria com João Paulo Saraiva Leão Viana, ambos docentes da Fundação
Universidade Federal de Rondônia (UNIR), onde atuam respectivamente nos
departamentos de História e Ciências Sociais. Estará disponível à aquisição dos
interessados já a partir da semana corrente pelo emeio
livrosrondoniana@gmail.com.
A
obra é composta por duas partes e seis capítulos, distribuídos por 476 páginas.
Na primeira parte, intitulada “A longa ocupação do território e as configurações
político/administrativas”, é historiado o processo de ocupação colonial da
Região Norte desde o Período Colonial até o Segundo Reinado, situando as
principais propostas de divisão territorial do Brasil durante a Primeira
República. Os últimos capítulos dessa parte tratam do surgimento do Território
Federal do Guaporé e a dinâmica política que se estabeleceu nessa unidade
administrativa até o Golpe Militar de 1964. Na segunda parte, intitulada “Eleições
e mudança de elites políticas em Rondônia”, são analisadas as quatro décadas de
competição eleitoral majoritária no território e a mudança na elite política,
após a instituição do estado de Rondônia.
Publicamos
abaixo um subtítulo de capítulo do referido livro.
O
Território da Madeira-Mamoré e o Território do Guaporé
A opinião do aviador e escritor Ramayana de Chevallier, publicada em
1939, resume bem a ideia de tantos quantos desejavam a emancipação política da
área de influência da ferrovia Madeira-Mamoré: “A região do
Madeira-Mamoré se constitue, respeito à organização administrativa do Estado de
Mato Grosso, um corpo estranho” (CHEVALIER, 1939, p. 197). Inclusive porque
todas as ligações da região eram realizadas com Manaus, opinava que ali deveria
ser constituído um território ao qual sugeriu denominar-se Território Federal
de Rondônia, ou Território Federal do Guaporé, como informava sugerir o capitão
Aluízio Ferreira (CHEVALIER, 1939, pp. 202-203). É neste ambiente de
discussões, do qual não se pode apartar as propostas de redivisão territorial
do Brasil, elaboradas por militares e intelectuais e capitaneadas pelo IBGE,
que surge a proposta de criação do Território da Madeira-Mamoré.
A proposta de
criação de um território federal na área é antiga (1849) e teve muitos autores
e versões desde então, mas ganhou fôlego quando da visita de Getúlio Vargas a
Porto Velho em 1940. Posteriormente, um memorial elaborado pelo Conselho de
Segurança Nacional (BRASIL, 1938) e uma exposição de motivos apresentada pelo diretor
da EFMM, Aluízio Ferreira, (GUSMÃO, 1944, pp. 85-86) resultaram na Exposição de
Motivos no. 1.174 de 17 de junho de 1942 assinada pelo presidente do
Departamento Administrativo do Serviço Público (MEDEIROS, 1944), Luiz Simões
Lopes. A referida exposição originou-se de um requerimento do presidente da
República para que o diretor do DASP examinasse a proposta que conferiria à
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré a personalidade jurídica própria de entidade
autárquica de direito público.
É de se notar que a
percepção dominante na época era a de que existia um Território da
Madeira-Mamoré, embora este fosse também o território da Linha Telegráfica ou
da rodovia Cuiabá – Porto Velho. É a partir dos anos setenta que esta percepção
vai modificando com a gradual transferência do polo dinâmico do Território.
Estas regiões do estado são hoje denominadas pelo IBGE como a mesorregião da
Madeira-Guaporé (ferrovia) e do Leste Rondoniense (linha telegráfica/rodovia).
Esta percepção era de tal forma difundida quando da criação do Território que
não escapava mesmo às páginas esportivas. A coluna Correio Esportivo do jornal
Correio da Manhã de 6 de fevereiro de 1945 anunciou a criação de uma liga
esportiva no Território do Guaporé, recentemente organizado e que compreende: “[...]
a região da Madeira-Mamoré [...]” (CORREIO DA MANHÃ, 06/02/1945). A identidade
do Território do Guaporé e da Ferrovia Madeira-Mamoré estava naquele momento
vinculada inseparavelmente.
Simões Lopes inicia
seu parecer informando que o regime autárquico foi concedido pela União à
Estrada de Ferro Central do Brasil pelo Decreto 3.306 de 24 de abril de 1941 e
à Estrada de Ferro Noroeste do Brasil pelo. Decreto 4.176 de 13 de março de
1942 (in MEDEIROS, 1944). Os dois decretos, que instituem as autarquias, são
muito semelhantes. Nesses dois decretos, não percebemos a vinculação das
autarquias ferroviárias criadas a um território mais abrangente que o leito das
ferrovias, tornadas autárquicas, e aos locais de suas oficinas, estações e
paradas.
Alerta então o diretor
do DASP o cuidado que se deve ter em estender o regime de autarquia às outras
ferrovias estatizadas “[...]porquanto cada uma delas é função de determinada
zona geoeconômica, estando, ipso facto, na dependência inexorável de uma série
de fatores [...]” (in MEDEIROS, 1944, pp. 432). Ressalta então a
particularidade da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré neste quesito, da qual se
convenceu in loco, quando conheceu
não somente a ferrovia, mas sua área de atuação e populações correspondentes.
Destaca Simões Lopes
o isolamento da área onde atua a ferrovia e declara que em razão disto
ultrapassou, durante sua existência, os limites que lhe impunha a simples
função de transporte de cargas e passageiros tornando-se, segundo o
parecerista, o único traço de brasilidade nestas regiões distantes do Mato
Grosso e Amazonas. Assumiu então funções políticas e econômicas, que foram
muito além do seu escopo inicial, a saber: como atividade estratégica
fronteiriça vital, representada pelo eixo de um sistema ferroviário-fluvial de
transportes, que articulou Brasil e Bolívia. Assim, dada a função estratégica,
social e econômica da EFMM, que extrapolava em muito suas atividades
estritamente ferroviárias, não lhe cabia a exigência de um equilíbrio
financeiro, na medida em que este desborde de suas funções exigia o socorro do
Governo Federal. Máxime se justifica a proposta em razão de que os estados do
Mato Grosso e do Amazonas também não possuíam recursos para colimar este
objetivo.
Ressalta o
pareceirista que, na realidade, a autonomia já praticamente existia “[...] uma
vez que as dotações são globais e aplicadas mediante adiantamentos, dados os
empecilhos resultantes, principalmente, da distância e da falta de
comunicações” (in MEDEIROS, 1944, p. 435), e conclui:
Visitando a zona em questão, Senhor Presidente, mais rija
se me tornou a convicção de que a administração de uma estrada como a
Madeira-Mamoré que tem transcendentais funções políticas e econômicas; que
constitue em tão remotas paragens um milagre de operosidade e tenacidade na
penetração e conquista do nosso próprio território, tem que ser efetuada de
modo integral, conjugada com a navegação local e até com a própria
administração daquelas paragens semiabandonadas (in MEDEIROS, 1944, p. 437)
Propõe então a
criação de um Território Federal com orçamento próprio tendo como base
aglutinadora a administração da área a ferrovia Madeira-Mamoré, transformada em
autarquia, sendo ambos “[...] intimamente entrosados numa conjugação de
atividades e subordinados a uma mesma chefia para fins de unidade de
orientação; [...] cada qual, porém, tudo fazendo pela realização de seus
objetivos específicos [...]” (in MEDEIROS, 1944, p. 438). A Madeira-Mamoré
caberia agregar-se com o serviço de navegação do rio Guaporé e ao governo
Territorial. Cuidaria da organização, colonização, saneamento, assistência
social e econômica. Além do exposto, sugere a colocação das tropas de fronteira
à disposição do governador do novo Território; conceder recursos para a
administração do território previstos no Orçamento Geral da União; subvencionar
os déficits da EFMM.
É nesta paisagem política e econômica que Aluízio Ferreira constrói sua
liderança no Território Federal do Guaporé. Embora os fatores elencados da
liderança de Aluízio: a chefia local da linha telegráfica, a inspetoria de
fronteiras, fossem importantes na construção de sua liderança, vital para sua
consolidação foi o controle da ferrovia, conquistado em 1931 quando se tornou
seu administrador e mantido em 1943 quando a empresa ficou sob o controle
administrativo do governo territorial.
A insuficiência dos municípios do eixo da Madeira-Mamoré, para atender
aos reclamos da população, praticamente abandonados pelos governos estaduais,
provocou significativa manifestação dos munícipes de Guajará-Mirim. Em 1937,
subscreveram os habitantes daquele município um abaixo assinado dirigido ao
presidente da República pedindo a criação de um território federal naquela
fronteira (PINTO, 1993, p. 144). Esta, talvez, tenha sido a primeira
manifestação da população local nesse sentido.
O coronel Manoel Alexandrino Ferreira da Cunha, inspetor especial de
fronteiras, por ordem do Estado Maior do Exército realizou em 1938 viagem de
inspeção aos rios Madeira, Mamoré e Guaporé particularmente sobre as
localidades de Porto Velho, Guajará-Mirim e Forte Príncipe da Beira (atual
município de Costa Marques) até a foz do rio Machupo onde ficava o limite da
inspeção de fronteira com o Mato Grosso (EME, 1938). Desta viagem resultou um
relatório que revela bem a autoridade exercida por Aluízio Ferreira na região
deixando claro que este comando era desempenhado para além dos limites postos
pelo exercício da direção da Ferrovia. Afirma o coronel Cunha:
O capitão Aluízio Ferreira,
diretor dessa ferrovia, estende também sua autoridade sobre toda a região e
seus habitantes. Interfere até sobre atos sociais dessa gente: casamentos,
festas públicas e esportivas (EME, 1938, pp. 5-6).
O mal, que o coronel Cunha aponta nesta liderança é que os estados do
Amazonas e Mato Grosso, em razão de seus escassos orçamentos, deixam à
administração da EFMM resolva os problemas dos municípios sob sua jurisdição
(Porto Velho, AM; Guajará-Mirim e Alto Madeira, MT) com seus próprios recursos
e com a mão de obra disponível nos contingentes de fronteira. Conclui esta
parte do relatório citando as palavras de um certo Major Pedra Pires, as quais
endossou, que declarou:
Para essa região continuar a
prosperar comercial e industrialmente torna-se mister transformá-la em
território federal, o que o diretor da E.F.M.M. e o pessoal da Cia. do Btl. de
Fronteiras puderam fazer pelo seu progresso, já o fizeram (EME, 1938, p. 6).
Océlio de Medeiros, professor, jornalista, funcionário do DASP e
estudioso da questão territorial, que demonstrava interesse na questão, talvez
provocado pelo seu local de nascimento, a cidade de Xapuri, no Acre, ao passar
por Porto Velho, já então criado o Território Federal do Guaporé, registra suas
opiniões sobre a administração territorial: “[...] Porto Velho e sua próspera
sede, a cidade do mesmo nome, que documentava, a meu ver, o êxito da
administração militar aí implantada, através da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré” (MEDEIROS, 1946, p. 149). Relata ainda que, de fato, esta
autoridade antecedeu à criação do Território:
A existência de dois chefes
executivos, o Prefeito e o Diretor da Estrada, vai de encontro aos princípios
da unidade de comando e de direção. Resulta daí a afirmação da autoridade
militar sobre a civil, ficando o prefeito transformado em figura morta
(MEDEIROS, 1946, p. 149).
Conclui Medeiros constatando, apropriadamente, que a direção da Estrada
de Ferro passou a “governar” a área de sua influência, ficando as autoridades
dos estados por onde passava a ferrovia apenas com a atribuição, de fato, de
polícia fiscal, situação reconhecida pela estrutura do novo Território. É de
interesse relembrar o “Memorial Orgânico”, na medida em que, a situação acima
exposta sugere que, nos anos 30 e 40 em Rondônia, sua proposta de governo
militar, ou militarizado, dos departamentos fronteiriços, de forma embora
diferente daquela que propugnava, se realizou.
Quando da criação do Território Federal do Guaporé, por meio de sua
nomeação para o governo territorial, o poder de mando de Aluízio Ferreira foi
ampliado. Inúmeros são os testemunhos da realidade desse poder. Certa vez, ouvi
do jornalista Euro Tourinho, proprietário por várias décadas do jornal “Alto
Madeira” a afirmação de que quem “mandava” no Guaporé era o Aluízio Ferreira.
Estavam também nessa ocasião, na residência do senhor Euro Tourinho, o
jornalista Marcus Vinicius Danin, o economista Silvio Persivo e o cientista
político João Paulo Viana (coautor do presente livro).
A percepção desse poder de mando extensivo pode valer para os primeiros
anos de existência do território. Assim é que os depoimentos nesse sentido se
situam nesse período. Destacamos um deles. É o depoimento de Manuel Pascoal
Guimarães, potiguar, que chegou a Porto Velho em 1942, recrutado pelo Governo
Federal para servir ao esforço de guerra:
Daí tivemos uma reunião com
patrões e encarregados dos patrões, tendo feito parte dessa reunião o Major
Aluisio Ferreira o homem que mandava em Porto Velho, a ponto de todo mundo
temê-lo. Enquanto os patrões e encarregados requisitavam o pessoal para os
seringais, o major Aluisio queria nos levar para estrada de ferro
Madeira-Mamoré a linha férrea que ligava Porto Velho a Guajará-Mirim. O Major
com autoridade, colocou-se em lugar de destaque e disse: quem quiser seringal
passe para ali e quem quiser Madeira-Mamoré passe para esse outro lado. Todos
ficamos do lado do seringal. O major ficou um pouco irritado com a opção dos
presentes e disse: É tempo de Murici, cada qual faça por si, que eu olharei a
todos. (FONSECA, 2019).
Um elemento de controle social disponibilizado para o detentor do governo
do território poderia ter sido a Guarda Territorial. O decreto 5.839 de 21 de
setembro de 1943 autorizou aos governadores dos territórios à criação das
guardas territoriais. Através do decreto número 1 de 11 de fevereiro de 1944, o
governador criou a guarda do Território Federal do Guaporé. A guarda foi
incumbida, no mesmo decreto, de atuar na área de segurança pública e serviços
diversos. De caráter civil, possuía, contudo, comando e organização militar,
podendo inclusive usar armamento para fins de atuação na área de policiamento
(GER, 1990, pp. 21-22). Nenhum dos trabalhos conhecidos, contudo, atribuem seu
uso político pelos governadores do Território do Guaporé, seja atuando nas
campanhas eleitorais, seja reprimindo ações contrárias ao governador.
Eis então que a proposta realizada por Varnhagen em 1849, um território
governado manu militari, havia se
concretizado? Cabe aqui a observação de que a “administração militar” da
ferrovia era a “administração de um militar” e não se impunha pela autoridade
marcial, mas pela predominância econômica da ferrovia lastreada, agora sabemos,
pelos recursos do governo federal. É, contudo, interessante ressaltar que há
uma certa base histórica para este imaginário que atribui à ação militar a
construção do Território do Guaporé. Assim, frequentemente são atribuídas às
“virtudes” militares a efetividade da “Marcha para o Oeste”. Referindo-se ao
segundo governador, o tenente-coronel Joaquim Vicente Rondon, em matéria
referente ao Território do Guaporé, a revista “A noite ilustrada” declara:
Moço ainda, com a energia
temperada na forja dos trabalhos da caserna, batida na bigorna simbólica do
culto à Pátria, seu caráter tem os vergões indeléveis da disciplina militar.
Daí o fato da sua administração ser, antes de tudo, disciplinada. Traça os
planos e vai paulatinamente os levando à frente. Não se esmorece quando
encontra obstáculos. Luta. E sempre vence. A picareta do progresso no Território
do Guaporé está em atividade. Não descansa nunca! (A (NOITE ILUSTRADA de 26/08/1947,
p. 27).
Desta forma, energia, disciplina e trabalho em Vicente Rondon são
resultados da educação na caserna.
A
partir da criação do território a União passou a completar os recursos
necessários ao seu governo, sem os quais as rendas próprias tais como impostos
e tributos coletadas pela nova unidade seriam insuficientes. Já no primeiro ano
de existência do Território o presidente da República assinou um decreto-lei
“[...] abrindo, pelo Ministério da Justiça, o crédito especial de CR$
8.000.000,00 para as despesas com material e pessoal com a instalação e
administração do Território do Guaporé” (CORREIO DA MANHÃ. 26/12/1943).
Estes
créditos especiais continuaram nos anos posteriores, por exemplo, em 1945 foi
concedida a quantia de CR$ 3.718.645,20 para as despesas do Território (CORREIO
DA MANHÃ, 09/02/1945). Visavam garantir ao território os recursos para custeio
e investimentos, que o recolhimento de impostos impossibilitava, pela sua
insuficiência. Em 1963 foi transferido para o Território Federal de Rondônia,
para complementar seus gastos, a quantia de CR$ 1.373.649.000, valor que
superava de longe a arrecadação do Território, que foi de CR$ 39.864.454
(FIGUEIREDO, 1965, 2ª. parte, p. 314). Em outras palavras, o Território não se
manteria sem a ajuda da União.
O ensaio que segue foi elaborado para ser apresentado na cerimônia de abertura do Seminário Integrado de Ensino e Pesquisa e a Semana de História –
Nota introdutória: Catalina o pássaro de aço nos céus da Amazônia
Nesses tempos, quando a população de Rondônia se vê ameaçada pela suspensão de alguns voos e mudanças de rota das companhias aéreas que nos servem,
Todo boato tem um fundo de verdade: o Ponto Velho, o Porto do Velho e Porto Velho
O último artigo que publiquei aqui tratou da figura do “velho Pimentel”, um personagem que, apesar de seu caráter até agora mítico, parece estar ind
A origem da cidade de Porto Velho e o velho Pimentel
Todos sabem que a origem da cidade de Porto Velho coincide com a última tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré em 1907. Naquele ano, ao