Terça-feira, 9 de agosto de 2016 - 05h19
Por Dante Ribeiro da Fonseca
A agricultura, tal como é praticada na Europa, ainda não existe no norte do Brasil. Apesar dos esforços do governo e de algumas pessoas influentes, animadas pelas melhores intenções, ocupa ainda muito pouca terra para produzir o que em outros países está empregando tantos braços e tantos capitais. Existem algumas culturas de café ou tabaco em torno das cidades e aldeias, especialmente no rio Negro. Mas o estrangeiro que se aproxima desses lugares, não deve ter a esperança de encontrar campos cobertos de plantações, fazendas elegantes e semeadas de todos os tipos de ricas culturas, oferecendo a famílias inteiras os benefícios e as facilidades de uma vida tranquila.
O texto acima, da autoria de Alexandre de Belmar (Voyages aux provinces brésiliennes du Pará et des Amazones: en 1860, précédé d'un rapide coup d'oeil sur le littoral du Brésil. Londres: Therezise Imprimeur, 1861), narra suas impressões sobre a agricultura (ou a quase ausência dela) nas províncias do Pará e Amazonas em 1860. A mensagem básica contida nessa narração é que os amazônidas, espantosamente, não praticavam a agricultura como na Europa que, evidentemente, era tida como padrão de progresso e civilização. Não difere, em essência, da opinião dos inúmeros viajantes que por aquelas províncias viveram por um período ou apenas transitaram naquele século, particularmente na sua segunda metade. O bel canto desses viajantes foi acompanhado por um coro de vozes brasileiras (“pessoas influentes, animadas pelas melhores intenções”), dentre elas a do ilustre intelectual Barão de Santa-Anna Nery em “O país das amazonas”. Todos horrorizados com o batuque “horrendo” proveniente das taperas indígenas que a cultura do nosso homem amazônico evocava. Prossegue o narrador em sua análise:
A abundância excessiva de produções espontâneas nesses climas parece tornar a prática da agricultura qualquer coisa de inútil, supérflua e até mesmo uma ocupação prejudicial aos interesses das pessoas. Na verdade, porque se dedicar a um trabalho, sempre penoso em países quentes, para colher chá, anil, cacau, algodão, pimenta, canela, cravo gerofa, milho, batatas, trigo, etc. etc., quando a maioria destes produtos é fornecida gratuitamente pela natureza ou oferecida pelo comércio europeu?
Ensaia aqui uma explicação, também muito comumente emitida pelas vozes estrangeiras: da prodigalidade da terra. Consiste essa explicação no seguinte: se a natureza tudo fornece com abundância não há motivo para o esforço. Daí o extrativismo, que supõe uma tarefa menos penosa, e argumenta:
O amazônida, que na cultura de seu campo auferiria um lucro bem pequeno, prefere penetrar a floresta para recolher a goma da seringa (com a qual se fabrica a borracha), baunilha, noz-moscada, o carajuru, cumaru, óleo de copaíba, salsaparrilha e mais de sessenta drogas farmacêuticas. Todos esses produtos são vendidos a preços elevados e o extrator tem a chance de ganhar somas consideráveis. É verdade que ele é obrigado a levar uma existência nômade no silêncio das florestas, exposto às picadas de cobras e ataques de animais selvagens, mas é aventureiro e corajoso, além do mais a cobiça o domina! Então ele parte cheio de esperança e até mesmo alegria, especialmente se ele pode obter um pouco de aguardente e tabaco. Esse tipo de vida, que a maioria da população aprova, é um grande obstáculo para o progresso da organização social de certas áreas da Amazônia. Esses inumeráveis bandos tapuios, crioulos ou europeus espalhados por esses desertos e, por assim dizer, libertos de qualquer lei, não são exatamente o ideal de uma sociedade modelar.
No texto acima constatamos uma série de falsos pressupostos. Primeiramente que o extrator aufere somas consideráveis com essa atividade. Nada mais errado, toda a crônica demonstra que o extrator direto é sempre um indivíduo pobre. Na segunda parte, reconhece as dificuldades e riscos de penetrar na floresta para promover a coleta. Contudo, esquece que esse indivíduo tem, em geral, sua vida ligada à floresta. É índio, tapuio ou cabano. A cachaça, como sempre, é sutilmente lembrada pelos viajantes como prova do desregramento “natural” desses mestiços, da ausência de frugalidade e outros bons hábitos necessários ao progresso. Finalmente, declara que as bases extrativistas da atividade econômica na Amazônia a mantém longe de qualquer possibilidade de atingir o ideal de uma sociedade modelar, ou seja, civilizada nos moldes europeus.
Expressar o quanto há de ideológico e eurocêntrico nesse pequeno trecho é imperativo. Contudo, para além do conflito ideológico observa-se aqui um padrão de discurso que contamina a análise social até hoje. Trata-se de impor um conjunto de etapas da atividade humana como hierarquicamente relacionadas. O extrativismo é inferior à agricultura e esta é inferior à indústria moderna, pelo menos se aquela não utilizar os recursos industriais. Ocorre que essa hierarquia possui a dimensão histórica, e como é o movimento que faz a História (assim como tudo mais), ao mudar as hierarquias sociais os conceitos do que seja melhor ou pior para uma determinada sociedade também mudam. Esse tem sido o problema da Amazônia: apesar de mudar, não consegue mudar no ritmo da moda, ditado pelas hierarquias sociais e econômicas predominantes ao nível internacional. Contudo, apesar dos pesares sociais da Amazônia, não ausentes inclusive nem nas sociedades agrícolas nem nas industrializadas, o homem amazônico sempre respondeu às demandas de sua relação com o meio ambiente. Criou nesse enorme território uma sociedade e um tipo de cultura singular e rico.
O secular sonho colonialista inicia sua efetiva realização na segunda metade do século XX. Mas a história também tem seus revezes. O projeto capitalista iniciado nos anos 70 encontrou na Amazônia, logo em seu nascedouro, sua contradição. O ambientalismo mundial faz da modernidade que esse projeto pretende inserir na região algo arcaico já em seu nascimento. Chegamos atrasados, diriam alguns, mais uma vez. Mas será que chegamos mesmo? Para muitos encontramos o nosso caminho, reelaborado nos caminhos do desencontro secular pelo qual passamos. A cultura e a História Amazônica foram construídas pelo homem da Amazônia, principalmente forjada nos interregnos dos ciclos produtivos, poderosos interventores que sempre tiveram o condão de desorganizar a vida dessas populações. Por fim, a própria Amazônia, mais uma vez submetida às forças estranhas a si mesma que, de fora, traçam a rota do seu destino. No período colonial não conseguiu ser agrícola e pecuária, no século XIX não foi o celeiro do mundo, nos séculos XX e XXI não está conseguindo alcançar um padrão de exploração sustentada. Passam os séculos e a Amazônia segue como uma eterna esperança no curso da História.
Os livros do autor: Estudos de História da Amazônia, volumes I e II, assim como outros títulos, podem ser adquiridos exclusivamente através do e-mail: livrosrondoniana@gmail.com.
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