Segunda-feira, 13 de novembro de 2017 - 05h19
Por Dante Ribeiro da Fonseca
Frequentemente encontramos nas páginas impressas e na internet textos sobre a cidade de Porto Velho em sua década inicial. Tais textos esboçam uma paisagem onde impera o conforto, a organização, o planejamento, enfim, a modernidade. É certamente uma construção charmosa, que juntamente com a visão épica apresentam um mito de origem bastante atraente. Pouco tem relação, contudo, com a História, concreta. No texto que segue abaixo propus (e isso faz quase vinte anos) que essa visão é completamente equivocada quando vista à luz das evidências trazidas pela reflexão teórica sobre o conceito de modernidade e pelos testemunhos da História.
O equívoco está em considerar como “a cidade” o pátio ferroviário. Ora, nenhum pátio ferroviário isoladamente conseguiu constituir-se como cidade, até onde eu saiba, embora muitas cidades tenham surgido em torno de pátios e até de estações ferroviárias. Esse é o caso de Porto Velho, a aglomeração humana, ou povoação, que cedo surgiu na orla do pátio da ferrovia Madeira-Mamoré constituiu originalmente, juntamente com o pátio evidentemente, aquela que viria a ser décadas depois a capital do Estado de Rondônia.
Ocorre, porém, que a modernidade estava presente no pátio ferroviário, mas não no restante da povoação que apresentava o aspecto desorganizado e arcaico, apesar dos esforços de maquiagem modernizadora de seu primeiro superintendente. Assim, prostíbulos, bares, pensões, mascates e todas as demais atividades humanas não aceitas no pátio foram praticadas “do lado de fora” dele, e assim, estavam excluídas da modernização, acessível apenas a uma pequena elite ferroviária, em geral de nacionalidade norte-americana. Também a falta de água encanada, luz, esgotos, atendimento médico e outros benefícios estavam vedados a esses exilados da modernidade. Em resumo, é um mito originário a proposição de que Porto Velho em sua origem era uma cidade moderna. Como a História não trabalha com mitos, mas com as evidências que nos lega o passado, temos que abandoná-lo em favor de uma visão mais complexa e sofisticada dessa realidade.
O texto abaixo de minha autoria, publicado primeiramente na obra “Porto Velho conta sua História” (1998, há tempos esgotado) e atualmente disponível tanto no livro “Estudos de História da Amazônia” (2ª. edição, Porto Velho: Nova Rondoniana, 2014, volume I, pp. 13-77), quanto na obra que será lançada no corrente mês, intitulada: “In idem flumen: as povoações do rio Madeira e a origem de Porto Velho (século XVIII ao XX) (Porto Velho, Nova Rondoniana, 2017, pp. 153-218), procura discutir essas evidências e, creio, demonstra claramente a minha hipótese. Vamos a ele.
Com surgimento da cidade de Porto Velho, no alvorecer do século XX, estabeleceu-se um núcleo de povoamento que viria revelar-se estável, apesar das crises econômicas cíclicas que depois abalaram a economia Amazônica. Como os poucos núcleos de colonização do Madeira àquela época, esta povoação agregou uma população que resistiu à débâcle do primeiro ciclo da borracha, sua razão de ser original.
Contudo, o nascimento da cidade comportou um movimento contraditório. Ao surgir, nascer e crescer, Porto Velho fez com que desaparecesse Santo Antônio do rio Madeira, povoação mais antiga, situada sete quilômetros rio acima, defronte a cachoeira de onde tirou o seu nome. Até a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré era essa a localidade de descanso das pessoas e transbordo de mercadorias dos navios a vapor para as embarcações menores, que já haviam trilhado ou iriam trilhar o trecho encachoeirado do rio Madeira. Durante as tentativas anteriores era Santo Antônio o ponto inicial de construção da ferrovia, dada a sua condição natural de ponto em que finalizava o trecho desimpedido daquele rio. Dessa vantagem valeu-se essa localidade desde a segunda metade do século passado.
Ao contrário das expectativas, porém, foi aquele local preterido como ponto inicial da ferrovia quando da última e bem-sucedida tentativa de sua construção iniciada em 1907. A empresa concessionária decidiu iniciar o empreendimento em outro ponto, rio abaixo, pouco distante daquele povoado, alegando várias dificuldades como insalubridade, problemas com o porto, falta de espaço e, acrescentamos, aquilo que poderíamos chamar o “ambiente social” da vila.
Porto Velho era para ser o oposto de Santo Antônio. Enquanto nessa última localidade existiam estabelecimentos comerciais, que abasteciam aos passantes daquelas diversões mais antigas da humanidade: o jogo, a bebida e a prostituição; naquela nada disso deveria existir. Porto Velho deveria ser um asséptico estabelecimento industrial. Deveria ser dotado de todos os confortos e da infraestrutura necessária para manter, dentro do possível, em uma região insalubre como a do Madeira, as condições de produtividade do trabalho. Para isso seria necessário que o contingente de trabalhadores da ferrovia estivesse afastado daquele tipo de diversão que oferecia o porto rio acima. Seriam evitados assim transtornos para a administração do empreendimento. Enfim, tratava-se, entre outras coisas, de criar condições para manter o trabalhador sempre pronto a garantir o retorno satisfatório da parte variável do capital investido pela Company, ou seja, de garantir a apropriação da mais-valia em níveis satisfatórios. Conforme sintetizou Hardman:
Visto aquele caminho de ferro do alto, porém, a oposição logo se revela falsa, já que esses extremos se tocam, e muito, embora não haja dúvidas de que a fisionomia de cada um desses apareça distinta (HARDMAN, 1988, p. 169).
De fato, Porto Velho era anunciado como uma cidade moderna, planejada. A partir do pátio da ferrovia, seu núcleo inicial, observava-se a divisão funcional do espaço: o local de recreio, os locais de moradia (hierarquicamente divididos) e de trabalho (oficinas e escritórios). Mas, ao lado do espaço controlado pela ferrovia surgiu uma aglomeração que, desde o início, revelou ser o avesso de seu embrião. Anarquicamente, nessa parte da cidade, misturavam-se as funções de moradia, trabalho e diversão (pouco recomendável segundo os padrões da administração da ferrovia).
A história tem os seus reveses. Se a decisão da Company fez despovoar Santo Antônio, aquela Sodoma tropical, essa povoação ao mesmo tempo em que era abandonada, transferia sua população para o Porto Velho. Tradição e modernidade superpuseram-se em uma cidade com duas faces. Houve evidente vantagem para a primeira, em função do meio ambiente circundante ao espaço urbano. Assim, o fato de a cidade ter surgido a partir de um empreendimento industrial conduz a várias confusões, dentre elas a de considerar uma cidade predominantemente moderna em seus pródromos.
As medidas assépticas dos capitalistas norte-americanos revelaram-se superficiais, não deram conta da profundidade dos conflitos e contradições gerados das relações sociais implantadas na selva. Porto Velho transformou-se, conforme morria Santo Antônio, em uma cidade com duas personalidades. Sua fisionomia industrial revelou-se tão distinta daquela que se formou fora dos limites do pátio ferroviário quanto de Santo Antônio, exatamente porque a Porto Velho de fora da ferrovia parecia-se mais com Santo Antônio.
Essa face ambígua da origem da cidade conduz-nos a inquirir sobre os significados de um termo hoje, mais do que nunca, em moda, a modernidade. Resta então questionar em que consiste essa modernidade, em que ela é peculiar. Resta perguntar com Berman:
Contudo, o que aconteceu nas áreas fora do ocidente, onde, apesar das pressões crescentes do mercado mundial em expansão e do desenvolvimento simultâneo de uma cultura moderna - a ‘proprie-dade comum’ da humanidade moderna como disse Marx no Mani-festo Comunista - a modernização não estava ocorrendo? (BERMAN, 1986, p. 169).
Poderíamos concluir, como o mesmo autor o fez a respeito de São Petersburgo, que a Porto Velho de 1912 representa a modernidade inserida em uma sociedade atrasada, e por isso mesmo uma modernidade distinta, bizarra e irreal? Ainda, que nela: [...] os significados da modernidade teriam de ser mais complexos, paradoxais e indefinidos [...] (Idem).
O termo modernização vincula-se a uma série de processos iniciados simultaneamente com a Revolução Industrial. Pode ser chamado também de ocidentalização ou europeização, termos carregados de etnocentrismo. Refere-se a determinada forma de desenvolvimento econômico, relacionada diretamente a certas mudanças nas estruturas políticas e sociais, que induziriam as comunidades e indivíduos atingidos pelo processo de modernização a mudarem suas opiniões e atitudes tradicionais. Objetivamente o processo inicia com a transferência do campo para a cidade, ou seja, a decolagem do processo de urbanização a partir da mecanização do campo ou da industrialização. Nas áreas fora do ocidente a que se refere Berman esse processo assumiu, em geral, apenas suas formas exteriores.
O próprio agente da modernização assumia, nas regiões periféricas, um papel dúbio na medida em que, de certa forma, impedia que se concluísse o processo (GRAHAM, 1968, p. XI). Os britânicos, por exemplo, pressionaram o governo brasileiro para extinguir a escravidão, porém, aproveitaram-se tranquilamente das tradicionais relações implantadas no extrativismo amazônico. Assim, naquelas áreas onde lhe interessava a manutenção das relações sociais tradicionais, a modernização ficava situada num meio termo. Nelas, predominavam muito mais os hábitos de consumo do que mudanças de padrões de comportamento político, social e econômico. Os brasileiros passaram a alimentar-se, vestir-se, divertir-se, habitar e a curar-se com produtos ingleses (Idem, p. 112). Simultaneamente, porém, continuaram a viver predominantemente em estruturas sociais arcaicas, durante ainda um longo tempo.
Lidamos aqui com dois fenômenos da modernidade, dois impressionantes símbolos exteriores do mundo industrial: a ferrovia e a cidade. Esses símbolos parecem confundir-se no caso de Porto Velho onde, certamente, o que impressionava era a ferrovia e sua “cidade”. A Revolução Industrial produziu, no terceiro quartel do século XIX, um tipo de empreendedor que sonhava com um mundo “homogêneo e unificado”. Tratava-se de espalhar pelo planeta os símbolos do moderno mundo industrial do qual faziam parte as linhas ferroviárias, com suas amplas e confortáveis estações, tratava-se de: [...] articular os espaços sombrios ainda não completamente subjugados aos imperativos da civilização [...] (Idem).
A articulação desses espaços, o moderno e o não moderno, subjugava-se, por sua vez, aos objetivos empreendedores, nada românticos porém, de expansão do mercado mundial. A corrida dos países capitalistas centrais, nesse período, buscava incorporar os “espaços sombrios”, aptos a se tornarem mercados fornecedores de matérias-primas para suas vorazes indústrias, e consumidores dos seus produtos industrializados. Ao sonho com um mundo “homogêneo e unificado” chamava-se então imperialismo econômico, frequentemente substituído em sua “romanticidade” pela face militar, que também pode possuir uma face “romântica”, se assim o imaginarmos. Hoje, ávidos de novidade em um mundo que quanto mais se transforma mais continua o mesmo, chamamos a esse fenômeno globalização.
Denominemos então o cenário e os personagens do “romance”. A Amazônia no auge do ciclo da borracha, grande mercado fornecedor dessa matéria-prima para as indústrias europeias e norte-americanas e, ao mesmo tempo, mercado consumidor dos produtos desses países. A ferrovia, que com o auxílio da navegação a vapor, símbolos do moderno mundo industrial, integravam esses mercados. O empreendedor “romântico” Percival Farquhar, um norte-americano caçador de concessões monopolistas nos “espaços sombrios” do mundo não moderno. Com essas concessões promovia a fusão de capitais para explorá-las, espalhando nesses espaços os símbolos da modernidade. O estado, soberano, às vezes incerto, nesses “espaços sombrios”. Finalmente, milhares e milhares de trabalhadores, vinculados ao moderno empreendimento ferroviário e ao tradicional mundo extrativista amazônico, que construíram e habitaram a cidade de Porto Velho, outra face paradoxalmente não moderna da modernidade.
Uma das características mais visíveis da Revolução Industrial foi o crescimento das cidades de forma nunca vista anteriormente. Inicialmente caótico, esse fenômeno conduziu às primeiras tentativas de planejamento do espaço urbano cujas linhas mestras resumem-se nas palavras ordenar e higienizar (RAMINELLI. In: CARDOSO & VAINFAS, 1997, p. 185). A cidade tradicional, leia-se aqui anárquica, com ruas estreitas e sinuosas e construções acanhadas, anti-higiênicas ou precárias, surge antes ou simultaneamente, resiste e às vezes sobrepõe-se, à cidade moderna. Contra essa cidade tradicional unem-se a burguesia e o Estado. O surgimento das rígidas regras para o arruamento, geometricamente traçado sob a forma de tabuleiro de xadrez, é simultâneo ao fortalecimento do poder centralizado, à consolidação das fronteiras políticas e ao surgimento de economias monetarizadas (Idem, p. 193). Planejar as cidades, embelezá-las, cortando-as com avenidas e bulevares, jardins e grandiosas edificações era manifestar o moderno, a cultura, a civilização.
Contudo, qualquer proposta de construção de uma “cidade ideal” é, necessariamente, política, na medida em que envolve ampla gama de interesses sociais diversos. Nesse caso, as propostas de renovação do espaço urbano, prescreviam o afastamento da pobreza do centro da cidade. Os proletários, com seus hábitos e modo de vida, constituíam um transtorno, quando não uma ameaça pública. Era necessário separar o moderno do arcaico, mas ao mesmo tempo, tornar moderno o arcaico. As propostas de modernização avançaram no sentido de transformar uma massa proletária que, dos campos e da periferia do capitalismo, fazia crescer as cidades. Era necessário também urbanizar o proletariado, domesticá-lo, inseri-lo à nova ordem, o que frequentemente recebia o nome de civilizar.
No que tange a Porto Velho, um conjunto de dados têm que ser organizados de forma a tornar inteligível o seu processo de criação e transformação. Inicialmente uma aproximação empírica conduz-nos a considerar, necessariamente, a simultaneidade de seu surgimento e de suas transformações sociais e espaciais, apropriando-se de uma série de variáveis que expliquem sua singular situação. Devemos, porém, alertar para o fato de que as pesquisas sobre os fenômenos da urbanização debruçam-se, em geral, sobre as grandes cidades dos cinco continentes. Procuram as explicações para o seu crescimento acelerado durante o período moderno e, frequentemente vinculam esse crescimento ao fenômeno da industrialização. Quanto à questão do tamanho, o caso em estudo tem como objeto uma pequena cidade da Amazônia Ocidental. A diferença quantitativa não impede a utilização como referencial, de estudos sobre grandes cidades estrangeiras como Paris, ou nacionais, como o Rio de Janeiro, na medida em que, qualitativamente, o fenômeno repete-se, com pequena diferença de nuances no nosso microcosmo. Em relação ao vínculo entre industrialização e urbanização coloca-se a seguinte questão: foi a aplicação de capitais da indústria de transporte o maior fator de estímulo à urbanização, nesse ambiente de formas econômicas e sociais predominantemente tradicionais? Porto Velho e Santo Antônio surgiram em torno da demanda de transporte no trecho encachoeirado do Madeira, dessa forma, a existência anterior de Santo Antônio demonstra que uma aglomeração urbana era possível no local, em função dessa necessidade.
Parece, portanto, que arguição central nesse caso não conduz diretamente à relação entre industrialização e urbanização, mas da relação entre atividade econômica e o tipo de urbanização. O estágio de desenvolvimento econômico e social de uma região, na periferia do sistema capitalista, inserida na floresta tropical úmida e em um universo onde as relações de produção predominantes são aquelas relativas ao primeiro ciclo da borracha resultou no surgimento de Santo Antônio. A atividade que dava sustentação à povoação era arcaica, tradicional. O transporte de pélas de borracha e aviamentos em canoas, impulsionadas à força de remos, era atividade organizada pelos próprios seringalistas. Assim, a organização da urbe e a urbanização do trabalhador exigiam comportamentos diferentes do mundo industrial. Porto Velho surgiu porque a razão industrial necessitava de outro tipo de urbanização, disciplinada de modo a servir à modernidade. A moderna indústria de transporte deslocou a população da já existente urbe tradicional, porque extinguiu sua razão de ser. Depois de construída a ferrovia e sua cidade com sua estação terminal e seu porto, Santo Antônio não possuía mais razão de existir. Não eram mais necessários os remeiros, nem aqueles estivadores, e sem eles os estabelecimentos comerciais ficavam sem fregueses. Mas a cidade, que surgia de um moderno investimento capitalista, estava imersa em uma área onde predominava a tradicional atividade extrativista e, mesmo existindo a partir do mercado internacional e para responder às suas demandas, sua urbanização deveria sofrer essas influências ambientais, condicionando seu desenvolvimento ecológico e espacial.
Quanto ao seu povoamento, embora a ferrovia tenha atraído, de imediato, milhares de trabalhadores, essa população revelou-se adventícia ou instável. Isso se explica na medida em que ferrovia não constituiu, a princípio, um polo de atração da população local, mas sim de trabalhadores estrangeiros.
A população nativa sentia-se mais atraída pelo trabalho nos seringais. Esse foi um dos motivos de recrutar trabalhadores de outros países. Ao final da obra, os que sobreviveram foram embora, em sua maior parte, ou submergiram nos seringais. No caso de Porto Velho, não foi a concentração populacional que possibilitou o empreendimento industrial, mas o contrário. Pode-se afirmar mesmo, em um nível mais primário, sob a perspectiva local, que não foram variáveis de origem industrial que explicam o aparecimento e o crescimento da cidade, antes, o extrativismo as explica e a ambas precede historicamente como variável explicativa na medida em que, a partir daí a cidade não se desenvolveu industrialmente, mas manteve-se como um entreposto dessa atividade. Como veremos adiante, após a finalização da construção da ferrovia, a maior parte dos moradores dedicava-se às atividades do comércio e serviços, inclusive públicos, ligados ao extrativismo.
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