Segunda-feira, 1 de agosto de 2016 - 16h20
Por Dante Ribeiro da Fonseca
A prática em sala de aula traz muitas surpresas ao professor. Algumas delas, felizmente, são bastante agradáveis. Um dos aspectos que sempre me chamou à atenção durante as aulas de História da Amazônia, que ministro faz bastante tempo na UNIR, é como a cultura popular e a experiência de vida faz o aluno revelar ao professor saberes por ele desconhecidos. Assim é que na prática somos muitas vezes questionados em nossos saberes livrescos pelo conhecimento prático do “aluno”. A palavra anterior segue entre aspas, pois nesse caso é o professor que se torna aluno.
Ora certo aluno informa sobre um chá usado pelos seringueiros na falta do café, o chá de preciosa, que leva para sala de aula juntamente com arbusto da planta para demonstrar aos demais. Ora mostra uma foto antiga tirada no rio Madeira nos anos 70 retratando dois caboclos cheirando o paricá (hábito que já supunha extinto). Ora alunos oriundos do leste rondoniense falando da ocupação daquelas terras pela migração recente tal como ouviram de seus pais e avós.
Certa vez, contudo, durante uma das aulas do PROHACAP, algo mais interessante aconteceu. Digo mais interessante porque em uma mesma manifestação o discente uniu uma forma de expressão de sua cultura natal, o cordel, pois se trata de um nordestino, com uma temática amazônica, o regatão. Evidentemente aí uniu a História à Arte. Com imaginação e o conhecimento histórico pintou em cores vivas a passagem do regatão pelos rios Amazônicos.
Como todos sabemos o regatão é o mascate fluvial, que no Brasil somente existe na Amazônia. Em seu barco, um verdadeiro armazém ambulante, troca em geral suas mercadorias pelos produtos da área rural do interior Amazônico. Marginalizado pelas autoridades e seringalistas durante o Primeiro Ciclo da Borracha, pois quebrava a cadeia do aviamento e burlava o controle dos seringalistas sobre a produção de borracha dos seus seringais, dizia-se também que o regatão viciava os indígenas no consumo de bebidas alcoólicas para melhor enganá-los no seu escambo.
Recentemente essa figura foi, em parte, redimida, ao se perceber que, dadas as enormes distâncias e o relativo isolamento das pequenas comunidades amazônicas, coube ao regatão capilarizar o comércio regional, o que é feito até hoje naquelas regiões onde, no dizer de Leandro Tocantins: “O rio comanda a vida”. Não é esse o caso de Rondônia, aqui a vida é mais comandada pela estrada da qual o rio, antes soberano inconteste, tornou-se servo.
A literatura sobre o assunto, e aqui cito apenas Mário Ypiranga Monteiro (O regatão: notícia histórica. Manaus: Edição Planície, Coleção Muiraquitã, Sérgio Cardoso & Cia LTDA, 1957) e Jose Alipio Goulart (O regatão: mascate fluvial da Amazônia. Rio de Janeiro: Conquista, 1968), ocupa-se da origem do nome que remonta a Portugal. Mas há outros e renomados como: José Veríssimo e Raimundo Moraes, que trataram do tema.
Há, porém, uma abordagem que não foi devidamente registrada, a origem desse comerciante na Amazônia. Vou especular. No início da colonização da Amazônia, as canoas de coleta extrativistas partiam de Belém em direção aos rios interiores, em busca dos inumeráveis produtos que a riqueza florestal da Amazônia fornece. Essas expedições, ao terminar a coleta, retornavam a Belém, onde vendiam seus produtos aos comerciantes daquela cidade. Dois aspectos da economia amazônica dos primeiros séculos devemos aqui ressaltar. O primeiro é que quando dizemos vendiam, não é totalmente verdade, pelo menos se deduzirmos daí o componente monetário da transação. É que na economia Amazônica nesses primeiros séculos corria pouca moeda. Creio que, então, tornou-se hábito adiantar, sob a forma de crédito, mercadorias aos proprietários de canoas destinadas ao extrativismo interior. Esse crédito era honrado com as mercadorias obtidas nas expedições. Assim os dois aspectos daquele sistema que conhecemos por aviamento são: o crédito é fornecido e honrado com mercadorias.
Essas expedições, podemos supor, no início traziam seu pessoal que se encarregaria do extrativismo. Ocorre que, com o tempo, dois fenômenos aconteceram. Primeiramente, grupos de indígenas em contato esporádico ou permanente com o mundo colonial passaram a propor trocas desses produtos aos empresários extrativistas que partiam de Belém ou Manaus. Esses empresários passaram a trazer em suas canoas mais mercadorias que aquelas necessárias ao consumo da viagem, mercadorias para a prática do escambo. Com o tempo e a fixação de uma população colonial nesses rios interiores esse antigo empresário extrator passou crescentemente a dedicar-se ao comércio. Em vez de trazer seu pessoal para a prática extrativista passou a trazer pessoal apenas necessário a dar suporte ao comércio pelo qual obtinha dessas populações interiores o produto do extrativismo, que antes coletava. Nasceu aí o regatão, que em meados do século XIX já estava consolidado como comerciante. É evidente que, como todo fenômeno histórico, encontremos diversas variantes. A literatura disponível, creio, poderá confirmar minha hipótese, alguns se tornaram comerciantes, outros combinaram a prática do comércio com o extrativismo.
Canoa de regatão
Desenho Percy Lau
Fonte: Tipos e Aspectos do Brasil. Rio de Janeiro. I.B.G.E. - Conselho Nacional de Geografia, 1956, P. 34.
O francês Auguste Plane, que viajou o rio Madeira e diversos do seus afluentes em 1901, como parte de uma viagem por toda a Amazônia, inclusive pelo Peru, publicou suas memórias dessa viagem em “À travers l'Amérique équatoriale: L’Amazonie” (Paris: Librairie Plon, Plon-Nourrit et Cie. Imprimeurs-Éditeurs, 1903). Ao passar por Borba, chamou sua atenção as embarcações do comércio de regatão sobre as quais informou:
Pouco antes do por do sol, passamos por Borba, que está bem localizada em uma barranca alta, de vinte metros, na margem direita. Esta pequena vila é uma das mais antigas povoações do rio Madeira, mas não possui hoje nenhuma importância. Isto porque não há seringais nas suas imediações e seus habitantes a abandonaram para acorrerem aos seringais mais à montante. Defronte à Borba estão ancorados dois barcos enfeitados, são pintados em cores brilhantes e nos seus mastros flutuam várias bandeiras. São batelãos de regatãos.
Os regatões são mercadores fluviais ambulantes. Alguns, como os nossos mascates ou nossos feirantes, não possuem senão pequenas mercadorias e se deslocam nos vapores de carga e passageiros. Quando chegam a cada localidade, a cada pequeno porto, abrem suas malas no convés dos vapores para exibir suas mercadorias, a exemplo dos nossos pequenos comerciantes nos lugares públicos. Outros têm um centro de operações no rio, uma pequena loja na povoação, ou possuem um barracão estabelecido nas proximidades de algum seringal. Como nossos vendedores ambulantes ricos, que carregam suas mercadorias em um automóvel para vendê-las no campo, os regatões viajam pela região conduzindo laboriosamente suas mercadorias em um barco-loja, parando em pequenas cidades do rio, onde trocam os tecidos de algodão e bugigangas pela borracha. Estes pequenos comerciantes, quase todos os judeus marroquinos ou armênios, pagam uma licença que varia de 400 a 500 mil réis, segundo o município onde trabalham. Suas trocas comerciais com os seringueiros, quando permutam em um seringal que possui patrão é ilegal. Seria uma simples concorrência se eles vendessem suas mercadorias em dinheiro aos extratores, mas eles escambam suas mercadorias em detrimento do barracão, ou seja, pela borracha que deve retornar para o patrão, para pagar o crédito concedido ao trabalhador pelo proprietário seringal. Os regatões são, portanto, mal vistos pelos patrões, que geralmente proíbem a eles de atuar em torno de seus seringais. (Voyage sur le Madeira et ses affluents. In: PLANE, Auguste. À travers l'Amérique équatoriale: L’Amazonie. Paris: Librairie Plon, Plon-Nourrit et Cie. Imprimeurs-Éditeurs, 1903, pp. 84-160.pp. 89-90)
Voltando à sala de aula, dividi com a turma vários temas de História da Amazônia que deveriam ser apresentados em grupos de estudos. A um grupo coube o tema do regatão. No dia combinado o grupo apresentou o resultado de suas pesquisas e, ao final, um dos componentes desse grupo apresentou sua contribuição. Tratava-se de uma visão em parte lúdica e romântica e em parte histórica que o nosso aluno apresentou em sala. Pedi autorização e prometi a esse aluno que, um dia, iria publicá-la. Ei-la:
O Regatão.
Francisco de Assis Teixeira.
Pelos rios da Amazônia
Avançam os regatões
Canoas cortando os rios
Desafiando os sertões
Turcos, sírios e libaneses
Na luta pelo quinhão
E nordestinos ousados
Que fugiram do sertão
Buscando a sorte na vida
No ofício de regatão
Os homens singravam os rios
Em viagens infernais
Transportavam esperanças
Bugigangas e tudo mais
Quinquilharias para trocas
Violão pros carnavais
Senhores da Amazônia
Corriam muitos perigos
Seus sonhos eram a fortuna
De um dia ter olibido
De ganhar muito dinheiro
E contar pros seus herdeiros
Sua história e prodígios
Eram grandes desbravadores
Na arte de comerciar
Embriagavam os fregueses
Para o negócio fechar
Na floresta é lei do cão
Homens que vendem ilusão
Fazem os outros se bestiar
Arroz, feijão, açúcar, sal e café
Transportavam os batelões
Peixe seco e água de cheiro
Foice, faca e facão
Até coroa de defunto
Negociavam os regatões
Chamarizes para pássaros
Carretéis e candeeiros
Pulseiras e jóias falsas
Eram também casamenteiros
Até mesmo prostitutas
E tudo que dava dinheiro
Manteiga de tartarugas
Pirarucu, juta e balata
Esteira e louça de barro
Tudo que engorda ou mata
É comércio é regateio
É festa, é vida, é raça
É regateio é regatão
É índio é rio
É floresta é ficção
É história é ilusão
São pensamentos e memória
Frutos da imaginação
Os caminhos da história
São caminhos encantados
O homem não conhece o futuro
Mas não foge do passado
Ela deixa cicatrizes
E marcas em nosso semblante
A viagem na história
É um inferno sem Dante
Um abraço ao Francisco de Assis Teixeira, que depois cursou o mestrado, e todos aqueles estudantes e professores da UNIR que, juntos, realizaram o PROHACAP, um importante programa da UNIR que qualificou milhares de professores leigos em Rondônia, alguns hoje já no grau de doutor.
E-mail: livrosrondoniana@gmail.com
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