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Dante Fonseca

O 'Guajará' e o início da navegação a vapor no rio Madeira - Por Dante Fonseca


 
     Dante Ribeiro da Fonseca

Em 1826 iniciou o processo de estabelecimento da navegação a vapor na parte brasileira da bacia do rio Amazonas quando o vapor norte-americano “Amazon”, tentou penetrar naquele rio para praticar o comércio, sendo impedido pelo governo do Pará. Seguiram-se diversas outras empreitadas para o estabelecimento de linhas de navegação a vapor, todas também frustradas.

Na segunda metade daquele século, a navegação a vapor e a produção da goma elástica cresceram juntas na Amazônia. O negócio da borracha fez aumentar o interesse do capital internacional em investir na região, inclusive no transporte a vapor e a elite regional o apoiou entusiasticamente o início da navegação a vapor no grande rio em função de seu envolvimento crescente com esse negócio. Em 1843 o primeiro barco a vapor singrou as águas entre Belém e Manaus, era o “Guapiaçu” vapor da Marinha de Guerra Brasileira. Em 1852, o Imperador do Brasil concedeu o privilégio da constituição de uma companhia de navegação ao barão de Mauá. No ano seguinte essa empresa, a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, inaugurou suas operações com a viagem do vapor “Marajó”, explorando a linha Belém/Manaus/Nauta (Peru).

Nos volumosos tributários do Grande Rio a navegação a vapor seria posteriormente iniciada, porém com dificuldades. Sobre esse ponto, declarava em 1853 o presidente da província do Pará que os quatro grandes afluentes do Amazonas, os rios Madeira, Tapajós, Tocantins e Xingu, possuíam obstáculos que impediam a navegação a vapor em toda sua extensão, somente superáveis com muito trabalho e despesa. Basicamente essas dificuldades consistiam na existência de trechos encachoeirados, rios rasos ou inúmeros bancos de areia em seus cursos, o que obrigava a navegação a ser feita com navios de baixo calado e pouca capacidade de carga. Essa característica do novo transporte fluvial era fator adicional de encarecimento dos fretes e passagens, aliado às enormes distâncias que tinham que percorrer.

É evidente que a preocupação e a posterior implantação das linhas de navegação a vapor ligavam-se diretamente à importância comercial ou geopolítica atribuída pelos governos provinciais a cada um daqueles tributários. No que tange ao rio Madeira, os dois interesses se apresentavam. Já nos anos de 1850 nota-se o crescimento da sua participação no comércio regional, perceptível inclusive pelo interesse do governo provincial do Amazonas em nele estimular a navegação a vapor prioritariamente.

Nas propostas iniciais para o estabelecimento da navegação regular a vapor no rio Madeira, o ponto final da navegação era sempre a localidade do Crato. Para quem subia o rio, Santo Antonio era a primeira cachoeira do rio Madeira, onde terminava exatamente a livre navegação. Então, qual a razão de descarregar os vapores em Crato e seguir à remo por mais 38 léguas até Santo Antonio? É que, ao menos até os anos de 1872 não havia em Santo Antonio povoação que desse suporte à navegação rio acima, papel esse que seria cumprido pelo Crato. Outro elemento importante é que a fronteira do Brasil com a Bolívia corria a partir do ponto médio do rio Madeira, Crato ficava próximo desse limite. Das proximidades daquela localidade até a foz a margem esquerda do rio pertencia à Bolívia, correndo a margem direita até as proximidades da cachoeira de Santo Antonio na província do Amazonas e desse ponto em diante na província do Mato Grosso.

Em 1858 programou o presidente da província do Amazonas uma viagem para aquele rio, mas o vapor que o conduziria nessa viagem foi negado pelo Ministério da Marinha. Naquele mesmo ano, uma embarcação a vapor denominada “Guajará” navegou até o Crato, conforme no informa o presidente da província do Amazonas, Francisco José Furtado, em seu relatório de 1859. Foi o primeiro navio a vapor que subiu o rio Madeira até aquela localidade. Os registros pesquisados revelam que os vapores seguintes que navegaram até o Crato foram: o “Pirajá” (1861 e 1864) e o “Inca” (1864), o primeiro da Marinha de Guerra e o segundo da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas. Contudo, resta inquirir que navio era esse: o “Guajará”? A quem pertencia? Onde foi construído? Quais suas características?

Entre 1835 e 1897 existiram várias embarcações com esse nome navegando para a Amazônia ou em seu interior. Contudo, um estudo mais atento demonstra que: ou eram embarcações a vela ou eram vapores construídos após 1858. O único vapor com o nome “Guajará” que temos notícia que operou dentro da Amazônia e foi encomendado à Inglaterra foi um: “Navio de pás construído por Cammell

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Figura 1: O convés do “Guajará”.
Fonte: BROWN; LINDSTONE, 1878, p. 423.

Laird, nº 229, em 1858, através de Dwarte, Potter & Co, de Liverpool”, conforme no informa Antonio Loureiro em sua História da Navegação no Amazonas. As questões que se colocavam agora eram: 1) Quando esse “Guajará” iniciou a operar na Amazônia? e 2) A quem esse “Guajará” pertencia em 1858?

Somente houve um vapor “Guajará” que iniciou a navegar dentro da Amazônia em 1858, que foi encomendado à Inglaterra e construído pelo estaleiro Cammell Laird & Co. No relatório lido para a Assembléia Legislativa Provincial no dia 15 de agosto de 1858 o presidente da província do Pará, Ambrosio Leitão da Cunha, informou que: “Chegou ultimamente um Vapor de propriedade do lavrador José Antonio Miranda, cujo destino consta que será a navegação no rio Capim e visinhos.” (CUNHA, 1858, p. 37). Era o nosso Guajará do rio Madeira. Confirma o fato de que em outubro de 1858 é atribuída a outra pessoa a propriedade do vapor “Guajará”. Em uma publicação “a pedidos”, cujo título é: “Vapor Guajará” lemos que: “Um abastado proprietário manda vir de Inglaterra um vapor à sua custa, [...] o Ilm. Sr. Commendador Miranda dono do vapor Guajará satisfaz a vontade do publico, resultando pequena viagem à Vigia.” Ocomendador Miranda de que nos fala o jornal, não era José Antonio de Miranda, mas seu irmão de nome muito parecido, o comendador Antonio José de Miranda.

Nos jornais consultados tanto a embarcação como sua carga, quando aparece consignada, são registradas ora em nome de um ora de outro. Assim, os registros que encontramos vinculam o nome dos dois irmãos como proprietários da embarcação desde o ano de 1858. Eram prósperos comerciantes paraenses daquela segunda metade do século XIX. O vapor “Guajará” transportava,

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Figura 2: O salão do “Guajará”.

Fonte: BROWN; LINDSTONE, 1878, p. 422.

para comercializar nos armazéns da firma Miranda Irmãos & Companhia (BATISTA, 2004, p. 149), em Belém, tanto a produção da fazenda de José Antonio de Miranda, localizada no rio Capim, quanto produtos agrícolas e extrativos que adquiriam no interior amazônico. Além disso, seus proprietários fretavam cargas para terceiros e conduzia também passageiros, tanto para particulares como para o governo, conforme demonstram vários anúncios nos jornais paraenses e amazonenses da época.

Mas a viagem mais importante, aquela que reservará para a História do rio Madeira esse ignorado vapor, foi aquela pioneira que fez entre os anos de 1858 e 1859. Em novembro de 1858 cogitava o comendador Antonio José de Miranda em candidatar-se à subvenção de 12:000$000 oferecida pelo governo da província do Amazonas com vistas à navegação entre o Porto de Moz, Almerin, Alenquer, Monte Alegre e Faro, enviando para viagem a esses portos o seu vapor “Guajará”. A viagem iniciada no mês seguinte ao rio Madeira objetivava também investigar a possibilidade de explorar, sob subsídio governamental, esses portos.

Assim, no dia 11 de novembro de 1858 o “Guajará” partiu para o Amazonas. Segundo o Correio Mercantil: “Tem que tocar em todos os pontos de escala dos vapores da companhia do Amazonas até Manaos” e seguia “[...] sobremaneira carregado [...]” (no. 329 de 06/12/1858). Em razão de todas essas escalas, chegou Manaus no dia 1 de dezembro de 1859 e no dia 3 de janeiro daquele ano chegava à Serpa (Itacoatiara), localidade próxima à embocadura do rio Madeira, de retorno do Crato. Estava de volta a Belém no dia 10/01/1859. Assim, fez o percurso de volta do Crato até Belém, com paradas em portos intermediários, em 12 dias e 22 horas. Nesse retorno ocupou 22 tripulantes, conduzia dois passageiros brasileiros, um francês e um inglês e transportava 81 toneladas de carga de vários produtos consignados em nome de Antonio José de Miranda.Nos anos de 1860 continuou o vapor “Guajará” a fazer viagens pelo rio Madeira, inclusive transportando passageiros entre as diversas localidades daquele rio ou próximas a ele. Antonio José de Miranda já havia falecido no ano de 1867. Após a morte do seu irmão, José Antonio abriu naquele mesmo ano outra firma a qual tomou a razão social de José Antonio de Miranda & Cia..

O início da navegação regular se deu em 1869. A 6 de abril e 2 de dezembro daquele ano, entraram no porto de Manaus respectivamente os vapores “Madeira” e “Purus”, da Companhia Fluvial do Alto Amazonas. Vinham explorar as linhas de navegação concedidas ao comendador Brito Amorim, dono

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Figura 3: O barco fluvial “Guajará”, pioneiro
da navegação a vapor no rio Madeira

Fonte: BROWN; LINDSTONE, 1878, pp. 418-9.

da empresa, nos rios Madeira, Purus e Negro. Ficaram estabelecidas as seguintes escalas no rio Madeira: Manaus, Canumã, Borba, Tabocal, Manicoré, Baetas, Juma, Crato, Cavalcanti, Santo Antonio (MATTOS, 1870, 38). Estava inaugurada a navegação regular a vapor no rio Madeira, mais de dez anos depois da viagem do “Guajará”.

Em 1872 a companhia inglesa Amazon Steam Navigation Co. Ltd. adquiriu o patrimônio e os encargos contratuais havidos pela Cia. de Navegação e Comércio do Amazonas com o governo e foi autorizada por este a operar no Império do Brasil. Quanto ao “Guajará”, em dezembro de 1871 já não pertencia mais aos Miranda, estava incorporado à Companhia Fluvial do Alto Amazonas. Em 1873 a sucessora da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, a Amazon Steam Navigation Co. Ltd. iniciou a operar no transporte fluvial da Amazônia. Em janeiro de 1874 continuava o “Guajará” a ser utilizado nas linhas da Cia. Fluvial do Alto Amazonas, partindo para uma viagem de Manaus a Tefé (rio Solimões) no dia 20 daquele mês. Ocorre, contudo que em 21 de março do mesmo ano o Decreto Imperial nº 5. 575 concedeu á Companhia Fluvial do Alto Amazonas autorização para transferir á Amazon Steam Navigation Co. Ltd. todos os direitos e favores que possuía por lei, e bem assim os respectivos encargos. Em agosto de 1874, o “Guajará” já compunha o patrimônio da Amazon Steam Navigation Co. Ltd. em razão de essa empresa ter comprado a Cia. Fluvial do Alto Amazonas.

Desde 1872 era apontada a inadequação da embarcação para operar nas linhas de navegação da província do Amazonas. Em fevereiro de 1878 após vistoria no Arsenal de Marinha em Belém “ [...] o vapor Guajará foi condemnado a não emprehender viagem sem primeiro calafetar o convez e a tolda.” No final daquele ano o “Guajará” completaria vinte anos de construção e serviços prestados à Amazônia Brasileira, já não navegava mais para a província vizinha. Desde então não encontramos mais quaisquer referências a essa embarcação nas fontes que tivemos disponibilidade.

Três possibilidades se apresentam para o fim da embarcação: que tenha sido sucateada, vendida para fora do país, ou naufragado. O fato é que na “Lista alphabetica dos navios de guerra e mercantes. do Imperio do Brazil” publicada em 1886 não existe registrado qualquer navio com esse nome. Assim, teve o rio Madeira os seus “Irineu Evangelista” e o seu “Guapiaçu”: os empresários paraenses José Antonio e Antonio José de Miranda e o vapor “Guajará”. Uns e outros, na ocasião devida, ficaram pela força do tempo fora das atividades que inauguraram.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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