Quinta-feira, 1 de outubro de 2015 - 18h27
Por Dante Ribeiro da Fonseca
O município de Porto Velho fez cem anos de instalação no dia 24 de janeiro e cento e um anos de criação em dois de outubro. A criação se deu através de lei sancionada pelo governador do estado do Amazonas e a instalação ocorreu no momento da posse do seu primeiro superintendente (hoje prefeito) municipal, major do exército Fernando Guapindaia de Souza Brejense. Mas não vou ocupar o tempo do leitor com informações que ele pode encontrar aos milhares na internet e que qualquer pessoa que saiba ler e escrever pode repetir à exaustão, mudando apenas as palavras.
Creio que o principal papel da História, portanto dos profissionais dessa ciência, é fazer-nos compreender o presente. Mas como, a História não se ocupa de estudar o passado? Perguntaria o leitor surpreso. Não exclusivamente, pois selecionamos naquele conjunto infinito de eventos passados apenas aqueles que pensamos façam-nos compreender o presente.
Assim, o tema dessa pequena digressão não será o “passado”, nem ficarei aqui repetindo informações que vocês estão já cansados de saber ou, se não sabem, encontrarão facilmente, com maior ou menor precisão factual. Não falarei dos personagens, nem dessas famosas datas que parecem ocupar obsessivamente alguns. A rigor sequer falarei do município, mas de sua cabeça, a cidade de Porto Velho. Explico, falar do município seria completar uma análise de Porto Velho debruçando-se sobre os seus distritos. O tema “histórico” que escolhi para falar dos cento e um anos do município de Porto Velho foi o caos em oposição à ordem. Sem dúvida nenhuma dialeticamente eros e tanatos complementam-se, em outras palavras o impulso criador não existe sem o impulso destruidor, o novo sobrepõe-se ao velho. Mas, nesse caso a espessura dessa camada de novo muitas vezes mal dá para encobrir o passado naquilo que ele possui de essencial, não aparente.
Nossa cidade já nasce caótica no sentido de uma confusão generalizada tanto no sentido urbano como social. Inicia por ocupar uma área contígua ao pátio ferroviário da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré contrariando as pretensões dos norte americanos construtores da ferrovia de manter afastado do seu pátio aquela horda de trabalhadores indesejáveis. Conforme já escrevi em outro lugar, Porto Velho é em sua origem enquanto pátio ferroviário, quando comparada a Santo Antonio, Eros, o princípio ordenado e criativo, enquanto aquela tanatos, o princípio desordenado e destruidor. Com o tempo uma povoação faz com que seu caráter sobreponha-se à outra, Porto Velho torna-se então Uma cidade à Far West.
A esse respeito, julgo pertinente reproduzir abaixo parte de meu estudo intitulado Uma cidade à Far West tradição e modernidade na origem de Porto Velho (FONSECA, Dante Ribeiro da. Estudos de História da Amazônia. 2ª. Ed.Vol. I. Porto Velho: Nova Rondoniana, 2014, pp. 13-82), como segue:
“Com surgimento da cidade de Porto Velho, no alvorecer do século XX, estabeleceu-se um núcleo de povoamento que viria revelar-se estável, apesar das crises econômicas cíclicas que depois abalaram a economia Amazônica. Como os poucos núcleos de colonização do Madeira àquela época, esta povoação agregou uma população que resistiu à débâcle do primeiro ciclo da borracha, sua razão de ser original.
Contudo, o nascimento da cidade comportou um movimento contraditório. Ao surgir, nascer e crescer, Porto Velho fez com que desaparecesse Santo Antônio do rio Madeira, povoação mais antiga, situada sete quilômetros rio acima, defronte a cachoeira de onde tirou o seu nome. Até a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré era essa a localidade de descanso das pessoas e transbordo de mercadorias dos navios a vapor para as embarcações menores, que já haviam trilhado ou iriam trilhar o trecho encachoeirado do rio Madeira.
Ao contrário das expectativas, porém, foi aquele local preterido como ponto inicial da ferrovia quando da última e bem sucedida tentativa de sua construção iniciada em 1907. A empresa concessionária decidiu iniciar o empreendimento em outro ponto, rio abaixo, pouco distante daquele povoado, alegando várias dificuldades como insalubridade, problemas com o porto, falta de espaço e, acrescentamos, aquilo que poderíamos chamar o “ambiente social” da vila.
Porto Velho era para ser o oposto de Santo Antônio. Enquanto nessa última localidade existiam estabelecimentos comerciais, que abasteciam aos passantes daquelas diversões mais antigas da humanidade: o jogo, a bebida e a prostituição; naquela nada disso deveria existir. Porto Velho deveria ser um asséptico estabelecimento industrial. Deveria ser dotado de todos os confortos e da infraestrutura necessária para manter, dentro do possível, em uma região insalubre como a do Madeira, as condições de produtividade do trabalho. Para isso seria necessário que o contingente de trabalhadores da ferrovia estivesse afastado daquele tipo de diversão que oferecia o porto rio acima. Seriam evitados assim transtornos para a administração do empreendimento.
De fato, Porto Velho era anunciada como uma cidade moderna, planejada. Mas, ao lado do espaço controlado pela ferrovia surgiu uma aglomeração que, desde o início, revelou ser o avesso de seu embrião.
A história tem os seus reveses. Se a decisão da Company fez despovoar Santo Antônio, aquela Sodoma tropical, essa povoação ao mesmo tempo em que era abandonada, transferia sua população para o Porto Velho. Tradição e modernidade superpuseram-se em uma cidade com duas faces. Houve evidente vantagem para a primeira, em função do meio ambiente circundante ao espaço urbano. Assim, o fato de a cidade ter surgido a partir de um empreendimento industrial conduz a várias confusões, dentre elas a de considerar uma cidade predominantemente moderna em seus pródromos.
Porto Velho transformou-se, conforme morria Santo Antônio, em uma cidade com duas personalidades. Sua fisionomia industrial revelou-se tão distinta daquela que se formou fora dos limites do pátio ferroviário quanto de Santo Antônio, exatamente porque a Porto Velho de fora da ferrovia parecia-se mais com Santo Antônio.
A articulação desses espaços, o moderno e o não moderno, subjugava-se, por sua vez, aos objetivos empreendedores, nada românticos, porém, de expansão do mercado mundial. A corrida dos países capitalistas centrais, nesse período, buscava incorporar os “espaços sombrios”, aptos a se tornarem mercados fornecedores de matérias-primas para suas vorazes indústrias, e consumidores dos seus produtos industrializados. Ao sonho com um mundo “homogêneo e unificado” chamava-se então imperialismo econômico, frequentemente substituído em sua “romanticidade” pela face militar, que também pode possuir uma face “romântica”, se assim o imaginarmos. Hoje, ávidos de novidade em um mundo que quanto mais se transforma mais continua o mesmo, chamamos a esse fenômeno globalização.”
Ao contrário da ilusória interpretação deixada por uma parte da historiografia, Porto Velho em sua origem apresentava um brutal choque entre modernidade e arcaísmo. Não era uma cidade moderna na Amazônia, mas possuía um moderno pátio ferroviário, frequentemente confundido com a cidade. Deixo então o leitor entregue a si mesmo. Deves, caro amigo, tirar suas próprias conclusões. Afinal, depois das usinas, do shopping e outras tantas modernidades o que prevaleceu em Porto Velho? O que subsiste sob a camada de modernidade, como as antigas demãos de tinta teimam em subsistir sob a nova pintura? A ordem ou o caos? Eros ou tanatos?
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