Terça-feira, 3 de janeiro de 2017 - 11h56
Por Dante Ribeiro da Fonseca
Durante a Idade Média os teólogos bizantinos ocupavam grande parte de seu tempo cogitando questões como: qual o sexo dos anjos? Inquiriam ainda sobre: quantos anjos cabem em uma cabeça de alfinete? Os acirrados embates que esses temas suscitavam foram depois chamados de discussões bizantinas, pelo seu absurdo e inutilidade aos olhos dos nossos contemporâneos. Não o eram para aqueles que as discutiam pois, na época era a Teologia que predominava no entendimento do Mundo, e não a ciência moderna. Hoje, porém, em razão do predomínio do conhecimento que designamos científico, discussões das quais não temos meios de chegar a qualquer conclusão são chamadas bizantinas.
O que estou querendo afirmar com isso é que muitas vezes discutir datas em História não passa de bizantinismo. Isso em razão de que muitas das datas históricas são estabelecidas por convenção. Assim, em muitos casos não há data certa ou errada, simplesmente porque a determinação da origem do “fato histórico” é impossível.
Esse é o caso das datas magnas estaduais. Desde a criação do Estado de Rondônia, sua data magna foi fixada no dia 04 de janeiro. Naquele dia, em 1982, foi instalado o Estado. Anteriormente comemorava-se como data magna a criação do Território Federal do Guaporé, depois denominado Território Federal de Rondônia. A comemoração nessa data justificava-se em razão do Decreto-lei 5.812 de 13 de setembro de 1943, que criou essa unidade da federação. O Decreto-lei N° 39 de 31 de dezembro de 1982, assinado pelo Governador Jorge Teixeira de Oliveira, instituiu o dia 04 de janeiro feriado estadual. Foi naquele dia que o estado começou efetivamente a ser administrado pelo seu primeiro governador e signatário do mesmo decreto.
Passada mais de uma década, a Lei Federal 9.903 de 1995 definiu no seu artigo primeiro, inciso II que a data magna dos estados deve ser fixada por Lei Estadual. Assim é que pelo decreto 14.765, de 03 de dezembro de 2009, assinado pelo Governador Ivo Cassol, foi mudada a data magna do estado para 22 de dezembro. Argumentava-se em favor dessa mudança que naquele dia, em 1981, foi assinada Lei Complementar número 41, que criou o Estado de Rondônia. Tal iniciativa, teria o condão de corrigir o “erro histórico” em razão de que devemos comemorar os aniversários no dia do nascimento, e não na data do registro civil.
Muitos discordaram dessa iniciativa e em razão da polêmica foi efetuado um requerimento para audiência pública pelo deputado Jesualdo Pires, para discutir e deliberar sobre o assunto. Da audiência, participaram representantes do poder executivo e de diversas entidades estaduais Na mesa do debate presidido por Jesualdo Pires, estavam o deputado Ribamar Araújo (PT); representando o governador do Estado, João Cahulla (PPS), o Chefe da Casa Civil, Carlos Canosa; representando o Ministério Público, o promotor de Justiça Geraldo Henrique Guimarães; a presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia, Yeda Borzacov e o presidente da Academia de Letras de Rondônia, Lúcio Albuquerque. Foi particularmente feliz essa audiência pelo cuidado de chamar a colaborar profissionais e entidades vinculadas ao estudo da História, senão pela primeira vez uma das poucas ocasiões em que o fato ocorreu. Dessa audiência resultou a Lei de número 2291 de 22 de abril de 2010 que instituiu como 4 de janeiro a data magna do estado de Rondônia. Pela Academia de Letras de Rondônia (ACLER) fui designado para defender a posição, unânime na academia, de manter a data tal como vinha sendo comemorada desde a instalação do Estado. Seguem abaixo os argumentos que basearam essa posição.
Iniciamos nossas considerações alertando que o argumento justificador da mudança de datas continha fenômenos de naturezas diversas, a saber: o nascimento de uma pessoa, ou melhor o dia do parto (fenômeno natural) e o registro dessa pessoa em cartório, a emissão da certidão de nascimento (fenômeno civil). Ora, sabemos da distinção e mesmo da oposição entre natureza e sociedade civil desde os filósofos gregos do século V a.C. Todos os filósofos contratualistas constituíram suas teorias acerca do surgimento do Estado, opondo à natureza a sociedade civil (vejam como exemplo a distinção entre liberdade natural e liberdade civil em Thomas Hobbes). Pela regra da boa lógica (tanto formal com dialética) não podemos comparar coisas de naturezas diferentes com o objetivo de inferir de umas as qualidades de outras. O recurso da analogia é, portanto, logicamente invalidado quando assim agimos.
Assim, do ponto de vista da análise histórica o argumento encontra problemas que impedem sua aceitação:
1) A criação de um estado e o nascimento de uma criança são fenômenos de naturezas completamente diversas. Um, o nascimento de uma criança, é ato natural, condição sine qua non para a existência do estado civil, seu registro. O outro, a criação de um estado, é ato puramente civil.
2) Mesmo que fossem de mesma natureza, diferem em diversas sociedades o critério para estabelecer a data de nascimento. Em alguns grupos humanos é considerada a partir de determinada idade, onde o indivíduo assume realmente responsabilidades com a sua coletividade. Isso pode se dar aos quinze anos, por exemplo.
3) Nesse último caso o fato que nos dá a data é variável, não é mais o nascimento e sim a entrada na vida adulta.
4) Não há um critério único em todas as sociedades humanas para determinar a data do nascimento das pessoas, até isso, que nos parece tão certo, é variável. Em outras palavras, se o parto é um ato natural, o nascimento é uma construção social.
5) Além do mais nem sempre comemoramos o aniversário das pessoas no dia em que ela viu a luz pela primeira vez. Algumas pessoas são registradas dias, e nos sertões desse país até meses, após o seu nascimento. Assim, o aniversário dessa pessoa poderá não ser comemorado no dia do seu nascimento natural, e sim no dia do seu nascimento civil, quando realmente nasceu para a sociedade civil, ou vice-versa, dependendo da decisão dos pais. O fenômeno do nascimento é o mesmo da certidão? Não, um é natural e o outro é civil. Mas, se entre um e outro houver diferença de data, a família pode escolher quando comemorar: se no dia do parto ou no dia do registro.
6) No caso de Rondônia, a Lei Ordinária nº 2731, de 17 de fevereiro de 1956, mudou sua denominação Território Federal de Rondônia, em homenagem ao sertanista Marechal Cândido Rondon (1865-1958). Continuando a equivocada analogia entre parto e registro civil poderíamos perguntar: seria esse registro outra certidão de nascimento, ou apenas troca de nome? Aqui a desigualdade dos fenômeno novamente é encontrada. Se a criação do Estado de Rondônia é analogicamente comparada à obtenção da maioridade civil, como foi possível trocar de nome antes da maioridade?
De outro modo, se desconsiderarmos tudo o que foi argumentado até aqui e utilizarmos a lógica intrínseca do argumento, poderemos invertê-la. Podemos considerar que, ao contrário do registro do nascimento das crianças, a certidão de nascimento, a lei que cria o estado é o parto, e a data de sua instalação o momento da ida dos pais ao cartório para tirar a certidão de nascimento. De outro modo: como o registro pode anteceder ao parto? O dia do aniversário é o dia da certidão de nascimento, nesse caso, o em que foi expedido o documento legal que lhe dota de cidadania. O argumento é imperfeito? Cheio de problemas? Claro, pois está baseado em analogia impertinente. Contudo, serve para ilustrar o quanto essa analogia pode conduzir em termos de bizantinismos.
Situação sobre as datas magnas dos estados.
Essa analogia entre o nascimento de uma criança e o surgimento de um estado conduz, pelo que vimos, muito mais à confusão do que fornece um critério histórico indiscutível para o estabelecimento da data magna do Estado de Rondônia. Devemos chamar atenção inclusive para o fato de que dentre todos os estados brasileiros dificilmente encontraremos um critério único para o estabelecimento de suas datas magnas. No Ceará é o dia 25 de março. Essa data foi estabelecida no parágrafo único do Art. 18 da Constituição daquele estado em razão das comemorações oficiais da libertação dos escravos naquela então província (a primeira e libertar os escravos no Brasil). Em São Paulo, comemora-se no dia da deflagração da Revolução Constitucionalista de 1932 (9 de julho). Em Pernambuco, é no dia em que irrompeu a Revolução Constitucionalista de 1817 (6 de março). No Rio Grande do Sul, é no dia do início da Revolução Farroupilha (20 de setembro). Em Minas Gerais é o dia do Enforcamento de Tiradentes (21 de abril). Há mesmo estados, como o Rio de Janeiro e Goiás, que não possuem data magna.
Vejam, portanto, que a data magna dos estados não precisa coincidir necessariamente com a data da lei que os criou, nem com o dia em que foram instalados. Aliás, se assim o fosse todos esses estados acima citados teriam sua data magna comemorada no mesmo dia. Isso porque eram províncias no Império e passaram ao estatuto jurídico de Estados com a criação dos Estados Unidos do Brazil, instituído pela República.
Da mesma forma Rondônia, que antes era território, mudou seu estatuto jurídico e, como muitos desses Estados, praticou uma data simbólica de sua “maioridade” (novamente a analogia entre o natural e o social). Aliás, cabe também lembrar que se a data “certa” de nascimento de qualquer unidade federada fosse a lei que a instituiu, o “certo” seria comemorar a data magna de Rondônia na data de criação do Território Federal do Guaporé. Essa certeza se daria por considerar, continuando com a analogia entre fatos naturais e fatos civis, que a criação do Estado foi apenas seu atestado de maioridade. Não se pode portanto, a partir de qualquer pensamento lógico formal, estabelecer um critério exato para o estabelecimento de datas magnas (aliás, creio mesmo de nenhuma data histórica), pois o assunto é questão polêmica, envolve valores, paixões políticas e identitárias.
Sobre a História e as datas.
Alguns pressupostos devem ser ainda esclarecidos sobre essa questão das datas, que tão apaixonadamente ocupa aqueles cidadãos preocupados com a História de Rondônia:
1) A História não é uma ciência exata, na verdade as datas consideradas importantes são instituídas através de um complexo sistema de valores e pela convenção.
2) Temos que ter uma noção mais sofisticada do que seja fato histórico, pois a data não constitui o fato histórico, a determinação teórica é que o estabelece e depois dessa determinação é que se tem a data (por exemplo a data de nascimento de uma pessoa é um fato histórico e, como vimos, sua determinação é precedida por operações derivadas dos diversos entendimentos sociais).
3) A grande maioria das datas históricas reflete como fatos aquilo que, na verdade, são fenômenos. Quando afirmamos que a Revolução Francesa iniciou em 14 de julho de 1789, essa data é uma convenção, adotada pelo simbólico da queda da Bastilha naquele dia e ano. É também convencional, pois sabemos quando caiu a Bastilha, mas ninguém nunca saberá ao certo quando começou a Revolução Francesa, e nem quando ela terminou. Já a Proclamação da Independência do Brasil ocorreu de fato em 07 de setembro de 1822, mas não podemos determinar quando iniciou o processo (e nem se ele já terminou). Como a queda da Bastilha, ocorreu realmente na data citada, mas, nem uma data nem outra nos remetem exatamente ao momento histórico como fenômeno, são convenções factuais.
Conclusão
Várias datas podem ser sugeridas para a comemoração da data magna do estado. Podemos comemorar o 13 de setembro, a data da lei que criou o Território, como era antes. Podemos comemorar com a data da inauguração da Madeira-Mamoré, pois, como já se escreveu, foi ela a mãe de todos os territórios (novamente a analogia). Podemos comemorar com a partida da Expedição Palheta, que reconheceu o rio Madeira em toda sua extensão. E isso não terá fim. Como não terá fim a polêmica sobre quando “surgiu” (nasceu) Porto Velho. Não terá fim, exceto pela convenção, já razoavelmente aceita pela comunidade de estudiosos que a povoação surgiu com a abertura do pátio da Madeira-Mamoré. Restando polêmica sobre o ano em que isso ocorreu.
Na medida em que demonstramos que não há uma data “certa”, certa como dois mais dois são quatro, pois a história não é uma ciência exata, qualquer discussão nesse sentido será inútil.
Sendo assim devemos, nesse caso, respeitar a tradição e a memória daqueles que instituíram a data. Certamente um momento de festa sim, mas ainda assim um momento solene e legalmente necessário para a efetivação final do desejo da população em ver o Território transformar-se em Estado.
Certamente foi aquela data, para a população de Rondônia, a data mais feliz do processo. Ficou indelevelmente registrada nas lembranças daqueles que viveram aquele magnífico momento. Continuemos a comemorar a Data Magna da Criação do Estado no dia 04 de janeiro.
Foi confirmado então pela Assembleia Estadual Legislativa de Rondônia o 4 de janeiro como data magna do nosso Estado. Parabéns a todos os “destemidos pioneiros” que aqui vivem e trabalham, salve o 4 de Janeiro, salve Rondônia e que o Grande Arquiteto do Universo salve o Brasil desse difícil transe pelo qual passa.
P.S.: A propósito, grandes sacrifícios foram e continuam sendo feitos pelos “destemidos pioneiros”. Em outras palavras: Rondônia não foi e não é para qualquer um. Quando viajamos para o litoral temos que suportar as perguntas do tipo: E aí, como é que tá o Acre? Ou Roraima, e temos certeza que os acreanos e roraimenses escutam o mesmo. Ou então perguntam se aqui tem índio (como se lá não tivesse) ou pelo cipó de que horário viajamos. O desconhecimento da maioria dos brasileiros quanto à nossa região é imenso, só não é maior que o seu amor pela flora e fauna amazônica, que igualmente desconhecem. Constantemente nossos meninos, que hoje viajam mais do que nunca, são objeto de gozação quando reconhecidos de Rondônia. Certo médico, o mais antigo em atuação no Estado, contou-me certa vez que em 1948 foi estudar em Belo Horizonte. Lá, perguntado por um professor de onde vinha, respondeu que vinha do Território Federal do Guaporé. Foi apelidado de “o homem da onça”. Mais recentemente um outro rapaz, em intercâmbio no Canadá, conheceu lá pessoas de todas as partes do Brasil. Ao saberem de onde era ficou imediatamente conhecido como: “o cara de Rondônia”. Nosso rincão ainda é conhecido como um lugar distante e exótico. Mas, convivemos bem com essa ignorância e até compartilhamos filosoficamente da gozação. Para ilustrar uma série que saiu nas redes sociais a poucos anos atrás onde, com bom humor ilustramos nossa “realidade”.
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