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Dante Fonseca

O boliviano Ignácio Arauz e a colonização do rio Madeira no século XIX


Por Dante Ribeiro da Fonseca

Assistente de pesquisa: Glendha Stefhany Goncalves da Silva Pereira (acadêmica de História da UNIR)

Na segunda metade do século XIX no rio Madeira, auge do surto gumífero, os maiores empresários a se dedicarem à extração da goma elástica eram bolivianos. Dentre eles é constante a menção nas fontes consultadas a: Santos Mercado, Ignácio Arauz, Pastor Oyola e a família Suárez. Liderada pelo empresário Nicolas Suarez, era essa família na última década do século XIX dona de um conglomerado de empresas que dominava a produção de borracha desde o seringal até sua venda nas praças estrangeiras.

Foram os Suarez, sem dúvida, os maiores empresários situados no negócio da goma elástica da Bolívia e do Brasil, onde também possuíam comércio (FONSECA, 2016, p. 71). Apesar dessa importância, tomaremos aqui a biografia de D. Ignacio Arauz. Esse boliviano possuía negócios infinitamente mais modestos que a família Suarez. Contudo, em razão de seus negócios concentrarem-se na bacia do rio Madeira era a figura com maior presença dentre os bolivianos que o habitavam. Assim, suas atividades representam como que uma síntese dos negócios empreendidos por essa comunidade naquele rio.

A influência boliviana no rio Madeira iniciou timidamente algumas décadas antes de atingir a proporção acima descrita. Os primeiros registros da intensificação do comércio boliviano com o Brasil pelo rio Madeira datam do início da década de 1860. Desde esses anos iniciais Ignacio Arauz esteve envolvido com essa expansão, apoiando e participando de todas as iniciativas que tivessem como objetivo melhorar as condições de transporte no rio Madeira.

Em 1861 Ignacio Arauz era sócio de Quintin Quevedo e intentara criar uma companhia de navegação nos rios Mamoré e Madeira (QUEVEDO, 1861, p. 17). Em 1867 o sr. Ignácio Arauz estava em Manaus quando Franz e Joseph Keller por lá passaram a caminho do rio Madeira. Vinham em comissão a serviço do governo imperial para estudar as soluções para a resolução do transporte no trecho encachoeira daquele rio Madeira. Encontraram em Manaus dificuldades em adquirir embarcações e remeiros para seguirem, pois naquele ano ainda não havia linha de navegação a vapor para o rio Madeira. Naquela ocasião Arauz apresentou-os a um comerciante italiano radicado na Bolívia que lhes vendeu algumas embarcações equipadas com remeiros mojos e canichanas (KELLER, 1875, p. 41). Seguiram então para o rio Madeira onde os antecipara o sr. Arauz para prestar auxílio no transporte dos engenheiros (KELLER, 1870, p. 24 e 1869, p. 4). Em 1868 fez publicar na imprensa do Amazonas a exposição das vantagens do comércio boliviano pelo rio Madeira, descrevendo os episódios vinculados à viagem de Quintin Quevedo poucos anos antes (Jornal do Pará, 22/07/1868).

Em 1872 inicia a primeira tentativa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que foi projetada para contornar o trecho encachoeirado do rio Madeira. Novamente então vemos Arauz participando ativamente em um empreendimento para melhorar o comércio no rio Madeira. Arauz foi contratado pelo engenheiro chefe da obra, Edward Mathews, para a abertura da picada da futura ferrovia (PEIXOTO, 1874, p. 58). Essa picada partia da cachoeira de Santo Antonio, no rio Madeira, e tinha como ponto final, a cachoeira de Guajará-Mirim, no rio Mamoré. Sobre as dificuldades da empresa ferroviária registrou no relatório o presidente da província Domingos Monteiro Peixoto:

A máxima dificuldade com que luctava a empresa era a falta de braços. Não pudera ela ainda obtel-os por outros meios além dos que acima apontei. O único empreiteiro que se havia apresentado era o boliviano Sr. Ignacio Arauz, empregado com seus 60 ou 70 indios na abertura de picadas. Os engenheiros encarregados de reunir trabalhadores na Bolivia ainda nada havião alcançado. (PEIXOTO, 1874, p. 5)

Ainda em 1872 desloca-se para Manaus no vapor Santa Cruz em companhia do engenheiro Mathews com a finalidade de contratar trabalhadores para o empreendimento ferroviário (Amazonas, Periódico, 5/10/1872)

Ao deixar Santo Antonio em 1874, para voltar a sua terra natal, Mathews encarregou Ignacio Arauz, da responsabilidade pela guarda e conservação dos bens que a companhia ferroviária havia deixado naquele local. Duas observações aqui são necessárias, notemos que a obra estava sendo realizada por empresa norte-americana no Brasil, mas o morador local de maior contato com essa empresa era um boliviano e não um brasileiro, Arauz. Esse fato é uma clara evidência da predominância dos nacionais da Bolívia na região do alto Madeira. Depois de mais uma tentativa fracassada, em 1878, reiniciaram as obras da ferrovia em 1907, sendo totalmente concluída em 1912.

Outra atividade exercida pelo sr. Arauz que demonstra seu envolvimento na vida comercial do rio Madeira deriva de sua nomeação para o consulado da Bolívia no Amazonas. Já exercia o cargo de cônsul da Bolívia no Amazonas nos anos de 1867 (KELLER, 1875, p. 41 e KELLER, 1869, p. 3). Não podemos precisar ainda por quanto tempo exerceu esse cargo, mas sabemos que o exercia ainda em 1869 (Amazonas, Periódico, 01/05/1869) e que nesse mesmo ano foi dele exonerado pelo presidente da província do Amazonas (Amazonas, Periódico, 1/05/1869). Contudo, nos anos de 1870 continuava ele a exercer a função consular, no cargo de vice-cônsul da Bolivia (SILVA, 1878).

Iniciando suas atividades no rio Madeira pela prática do comércio, muitos desses bolivianos decidiram depois se estabelecer naquele rio como agricultores e extratores. Ao viajar pelo rio Madeira em 1868 Franz Keller registra em Três Casas alguns estabelecimentos de extração da goma elástica que ocupam trabalhadores mojenhos (KELLER, 1869, pp. 4-5) Acima da povoação do Crato, situada quase defronte à boca do rio Jamari, a presença de dez ou doze bolivianos, auxiliados cada um deles por vinte ou trinta indígenas mojenhos, que se dedicavam à extração da goma elástica (KELLER, 1875, p. 47). Em um abaixo assinado dos “[...] commerciantes e fabricantes de gomma elástica do rio Madeira [...]”, que registrava seus agradecimentos ao subdelegado do Crato pela moderação no recrutamento militar naquela área datado de 1868 encontramos já a assinatura de Ignacio Arauz. (Amazonas, Periódico, 30/06/1868).

Possuía um engenho KELLER, 1869, p. 4) ou hacienda (KELLER, 1870, p. 24) à jusante das cachoeiras, acima de Manicoré.  A denominação dos estabelecimentos rurais na Amazônia no século XIX muitas vezes confunde ao leitor moderno. Hodiernamente, seringal é a unidade rural monoextrativista, especializada na extração da goma elástica. No século XIX, porém a unidade rural a que se chamava seringal ou barraca, poderia produzir seringa e outro produtos agrícolas e mesmo pecuários. Seringal, poderia ser chamado sítio ou engenho, ou ainda uma área na floresta onde se encontrava um manchão de seringueiras. Mas, ao que parece, nenhum desses estabelecimentos ainda estava formado naquela parte encachoeirada do rio Madeira.  Nem pertencente a Arauz, nem a qualquer outro colono. Isto porque afirma Keller que subiram aquele trecho do rio por muitos e muitos dias sem observarem qualquer vestígio de colonos (KELLER, 1875, p. 46).

Anos depois, porém, diferentemente do relato dos Keller em 1867 e dos demais relatos observados até esse ano, Mathews adverte em 1874 no trecho encachoeirado do rio Madeira a existência de diversos bolivianos e alguns indivíduos de outras nacionalidades explorando seringa. Já na década de 70 aumenta o número de empresários bolivianos explorando a goma elástica no rio Madeira. O Relatório do Presidente da Província do Amazonas de 1874 informa que naquele ano já existiam alguns deles no trecho encachoeirado e menciona como um dos mais importantes desses seringalistas, o sr. Ignacio Arauz.

De fato, da cachoeira de Santo Antonio até chegar ao rio Mamoré Keller não registra em 1867 a existência de qualquer seringal ou outro estabelecimento rural qualquer. Assim, a borracha exportada por Santo Antônio até aquele ano não poderia ser proveniente daqueles numerosos seringais que existiriam no trecho encachoeirado do rio Madeira nos anos de 1870 e que nos dão fartas notícias os viajantes daquele rio (FONSECA, 1986 e CRAIG, 1947, dentre outros). Essa produção era proveniente da primeira área de exploração da goma elástica em território boliviano a região do baixo Mamoré e Guaporé (FIFER, 1970, p. 117).

Outro aspecto que devemos notar que as práticas do comércio, da agricultura e do extrativismo não eram excludentes. Era possível encontrar pessoas que exploravam simultaneamente as três, e mesmo adicionalmente a pecuária em pequena monta. Keller indica, em 1867, a existência de roças de gêneros alimentícios pertencentes aos “seringueiros do Madeira” que eram assaltadas algumas vezes pelos índios remeiros, cujos patrões não os proveram de alimento suficiente (KELLER, 1869, P. 5). Observem que fala aqui de seringueiros que plantam roças, indicando claramente que não há incompatibilidade entre ambas as atividades. Por outro lado, a palavra seringueiro somente adquiriu esse sentido de extrator da goma elástica no século passado. Até o século XIX seringueiro podia ser o que hoje chamados de seringalista ou o aviado, trabalhador (ou extrator direto).

Ainda no último quartel do século XIX, os estabelecimentos do Madeira, embora dedicados à produção da goma elástica, continuavam produzindo alimentos como: milho, arroz, mandioca, bananas, ou seja, parte do tempo de trabalho do seringueiro era dedicada à agricultura. Esses seringais não eram exceções, o general Severiano da Fonseca, em sua viagem de 1878, refere-se a inúmeros seringais ou colocações pertencentes a um mesmo seringalista do alto Madeira produtor de gêneros alimentícios cereais, tubérculos e mesmo cana de açúcar. Craig, declarou no mesmo ano que:

Arauz tinha vários alqueires de terras de cultura em Três Irmãos, alguns plantados com milho - que já estava secando no pé, outros com arroz e os demais com iucas, bananas etc. [...]. O trabalho principal, porém, consistia na coleta e preparação da borracha.” (CRAIG, 1947, p. 230).

Além dos viajantes, o Relatório do Presidente da Província do Amazonas de 1874 confirma a existência de muitos bolivianos no rio Madeira. (PEIXOTO, 1874, p. 58) Agesilao Pereira da Silva estima totalizarem no rio Madeira uma população de quatro mil bolivianos nos anos de 1878 (SILVA, 1878). Após esses anos de 1870 não obtivemos mais notícias desse personagem.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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